<$BlogRSDUrl$>

8.3.16

Iphigénie en Tauride no S. Carlos 

Iphigénie en Tauride no S. Carlos
Henrique Silveira – Crítico
Crítica rápida e curta saiu originalmente no "O Diabo", seguir-se-á,  após o final das récitas, uma crítica mais alongada.
Música de Christoph Willibald Ritter (Cavaleiro) Gluck - 1714 – 1787. Estreia em 1779 em Paris. Direcção musical: David Peter Bates, Encenação: James Darrah, Cenografia e desenho de luz: Emily MacDonald Cameron Mock, Figurinos: Chrisi Karvonides, Iphigénie: Alexandra Deshorties, soprano, Orestes: William Berger, Bbarítono, Pylade: Anthony Gregory, tenor, Thoa: John Moore, barítono. Coro do Teatro Nacional de São Carlos Maestro titular: Giovanni Andreoli, Orquestra Sinfónica Portuguesa. Tragédia em quatro actos, Libreto de Nicolas-François Guillard. Sala quase cheia, estreia a 5 de Março pelas 20h.


Esta será uma crítica rápida que será rematada dentro de algumas edições com reflexões post mortem mais elaboradas.


A encenação foi extremamente pensada, inteligente e eficaz. O drama psicológico de Ifigénia e de Orestes é tremendo, a relação de amizade profunda, que raia a ambiguidade homossexual, aliás natural nos gregos antigos, é complexa e subtil e junta um elemento de complexidade que foi jogado com enorme subtileza. A direcção de actores foi notável, com marcações a raiar a perfeição e momentos estéticos de grande impacto visual, com todas as movimentações em palco a obedecerem a um plano que serve constantemente a acção. Como em tudo na vida esta visão teve defeitos, Thoas a subir paredes é excessivo, alguma gesticulação absurda de Ifigénia é apatetada, mas a criação de seis espectros é engenhosa, são criaturas do submundo tão caras a Gluck, representações simbólicas das sombras que rodeiam Ifigénia, e seu irmão Orestes, e quando estes se reconhecem dá-se uma transferência entre estes dois dos espectros, num momento subtil mas também de clarividência. Toda a leitura é lógica, a intemporalidade de uma fábrica abandonada gera um nível de abstracção que não se fixa numa época particular e não é meramente gratuita, a tragédia de Orestes, que matou a mãe por instigação de Electra, ou de Ifigénia, que quase foi sacrificada pelo pai e se tornou uma assassina ritual, é eterna e revela factos que a psicanálise nunca se cansou de explorar. As luzes foram perfeitas sublinhando com a cor a acção e o drama psicológico e a cenografia simples jogou com um imenso disco suspenso sobre o palco, um disco entre o solar e o lunar que centrou a cena no ponto do clímax da acção, exactamente na razão dourada da duração da obra! Conseguiu-se o económico sem ser ordinário. Os figurinos poéticos evocaram-me imagens de Bilal e das suas bandas desenhadas com plasticidade e intemporalidade.


As vozes são, em geral, de grande qualidade, apesar de uma Deshorties de voz curta, de agudos pobres de harmónicos e graves pouco densos, cansada ao longo da récita mas com grande trabalho cénico e uma enorme preparação na interpretação musical. Um Berger de voz pujante, bela e rutilante, algo exagerado nos gritos de interjeição mas de bom gosto vocal, bem assim como Gregory, um tenor de voz bonita e elegante e um denso Moore, figura muito bela e bem trabalhada pelo encenador e figurinistas.


Um coro péssimo nos homens, e sofrível nas mulheres e um lindíssimo oboé, naipe que salvou a récita diversas vezes, juntamente com restantes madeiras, metais pouco idiomáticos mas com alguns momentos interessantes gerando as trompas belos timbres. Primeiros violinos perdidos e segundos violinos inexistentes com outras cordas débeis, em que se salvaram apenas os contrabaixos, arruinaram o tecido orquestral. A direcção é idiomática mas pouco eficaz na gestualidade e na segurança, preparou o estilo mas não deu segurança musical a coro e cordas e foi pouco incisivo nas entradas dos cantores. Talvez a orquestra melhore com as récitas seguintes, recomendo vivamente pela encenação, vozes e música excelente de Gluck.

Etiquetas: , , ,


9.6.14

Norma ou o império do mau gosto 


Henrique Silveira – Crítico
Norma, ópera composta por Bellini (1801-1835) com libreto de Romani (1788-1865) em dois actos, Teatro Nacional de S. Carlos, TNSC, 4 de Junho, estreia. Orquestra Sinfónica Portuguesa (OSP), Coro do Teatro Nacional de S. Carlos (CSC), direcção de Speranza Scappucci, maestro de Coro: Giovanni Andreolli. Pollione: Alejandro Rey, tenor espanhol, Oroveso: Wojtek Gierlach, baixo polaco, Norma: Dimitra Theodossiou, soprano grego, Adalgisa: Patrizia Biccirè, soprano italiano, Clotilde: Cátia Moreso, meio-soprano português e Flavio: Bruno Almeida, tenor português. Versão de concerto, sala a três quartos.
Uma nota inicial: fomos a S. Carlos contrariados, não é do nosso agrado escutar ópera, nomeadamente a belíssima obra de Bellini e Romani, em versão de concerto, nem é função do TNSC ter uma temporada de ópera com três versões de concerto. Por isso vetámos as duas versões anteriores, até por serem de compositores relativamente menores. A curiosidade venceu no caso desta Norma, primeiro a música é muito boa, em segundo lugar não escutávamos o soprano grego há alguns anos. Sempre tivemos dúvidas sobre as suas qualidades e queríamos comprovar a evolução da cantora, apresentada pelo consultor artístico Pinamonti como se fosse uma espécie de grande diva mundial. É certo que uma ópera em versão de concerto nunca poderá concorrer com o verdadeiro produto teatral, nunca podendo aspirar a uma total satisfação do público. Norma constituía assim um grande risco, sendo uma obra complexa do ponto de vista musical e extremamente difícil para cantores medíocres apenas poderia resultar interessante com intérpretes superlativos.
Começamos pela direcção musical. A italiana Scarappuci é franzina mas tem gestos duros e feios, a sua postura no pódio é agreste e angulosa, tem o péssimo hábito de bater com o pé, de forma percussiva e violenta o que é tremendamente incomodativo, quer do ponto de vista estético, quer do ponto de vista da violenta pancada que se sente momentos antes de mais um acorde intenso um fortíssimo do coro ou uma entrada dos metais. Parece que Bellini não escreveu para bombo, tímpanos e… “sapatadas de maestro” quando assinalou os compassos da percussão. Acontecem assim sucessivos anticlímaxes nos pontos em que Bellini procura efeitos de contraste e surpresa, resulta muito estranho, a meio de um pianíssimo dos violinos, escutarmos as patadas vigorosas da maestrina antecedendo um forte súbito que aparece uns instantes depois, estragada a surpresa pela violenta cacetada. Constatando esta idiossincrasia da senhora logo na sinfonia inicial percebemos que a elegância musical iria estar arredada da interpretação pela pose da artista, o que se confirmou ao longo da noite. Não é com patadas de natureza hípica que se dirige a extraordinária melodia e o belíssimo legato com que Bellini, compositor inspiradíssimo, dotou a sua música. Outro aspecto verdadeiramente negativo foi o facto de a maestrina não dirigir os cantores mas, pelo contrário, ser dirigida por estes. Uma coisa é saber escutar as vozes e dar-lhes tempo de respiração, outra é arrastar e parar a evolução musical sempre que há uma nota mais aguda em que um tenor vaidoso gosta de se ouvir ou um soprano de ego monstruoso se quer deliciar deleitada com os seus dotes de diva. Bellini apenas constrói coloraturas ao serviço do discurso verbal e do fluxo dramático, não há cadências espúrias, parar em cada nota mais exibicional, tipo guitarristas a acompanhar o fadista em cada final de fado, final que se repete centenas de vezes, dando tempo ao cantor de exibir vaidades pouco consentâneas com as suas reais capacidades e destruindo a propulsão musical e o discurso rítmico e melódico, arrasando cantar natural da musicalidade do poema ao serviço da presunção dos divos é destruir a ideia da obra e o génio de Bellini. Espalhafato gratuito, deselegância musical, fortíssimos desproporcionados, falta de equilíbrio dos planos sonoros, direcção pesadona, arrastamento constante nas passagens lentas e em muitas que deviam ser rápidas, entradas em falso, todos estes factos contribuíram para uma confrangedora falta de nexo musical, de fluxo dramático e de ausência de tensão que arrasaram negativamente a música de Bellini.
A soprano Dimitra Theodossiou contribuiu para a enorme falta de gosto desta Norma. Nem discutimos o facto de parecer um mostruário de berloques e brilhantes, facto que deixamos para outros críticos mais mundanos. O que interessa é a falta de qualquer elegância vocal, agudos pesados e baços e médios feios, vibrato monstruoso e voz aparentemente envelhecida, a única justificação para as tremendas dificuldades de respiração poderia ser um problema de saúde que a soprano pareceu invocar assoando-se de forma falsamente recolhida. É inadmissível que uma cantora, vendida como se fosse a diva das divas, se apresente a cantar “casta diva” sem conseguir concluir de forma fluida uma única frase completa. Respirando a meio das palavras, sem conseguir sustentar o legato, parando para se deleitar com alguns agudos, a cantora foi uma sombra musical do que parece ter sido há alguns anos. Junte-se a isto uma géstica histérica e desproporcionada, mais a fazer-se ao gosto fácil de um público pouco exigente, abrindo desabridamente os braços, num estilo que deixaria Amália Rodrigues corada de embaraço, Dimitra Theodossiou foi um modelo de exuberante espalhafato quando se pedia contenção, um personagem sem evolução, que não passou a figura hierática inicial para a mortal encarnação do frágil eterno feminino no desfecho fatal a que se condenou. Theodossiou foi uma má Norma que, mesmo assim, convenceu o ignorante público presente que aplaudiu a pretensa diva de forma ostensiva.
O espanhol que cantou Pollione foi grosseiro e incapaz de nuance apesar da voz grande e do peito farto. Cometeu o erro de entrar no despique dinâmico com uma sempre pronta para a gritaria Theodossiou no terceto final do primeiro acto, apagando completamente a voz bonita, mas pequena, da Biccirè, facto que se repetiu nos duetos com esta, demonstrando falta de companheirismo e de inteligência artística. Resulta muito mais musical e lógico no contexto dramático manter o equilíbrio vocal com a ingénua a quem seduz, depois de ter feito dois filhos a Norma a quem traiu de forma canalha. Provavelmente o tenor também não seria capaz de moderar a voz, uma vez que não tem um grande domínio sobre o seu poderoso instrumento, cantando sempre em poder e nunca em subtileza, o tenor espanhol precisa de reformar o seu canto, deve procurar um bom professor de canto que lhe ensine elegância e subtileza pois a voz, a plenos pulmões, é bela e o instrumento tem qualidades.
A Adalgiza de última hora, uma vez que substituiu uma cantora incapaz que ou foi mal escolhida ou adoeceu (versão oficial), foi correcta. Tendo a elegância que faltou a todos os outros titulares, Bicciré foi inteligente, delicada e suave, conseguiu sustentar um dueto de alto nível com a desbragada Theodossiou que, pelo menos aqui, foi ao encontro da soprano italiana.
O cantor polaco Gierlach cantou sistematicamente de pernas abertas e mostrou-se particularmente boçal do ponto de vista musical, apesar de mostrar bons agudos e consistência na emissão, precisaria de outra direcção para moderar a deselegância natural.
Os portugueses Cátia Moreso e Bruno Almeida estiveram muitíssimo bem, ela densa e consistente mostrou uma voz aveludada e boa presença, apesar de uns sapatos ruidosos que faziam estremecer todo o teatro quando entrava e saía. Bruno Almeida esteve também excelente com uma voz quente e bonita nos agudos, muito bem colocada, a mostrar um belíssimo trabalho de fundo.
A orquestra não comprometeu, mostrando bons sopros e cordas graves, a banda de palco portou-se de forma regular e o coro foi muito bem preparado para esta produção por Giovanni Andreolli, apesar de algum excesso de volume. Rápida e incisiva foi a invocação “Guerra”, tratou-se de um lenitivo no arrastamento global imposto pela batuta de chumbo da maestrina.
Nota muito positiva para o programa de sala com belos textos, apesar de não existir uma crítica e um distanciamento aos pontos débeis na dramaturgia, que os há, e ao lado superficial que orientava o divertimento para as emoções dos burgueses que era a indústria da ópera no início do século XIX. Existe um lado deliberadamente kitsch – já no seu tempo – a puxar ao sentimentalismo, em que é paradigmática, por exemplo, a ária final de Norma destinada à lágrima fácil, mostrando o saber inteligente de Bellini na sua relação com o seu público, facto que não é explorado no programa. Felizmente há outras leituras subjacentes dentro da partitura e, no capítulo das leituras secundárias, o programa é muito feliz.
Uma estrela

Etiquetas: , , , , ,


14.5.13

Relógio atrasado em S. Carlos 


Henrique Silveira
Crítico
Rigoletto de Verdi e Francesco Maria Piave, Teatro Nacional de S. Carlos, dia 11 de Maio, última récita, sala cheia.
Agostina Smimmero, Maddalena, contralto, excelente; Luís Rodrigues, Il Conte di Ceprano, barítono (seria um baixo segundo Verdi), bom; Piero Terranova, Rigoletto, barítono, escapatório; Giovanni Furlanetto, Sparafucile, baixo, pouco convincente; Romina Casucci, Gilda, soprano, medíocre; Alessandro Liberatore, Il Duca di Mantova, tenor, péssimo.
Cantores que cumpriram sem brilhar devido ao seu pequeno papel: Mário Redondo, Il Conte di Monterone, barítono; Marco Alves Dos Santos, Borsa Matteo, tenor; João Merino, Marullo, barítono; Leila Moreso, Giovanna, meio soprano; Ana Luísa Cardoso, La Contessa di Ceprano, meio soprano, Maria do Anjo Albuquerque, Un Paggio della Duchessa, Meio Soprano; Simeon Dimitrov, Un Usciere di Corte, baixo.
Direcção Musical: Martin André, péssimo; Orquestra Sinfónica Portuguesa e Coro Do TNSC, razoáveis; Encenação e Figurinos: Francesco Esposito, encenação fraca e figurinos maus; Cenografia: Francesco Esposito e Mauro Tinti, pindérica; coreografia: Domenico Iannone, houve coreografia? Desenho De Luz: Fabio Rossi, fraca. Programa de sala: incompleto, pouco informativo e dispensável.
Piero Terranova em Rigoletto compõe um bom papel e canta esforçadamente sem ter uma voz grande e densa e os seus graves são pouco convincentes, teatralmente foi muito esforçado, mostrou métier e o seu trabalho musical foi muito bem preparado, a sua voz é pouco ágil e no seu “andante mosso agitato” ponto fulcral da sua composição “cortigiano, vil razza danata” e nos duetos com Gilda, teve dificuldade em articular semicolcheias e tercinas, como é experiente esteve-se nas tintas para a direcção pesada de Martin André e entrou quando quis, às vezes antecipando os tempos de entrada quando o ritmo avassalador da obra o exigia. Entretanto não se entende como o director artístico não deu uma oportunidade de um grande papel a Luís Rodrigues, que estava em palco no papel de pisa palcos como Ceprano que, aliás, realizou brilhantemente com grande densidade teatral no ponto do primeiro acto em que interveio e com uma bela voz, bem timbrada, que imediatamente penetra na sala sem esforço.

A soprano Romina Casucci em Gilda tem a voz feia nos agudos, é muito inexperiente e tem muita falta de confiança no ataque das notas agudas que saem destimbradas, o domínio dos agudos é muito mau entrando muito instável e muito pobre de tímbre sempre que a nota está acima do fá, isso foi notório na ária “Caro nome” em que os saltos de oitava de fá para fá agudo foram penosos quebrandro as palavras para respirar e ganhar coragem para o ataque que saiu miserável, o ataque directo ao lá agudo foi desesperante e não acentuou os lás e sis agudos de passagem depois da segunda suspensão e, finalmente, fez ainda cadências trapalhonas onde dominou o medo e não a confiança necessária para este papel. Ao longo da obra manteve-se sempre neste registo e não vale a pena escalpelizar ainda mais uma interpretação verde.
O tenor Alessandro Liberatore no Duque de Mântua, mostrou maus dotes vocais e, sobretudo, um supremo mau gosto musical e teatral. Esbracejando desbragadamente, o desastre começou na “ballata” de entrada e prosseguiu o martírio ao longo de toda a ópera. Exibiu agudos em esforço, soluços de ataque, e foi incapaz de realizar as dinâmicas escritas por Verdi, notavelmente a total ausência de pianíssimos a três ppp quando canta o seu amor a Gilda no final do primeiro acto no andantino, “È il sol dell’anima”, não consegue apianar sobre o fá grave para depois fazer o melisma em salto de oitava sempre em pianíssimo. Tendo uma voz miseravelmente pequena canta tudo aos seus fracos plenos pulmões passando por toda a música de Verdi, e por toda uma paleta de sentimentos, da mesma forma boçal, sem que exista um mínimo de interpetação, ou direcção por parte do maestro, desta torrente infinita de arrogância da mediocridade. O cantor exibe ainda uma voz sempre na iminência de partir e visivelmente cansada, devido ao esforço que imprime ao seu canto. Sob uma direcção competente poderia melhorar imenso, nem todos podem ter vozes poderosas, poderia jogar com o claro escuro e apostar nos matizes, aproveitado algum bom timbre que, no fundo, ainda poderia restar-lhe. Sendo inteligente, poderia poupar-se para brilhar nos pontos mais exigentes. Mas a direcção pesada de Martin André é completamente insensível a este domínio, o peso da orquestra é tão exagerado, mesmo em acompanhamento, que retira ao cantor a possibilidade, admitindo que teria essa inteligência, de matizar mais a sua interpretação.
Giovanni Furlanetto em Sparafucile mostrou trabalho digno mas pouca profundidade de peito e graves pouco densos, o seu fá de saída no primeiro acto não fez estremecer os corações de tremor pela sua profissão de assassino professional. João Fernandes faria bem melhor e estou a ver mais alguns baixos portugueses que fariam, pelo menos, igual.
A surpresa desta récita, no meio da falta de critério na escolha do elenco, provavelmente por acaso feliz no meio de escolhas falhadas e erráticas, foi a grande voz de contralto de Agostina Smimmero, de uma densidade e profundidade impressionantes, e uma grande naturalidade musical, fez uma prostituta notável. Tem o inconveniente de um físico que a desfavorece em termos teatrais; no entanto, se perder peso poderia perder os dotes vocais e estes são preciosos e raros a nível mundial.
Na orquestra houve momentos de grande lirismo, apesar de Martin André, nomeadamente nos belíssimo solos de oboé. Tivessem seguido os cantores a poesia deste instrumentista e outro galo teria cantado em S. Carlos. O coro, apesar de algumas “fugas” rítmicas, esteve bem, muito moderado em termos cénicos e equilibrado vocalmente.
A direcção musical foi, de novo, muito fraca, André decorou o calhamaço mas não ganhou muito com isso, decorar para a exibição pura e simples não tem o menor significado, teria se ponderasse os planos e os equilíbrios, se preparasse realmente o canto, se entendesse a efervescência e a vivacidade dramática da partitura. A aceleração vertiginosa da obra em direcção ao clímax não foi entendida e a direcção pesada e empastelante, grosseira na sua falta de entendimento das subtilezas, fazem desta direcção um paradigma do que não se deve fazer em Verdi.
A encenação foi de uma “modernização” banal e tristonha, direcção de actores ao Deus dará e motos electricas para um duque que tanto é almirante como motoqueiro em cabedal, tijolos pintados para poupar em cenários e mobiliário tipo IKEA, em que o palácio do duque e beco escuro e abandonado têm a mesma realização, (a partitura tem escrita: Sala Magnifica nel palazzo Ducale splendidamente iluminata!) se o director tivesse poupado na contratação de uma armada de italianos banais como equipa cénica e tivesse optado por uma equipa nacional, certamente haveria quem fizesse melhor do que este chorrilho de banalidades, figurinos de loja chinesa e luzes indiferentes.
Pelo exposto muitos dos protagonistas poderiam ser feitos por cantores portugueses capazes de fazer igual ou melhor, há uma meia dúzia de Gildas superiores e há melhores tenores do que este Liberatore, mesmo num país fraco neste tipo de voz como Portugal. Não se entendem as opções de Martin André num capítulo que também é um desastre financeiro, pois cachets e a estada desta armada italiana durante meses em Lisboa, são muito superiores às dos artistas portugueses. Apostar nesta mediocridade quando há opções melhores neste tempo de crise, é quase insultuoso para o público pagante e para o contribuinte que sustenta o S. Carlos.

Eu próprio, juntamente com mais público, vaiei convictamente o tenor e, sobretudo, o maestro, que também é director artístico e nessa qualidade ali estava, num gozo da minha liberdade de público que pagou o seu bilhete, como é natural, nomeadamente nas mais exigentes casas por esse mundo; como era tradição no S. Carlos, sala sempre muito exigente ao longo da sua história. A reacção do director, ao fazer gestos desbragados num claro insulto ao público, que tem todo o direito de mostrar a sua posição e lhe paga o chorudo vencimento, foi inaceitável e levantou uma pateada merecida.

Bola preta

Etiquetas: , , ,


7.5.13

Um todo muito abaixo da soma das partes 



Henrique Silveira


Crítico


Traviata de Verdi e Francesco Maria Piave, Teatro Nacional de S. Carlos, dia 2 de Maio, última récita, sala cheia.


Il Dottor Grenvil: Luís Rodrigues, brilhante. Gastone: Marco Alves dos Santos; Annina: Leila Moreso; Il Barone Douphol: Mário Redondo; Il Marchese D’obigny: João Merino; Guiseppe: Nuno Cardoso; Un Domestico: Daniel Paixão; Un Commissionario: Costa Campos, todos razoáveis; Violetta Valery: Daniela Schillaci, medíocre; Alfredo Germont: Andrés Veramendi, mau; Giorgio Germont: Damián Del Castillo, péssimo; Flora Bervoix: Joana Seara, erro de casting. Direcção Musical: Martin André, mau; Orquestra Sinfónica Portuguesa e Coro do TNSC, fracos; Encenação e Figurinos: Francesco Esposito, encenação má e figurinos péssimos; Cenografia: Francesco Esposito e Mauro Tinti, má; Coreografia: Domenico Iannone, péssima; Desenho De Luz: Fabio Rossi, péssima.


Fui a esta Traviata com bilhetes comprados e não oferecidos pelo teatro de S. Carlos, como é habitual junto dos críticos. Renunciei a requerer os mesmos ao Teatro nesta produção para ter a liberdade normal num público pagante e sentir a mesma sensação da assistência normal. Fui à última récita propositadamente, nas primeiras récitas há sempre muitos erros que se podem corrigir com a sequência, foi-me dito por diversas pessoas que esta Traviata seria a menos má das produções e que, dos três cantores principais, a Violetta de Schillaci escaparia. Fui com esperança num espectáculo digno de interesse por qualidades cénicas apesar da falta de dinheiro e da pouca qualidade nominal dos cantores. Afinal Martin André, o director artístico, é um maestro, deve ter algum ouvido, mesmo dentro de um orçamento limitado há escolhas excelentes que se podem fazer, ainda por cima com o tempo disponível dado pela quase total ausência de produções operáticas do teatro nacional de ópera.


Constatei que as escolhas de Martin André foram desastrosas, a soprano principal tem a voz pouco rica de harmónicos, a sua emissão é estridente e apitada, o domínio dos agudos é muito mau, entrando desafinada frequentemente sempre que a nota está acima do sol, recorrendo sistematicamente a portamentos de correcção para emendar as notas, tem um vibrato grosso e feio nos médios e não tem graves, tem algum “métier” mas, apesar de ser esforçada, a sua postura em palco é rígida e artificial, talvez culpa de uma fraca direcção de actores. Musicalmente é grosseira e pouco artística, limita-se a seguir André, o que é inseguro, e não tem inteligência própria. Note-se que esta é uma produção em que em lugar de existirem muitos pontos fortes e um ou outro defeito, acontece que é notada por a titular ser escapatória numa completa ausência de qualidade, o que não é admissível.


O tenor Veramendi não tem nível para uma ópera desta envergadura, de voz feia, anasalada (sobretudo na voz de cabeça) e pequena, má técnica vocal: após inúmeros dias de descanso surge cansado e com a voz a partir e com a emissão em grande stress, incapaz de cantar em dueto, sempre fora de tom e com as entradas pouco certas, oitavando notas arriscadas, tem uma dicção do italiano ciciada “a la espanhola” o que é horrível. Precisa de um longo trabalho com um bom professor de canto e de melhorar grandemente a pronúncia italiana.


O “barítono” Damián Del Castillo não tem qualidade musical, em dueto com Schillaci nunca acertou nas entradas, tem mau solfejo, voz muito feia e instável, não tem gravidade vocal arranhando nos agudos e não sendo capaz de graves, de voz pequena foi tapado pela orquestra e pela batuta dura e pesada do maestro, pouco inteligente no trabalho de doseamento de som e incapaz de perceber os compromissos que uma ópera requer.


A Flora de Joana Seara foi fraquita, a sua voz ligeira nada tem a ver com a necessária para Flora, e a sua graça é plastificada, relembro que cantoras como Gundula Janowitz ou Frederica Von Stade cantaram este papel!


Os cantores portugueses estiveram razoáveis nas pouqíssimas linhas que cantaram, o que não permite maiores elocubrações sobre a sua actuação. Realço a voz de Luís Rodrigues, no menoríssimo papel de Grenvil, uma distribuição que, para um cantor com as provas dadas de Rodrigues, é um insulto: sempre que a sua voz surgia fazia esquecer o inenarrável Germont. Não consigo entender como foi dado a um cantor que mal consegue arrastar-se em palco o papel de Germont deixando Rodrigues com o papel de Grenvil, das três uma: ou é ignorância ou surdez ou maus fígados contra os cantores portugueses por parte do director.


A direcção musical foi atroz, André parece que dirigiu de memória, sem papel, isso demonstra falta de respeito e arrogância perante a partitura, Carlos Kleiber, um maestro que fica mal só por ser mencionado na mesma folha de papel do que o medíocre André, levava sempre a respectiva partitura, e era um conhecedor obsessivo da Traviata. André é um maestro de ópera incipiente, que dá entradas com a boca a fingir que canta (!), muitas vezes antecipadamente dois ou três compassos, e reserva as mãos e batuta para controlar, obsessivamente, a orquestra. Ter memória e gostar de Verdi não garantem uma boa direcção e isso verificou-se logo na entrada do primeiro acto em que está escrito: “allegro brillantissimo e molto vivace” e se escutou um “allegreto muito baço e muito mortiço”. Tudo o resto foi de mal a pior, pretendendo controlar a obra com “mão de ferro” o maestro inglês conseguiu que tudo fosse feito com sapatos de ferro, arrastado, sem brilho nem cor, trapalhão no gesto, desprezando a tradição, factor importantíssimo quando se trata de ópera italiana, fazendo as repetições das árias, algo completamente disparatado no contexto do fluxo teatral e que Verdi usou para prevenir os infelizes pedidos de bis do seu tempo. Memorizar sem compreender a essência vertiginosa da obra é um exercício espúrio: sem graça nem brilhantismo nos pontos mais rápidos e sem qualidade de som nem pathos nos momentos mais lentos, a interpretação fica um monolito tristonho.


A orquestra não tem qualidade de som e os acompanhamentos sairam pesados, como se fossem patas de elefante, a tuba, que substitui o cimbasso original contribui para um maior peso. Notou-se algum esforço, mas a qualidade musical é limitada pelo fraco som.


O coro, rouco, envelhecido e muito reduzido limitou-se a berrar, o naipe dos tenores mostrou-se atroz, tudo dentro do costume, felizmente mais afinado e mais certo nas entradas do que já foi norma.


A encenação foi um deserto de ideias, a única e infeliz novidade é a cena em que Germont dá tacadas nas bolas de golfe enquanto Violetta renuncia a Alfredo o que demonstra uma absoluta incompreensão da dimensão da partitura e do sentido dos personagens. Um falso teatro dentro do teatro, que não acrescenta nada, uns camarotes mal feitos, um espelho fosco feito de plástico e uns andaimes fazem de cenários, piores do que os de um festival de Verão de província em que se monta e desmonta uma barraca no próprio dia. Um desenho de luzes inteligente poderia colmatar a pobreza daquilo tudo mas não existiu qualquer desenho de luz, existiram projectores fixos e um amarelo deslavado do princípio ao fim. Os figurinos também não existiram onde existiu, quanto muito, pronto a vestir. A coreografia foi uma palhaçada trapalhona e escolar.


Nem o relógio da sala está certo, marcava seis e um quarto e lá continuou penosamente atrasado durante toda a ópera marcando a decadência e a falta de brio desta direcção, imaginar pior do que isto é, porém possível, imagine-se por exemplo um Rui Massena como director? Quem tivesse essa ideia passaria a ser motivo de chacota para a eternidade.


Acrescento que, neste período de crise, cobrar cinquenta euros por uma plateia é um roubo e um insulto ao público em face do produto muito fraco apresentado.









Bola preta

Etiquetas: , ,


30.3.11

A Luta de Vasco e Nuno 


Ópera Banksters em estreia absoluta no S. Carlos

Henrique Silveira – crítico

Estreia a 18 de Março de 2011 com sala pouco mais de meia. Direcção musical de Lawrence Renes com Orquestra Sinfónica Portuguesa e Coro do Teatro Nacional de S. Carlos. Obra do compositor Nuno Côrte-Real com libreto de Vasco Graça Moura.

É célebre a imagem de Jacob lutando durante a noite com um ser, nunca nomeado mas interpretado como um anjo, nas pinturas de Rembrandt, Delacroix ou na gravura de Doré. Essa imagem vai percorrer a encenação de João Botelho: a luta constante entre esse estranho ser, enviado de um paraíso fiscal, Angelino Rigoleto, tenor Musa Nkuna, e o banqueiro Santiago Malpago, barítono Jorge Vaz de Carvalho. O denso texto original de José Régio, Jacob e o Anjo, que se aplicava a D. Afonso VI é desmontado e reconstruído por Graça Moura que cria um libreto em rima de um finíssimo sentido de humor e musicalidade, misturando alguns elementos brejeiros com uma refinada erudição. A obra original de Régio serve de prancha de salto para a história de um banqueiro, visitado por um ser estranho que precipita a acção. O banqueiro é traído pela mulher, Mimi Kitsch, soprano Sara Braga Simões, e pelo Accionista irmão de Santiago, barítono Diogo Oliveira.

A música de Côrte-Real não acompanha o sentido de humor de Vasco Graça Moura, criando-se assim o principal equívoco desta obra. Côrte-Real sabe utilizar a prosódia e o português resulta muito legível mas aquilo que seria, à partida, uma tragicomédia resulta, através da música, num produto muito enfático, continuamente sobrecarregado na orquestração com uso e abuso dos metais, muito denso de graves, muito repetitivo na exploração do material temático e no abuso da marcação pelos tímpanos, quase sempre em fortíssimo, de ritmos assumidamente brutais, como o do “malhão malhão” dos Zés Pereiras, que deixam o auditor num sufoco de tensão que nunca distende, acabando tudo em ambiente de tragédia pura e dura.

A música é sempre ofegante. As citações contínuas de outros trechos musicais, assumidas ou inconscientes, como o cliché dos violoncelos após um momento mais pungente, acabam por perder o efeito e são mais uma máscara que se confunde com a realidade. Os momentos de grande beleza musical banalizam-se pela sua exploração exaustiva onde falta a concisão. A constante divagação estilística de Crte-Real é uma espécie de barroquismo pós-moderno que, de tão assumido, se torna num pastiche que nem sequer consegue ser reaccionário. Após uma muito interessante e fresca Oratória Popular, estreada recentemente em Torres Vedras, esta ópera é, para mim, uma desilusão.

A encenação de Botelho é primorosa, resultando muito visual e evocativa e muito bem coadjuvado por todos os elementos da equipa cénica.

O maestro não conseguiu dar coesão ao todo e o coro foi a habitual abominável colecção de cromos aos gritos. Grande dignidade na representação e canto de Vaz de Carvalho, com bela dicção, e uma muito interessante Sara Braga Simões [teatralmente] com Diogo Oliveira a cumprir bem, Musa Nkuna foi fraco e Chelsey Chill foi excessiva, o resto dos cantores primou por uma fraca mediania.

**

o - Mau, * - sofrível, ** - interessante, *** - bom, **** - excepcional

Nota -Este texto curto de cerca de 3000 caracteres não me satisfaz. As necessidades jornalísticas forçam-me a uma concisão que, apesar da disciplina que impõe, é castradora e deixa a crítica sempre incompleta. Mas são as regras do jogo.

Etiquetas: , , , ,


20.3.11

Orquestra Sinfónica Portuguesa II 

Publicado originalmente no Jornal "O Diabo"

Henrique Silveira – crítico

Continuamos a analisar nesta edição a Orquestra Sinfónica Portuguesa. Como vimos é uma orquestra fraca que custa ao erário público mais de cinco milhões de euros por ano com os seus cento e dez músicos. Uma orquestra que nada tem evoluído desde a sua fundação. Uma orquestra que oscila na esquizofrenia de ser ao mesmo tempo uma orquestra sinfónica e uma orquestra de ópera e não faz bem nem uma coisa nem outra.

Quais as soluções para este problema crónico? Como escrevemos anteriormente não existe avaliação de desempenho. Os maestros vão e vêm e nunca deixam escrito qual a impressão causada por este ou aquele naipe, ou pelos músicos em particular. Depois das audições para entrar na orquestra nunca mais os músicos têm de provar se estão aptos, os instrumentos são de má qualidade e o som, sobretudo nas cordas, é horrendo. Este estado de coisas, com uma crítica geralmente amorfa e com pouco espaço, leva a que muitos músicos se estejam nas tintas para o estudo e a arte, e a coisa sai como calha e se vão dedicando a outros projectos que lhes vão rendendo proventos extra.

Qual a solução? No meu entender é simples, extinção da orquestra como orquestra “sinfónica” e passagem a “Orquestra Nacional de Ópera”. Redução dos quadros a cinquenta e cinco músicos escolhendo apenas os mais capazes e indemnizando os restantes através de audições com um júri internacional e os músicos a tocar atrás de cortinados. No futuro fazer uma avaliação de desempenho anual, com avaliações pelos maestros e por eventual audição dos músicos. Os avaliados como “insuficiente” por duas vezes teriam de sair da orquestra. Enfim, reformar a orquestra e transformá-la numa organização séria e capaz. Hoje em dia o público está afastado da orquestra pela sua falta de qualidade e esta não presta um grande serviço à comunidade. Deve-se investir o dinheiro poupado, que será da ordem dos três milhões de euros por ano, para fazer uma sala de ensaios e uma sede para a orquestra. Ao longo dos anos o dinheiro poupado permitiria uma muito maior actividade artística do Teatro de S. Carlos.

Para os concertos Portugal conta com orquestras de nível muito superior que cumprem a função de transmitir a música sinfónica ao público, orquestras que têm público fiel e mantém um nível razoável.

Os outros corpos artísticos permanentes sofrem dos mesmo defeitos. O coro do Teatro de S. Carlos é péssimo e os bailarinos da Companhia Nacional de Bailado na sua maioria já nem sequer dançam. É necessário acabar com este estado de coisas que apenas serve para esbanjar dinheiro aos contribuintes portugueses, nesta época de crise, e criar soluções que permitam salvaguardar os artistas e o público.

o

o - Mau, * - sofrível, ** - interessante, *** - bom, **** - excepcional

Esclarecimento (a sair na edição de 22 de Março de 2011) – Nunca escrevi que a OSP deve ser extinta, o que eu defendo é a extinção do nome “Sinfónica” e a substituição por “Orquestra Nacional de Ópera”. Defendo de facto a redução de quadros mas penso que se devem, e cito, : “...criar soluções que permitam salvaguardar os artistas ...”.

Etiquetas: , , ,


Orquestra Sinfónica Portuguesa I 

Publicado originalmente no jornal "O Diabo"
Henrique Silveira – crítico

Mega Ferreira, presidente do CCB, anunciou com pompa e circunstância que a obra Daphnis et Chloé de Maurice Ravel seria apresentada nos Dias da Música, esse sucedâneo da Festa da Música, mais pobrezinho que o evento anterior e baseado fundamentalmente nos mesmos princípios. A obra de Ravel é extraordinária, é necessário um grande refinamento da orquestra e do coro.

A obra vai ser entregue à Orquestra Sinfónica Portuguesa, o que me levou a esta reflexão. Pois fique sabendo que a orquestra custa mais de cinco milhões ao Estado por ano, foi fundada em 1993 e nunca se conseguiu afirmar como uma orquestra razoável sequer no plano português sem falar do plano internacional. Desde a sua criação a Orquestra Sinfónica Portuguesa nunca se livrou de alguns problemas que assolaram a sua existência.

Em primeiro lugar a esquizofrenia de ser uma orquestra de ópera e ao mesmo tempo uma orquestra de concertos, os seus 110 elementos nunca se encontram em conjunto para fazer ópera e nos períodos em que há ópera não se fazem concertos. Se em Viena a Filarmónica, associação livre de músicos do teatro de ópera, se reúne nos seus tempos livres para ensaiar e fazer concertos aos Domingos, com uma carga enorme de trabalho que conjuga mais de 300 noites de ópera com dezenas de concertos, a sinfónica portuguesa terá cinquenta noites de ópera e uma vintena de concertos anuais, com uma produtividade baixíssima. No entanto os seus padrões de qualidade são tão baixos que seria impossível uma maior produção, acresce a isso que a orquestra portuguesa não consegue fixar repertório devido o número ínfimo de vezes que se apresenta em público.

Em segundo lugar esta orquestra tem sido desprezada pelo poder político e por todas as tutelas, sem excepção, desde a sua criação. Não tem uma sala de concertos própria, o que a par da sua falta de qualidade, tem contribuído para um total desfasamento do público. Por outro lado não tem salas de ensaio, estudo, biblioteca, ou gabinetes de trabalho e estúdios para os músicos desenvolverem as suas actividades relacionadas com a orquestra e paralelas e nem sequer espaços de arrumações dignos desse nome têm para guardar instrumentos que podem ser volumosos. Andam com a casa à costas ensaiando onde calha, muitas vezes no impróprio Salão Nobre do Teatro de S. Carlos.

Finalmente a orquestra não tem na sua constituição músicos verdadeiramente excepcionais e não há qualquer avaliação de desempenho. Os lugares são de funcionalismo público, seguros e para sempre. Toquem bem ou mal ninguém os repreende. As críticas eram penosas no início mas a coisa está tão estagnada que os críticos já nem se dão ao trabalho de ir aos concertos e nas críticas das ópera andam pela condescendência e evitam referir-se à orquestra.

Desde 1993 nunca a orquestra evoluiu, os críticos internacionais com quem tenho falado dizem-me sempre: que pena, a vossa orquestra nacional é tão fraca... Se no Índice de Desenvolvimento Humano Portugal aparece pelo lugar 30 a nossa orquestra nacional terá à frente, e de longe, mais de trezentas orquestras, o que diz bem do estado de coisas da orquestra pública.
Continua.

o

o - Mau, * - sofrível, ** - interessante, *** - bom, **** - excepcional

Etiquetas: , , ,


10.3.11

1+1=1 

Henrique Silveira – crítico

O Teatro Nacional de S. Carlos levou à cena mais uma produção, desta feita reuniu a Gianni Schicchi de Puccini a experiência operática Blue Monday de Gershwin. Assistimos a 17 de Fevereiro com a casa quase cheia. Dirigiu Martin André, director artístico do Teatro à frente da OSP. Parece que o grande elo de ligação era o facto de as duas óperas terem sido estreadas em Nova Iorque! Note-se que o Gianni se integra num ciclo de três óperas curtas juntamente com Suor Angelica e Il Tabarro.

Começou-se pela experiência de Gershwin, Blue Monday, produto híbrido de vinte e cinco minutos, nem carne nem peixe, nem jazz, nem blues, nem musical, nem ópera, numa história que pretendia parodiar a ópera verista e que acaba por se tornar num episódio mau de “soap opera” em triângulo em que nem sequer existe intrigalhada. Presentes: Tom o cantor por um João Merino com inglês de Sacavém, a mocinha, Vi por Laura Giordano, que mata o rapaz, o jogador Joe por Mário João Alves, por julgar que este recebeu um telegrama de uma outra mulher que, afinal, era apenas a notícia de que a sua mãe tinha morrido, isto perante os assistentes Mike, dono do café onde se passa a acção por Nuno Dias, e Sam, o faz tudo, por João de Oliveira.

Fracasso claro de Gershwin mais por causa de uma história pobre e teatro deficiente do que pela música que não serve qualquer propósito dramático. Fracasso que mais uma vez se estendeu a esta récita onde Martin André não conseguiu dar um cheirinho de blues e a orquestra esteve monótona e os cantores também se limitaram a cantar as notas e não “o que está entre estas” como disse o maestro numa entrevista.

Já o Gianni Schicchi, foi interpretado com mais entrega pelos cantores, sendo o titular Yanni Yannissis e sua fillha Lauretta por Laura Giordano os mais cotados, cumprindo de forma agradável o papel. A família florentina que se debate pela herança do velho Buoso Donati a quem velam, Maria Luísa de Freitas, Carlos Guilherme, Ana Paula Russo, Miguel Neves, João de Oliveira, Nuno Dias, Jorge Martins, Luisa Francesconi, Simeon Dimitrov, Rui Baeta, Christian Luján e João Rosa estiveram razoáveis com um ligeiro destaque para o sobrinho Leonardo Capalbo. Martin André mais uma vez dirigiu sem grande brilho todo o conjunto mas de forma mais equilibrada do que na ópera de Gershwin e a orquestra, apesar do som miserável dos violinos, cumpriu.

A encenação a cargo de André E. Teodósio foi inapta na direcção de actores em Gershwin, onde os actores cantores andavam à deriva no palco, e mais interessante nas marcações em Puccini onde sublinharam bem o sentido da comédia e do teatro de Puccini. E, se quem tinha visto a desastrosa encenação de “Um Outro Fim” de um barroquismo pós-moderno confusionista, que o encenador coloca numa perspectiva preparatória desta encenação, vai encontrar aqui em Blue Monday e em Schicchi um convencionalismo total. Dá a ideia que o S. Carlos e os estereótipos referidos pelo encenador em diversas entrevistas, como aquele dos casacos de pele do intervalo, o intimidaram e o impediram de se tornar o Schlingensief tuga. É pena, pois é necessário um verdadeiro subversivo em S. Carlos. Sobra a ideia do carro funerário, que desvenda o mistério antes do tempo em Gershwin e é redundante em Puccini. A grande ideia é o carro funerário? E daí?...

Blue Monday – o

Gianni Schicchi – **

o - Mau, * - sofrível, ** - interessante, *** - bom, **** - excepcional

Etiquetas: , ,


Uma Katia Inclinada 

Versão não cortada - a que saiu no jornal teve de ser amputada por razões de espaço.

Henrique Silveira – crítico

Kátia Kabanová – ópera de Leos Janácek, Teatro Nacional de S. Carlos (TNSC), casa muito fraca com menos de metade da lotação. Dia 14 de Janeiro, 20h30m com meia hora de atraso.
Orquestra Sinfónica Portuguesa com direcção de Julia Jones, coro do TNSC. Katerina Kabanová: Ausryne Stundyte, Tichon: Hans Georg Priese, Marfa Kabanová: Dagmar Peckova, Boris: Arnold Bezuyen, Dikoi: Magnus Baldvinsson, Vánia: Finnur Bjarnason, Várvara: Anna Grevelius substituída em playback por Natascha Petrinsky, ainda com Larissa Savchenko, Mário Redondo, Ana Cosme, Luísa Lucena e João Queirós. Encenação de David Alden, figurinos de Jon Morrel, coreografia/equilibrismo: Maxine Braham e luzes de Adam Silverman. Co-produção com o teatro Wielki-Opera Varsóvia e English National Opera.
Com a direcção musical de Julia Jones tivemos o prazer de poder ver e ouvir Janacek (1854-1928) pela segunda vez em alguns dias após “Da Casa dos Mortos” na Gulbenkian. Desta feita o TNSC apresentou uma verdadeira encenação da obra do compositor moravo estreada em 1921.
A prevista Grevelius, com problemas de saúde, não pode cantar e foi substituída à última hora por Petrinsky, que cantou num camarote adjacente ao palco seguindo a partitura. O atraso de meia hora deveu-se à chegada em cima da récita da cantora, que nem sequer. Petrelius ficou em palco a esbracejar e a abrir a boca a fingir que representava e cantava, mas o efeito era sobretudo cómico: o som vinha de um lugar completamente díspar. No entanto parece ter sido a única solução para não cancelar a récita e evitar ao anémico público presente a devolução do valor dos bilhetes. Saúda-se a solução do problema mas os efeitos teatrais foram comprometidos em todas as cenas em que Várvara intervinha.
A direcção musical de Julia Jones foi atenta às vozes e pode-se dizer que foi notável o esforço da substituta para tentar tão em cima do acontecimento salvar a récita e, apesar da descoordenação inevitável, conseguiu-se um resultado vocal sofrível.
A encenação esteriotipada de Alden contava com um plano inclinadíssimo em palco, parece que o encenador quis dar aos cantores o máximo de desconforto, além de actores e cantores, passámos a ter equilibristas no palco do TNSC, daí, provavelmente, a necessidade do coreógrafo Braham, só com grande prática e treino se pode transformar um cantor de ópera numa espécie de artista de circo, uma vez que as marcações, limitadas pela geometria peculiar do palco ficava limitada ao evitar escorregar e cair dentro do fosso da orquestra. Um dos membros do coro deixou mesmo cair um objecto que tinha na mão e este foi cair em cima dos músicos. É caso para dizer que além do traje de cerimónia faltavam capacetes amarelos aos membros da orquestra. Se a inspecção das condições de trabalho fosse mais rigorosa e tivesse feito uma rusga lá acabava a récita antes do tempo por falta de rede.
A casa dos Kabanov era uma espécie de parede de uma barraca gigante, um mastodonte de madeira, que andava de um lado para o outro em palco criando as diversas atmosferas (des)necessárias.
Depois a ideia de que os russos andam todos de colete e barrete e que dentro e fora de casa andam sempre vestidos de igual parece saída de um filme dos anos trinta e não de uma encenação que não entendeu o âmago da peça de Ostrovski, adaptada por um Janacek que faz verdadeiro teatro e caracteriza os personagens do ponto de vista psicológico de forma notável, uma reflexão sobre as fraquezas humanas, a culpa, o amor, a convenção e a religião. Com Alden tudo é estereótipo, tudo é superficial e resume-se a não cair para dentro da orquestra. Pode-se dizer que se percebe que o encenador é homem de teatro e que tem alguma competência mas que não esteve inspirado.
Como sempre ns últimos tempos a que tenho assistido à OSP, esta esteve francamente mal: excessos de som nos metais, violinos horríveis em termos de beleza sonora, desafinados, sem corpo, desconcentração geral e som mal equilibrado e feio.
O coro, alvíssaras, tem uma intervenção muito breve e no meio da tempestade a coisa passou despercebida.
Salvaram-se algumas vozes, sobretudo as da Stundyte e Peckova. Priese e Bjarnsson cumpriram e o tenor Bezuyen, que conhecemos de Bayreuth, esteve muito fraco nos agudos exigentes mas acabou por cumprir no resto. Baldvinsson foi grosseiro vocalmente e teatralmente e exibiu uma voz cansada e envelhecida.
Mesmo assim o nível acabou por superar o dos tempos da última direcção de Dammann.
*

o - Mau, * - sofrível, ** - interessante, *** - bom, **** - excepcional

Etiquetas: , ,


23.10.08

Siegfried no S. Carlos III 

A Sopa de Notas

Em jeito de balanço e após presença na última récita do Siegfried faço uma reflexão sobre a música deste Siegfried dirigido por Marko Letonja. Os meus comentários dizem respeito a esta última récita, bem superior à do dia de estreia em termos de "catástrofes" orquestrais e dos cantores.
Aproveito para me lembrar deste maestro, lembro a destruição arrasadora da partitura da Medeia de Cherubini, lembro alguns concertos menos maus com a Orquestra Sinfónica Portuguesa. Lembro ainda a Valquíria do último ano. Nas lembranças operáticas de Letonja recordo sempre um maestro que atinge um certo ponto e depois desiste de fazer melhor, uma maestro que dirige sempre no "mais ou menos" e que nunca atingiu, em todas interpretações a que assisti, qualquer nível de refinamento ou de grandes qualidades expressivas. No caso de Cherubini a interpretação foi catastrófica, no caso da Valquíria a interpretação foi mais ou menos indiferente.

Mas Wagner, uma observação que se pode estender a outros compositores mas de particular acuidade para o alemão, não se pode ficar pelo "mais ou menos". Ser "wagneriano" tem que se lhe diga. É necessário o estudo, é necessária a paixão, a "obra de arte total" não está ao alcance do primeiro que compra a "edição da Dover do Siegfried", como Letonja revelou ter comprado, e fez umas semanas de ensaios com a OSP. Por outro lado a visão de "encenador" da obra, deixa o maestro claramente na sombra, Letonja é apenas mais um instrumento ao serviço de Graham Vick e das suas ideias.

Não é alheio a isto o facto de tocar com menos duas harpas e catorze cordas do que o escrito por Wagner e realizado desde então em Bayreuth, ou pela Filarmónica de Berlim ou nos Proms de Londres ou em Mannheim ou Valência. Enfim, por todo o lado: dos Estados Unidos até ao Extremo Oriente... menos em Lisboa. Como se deu a volta ao Teatro de S. Carlos para se acabar com um fosso sem espaço? É algo que continua incompreensível e que, depois disso, haja um bom "maestro" capaz de dirigir nessas circunstâncias torna-se insondável. É evidente que depois de se escutar o trabalho de Letonja, da OSP e dos cantores, o insondável torna-se transparente.

A direcção de Letonja poderia ser até uma direcção "edição Dover", uma edição baratinha mas com um certo aprumo e digna mas acabámos a escutar uma sopa de notas sem ênfase, sem arquitectura nem rumo, onde os motivos condutores foram apresentados sem alma nem glória, embebidos no visco sonoro informe, sem realce, sem verve, sem cor, onde as indicações dinâmicas e as articulações foram integralmente desrespeitadas, onde passagens inteiras eram tocadas descoordenadamente por violinos e violas, eles primeiro... elas atrás. Nesta última récita os violoncelos primaram por um som horrível e desafinados (v.g. murmúrios da floresta) e onde as violas corresponderam com notas erradas, passagens destruídas, incapacidade de articulação do que está escrito. Nas passagens mais complexas foram passando staccati a legati alegremente. Os violinos desafinaram do princípio ao fim, e foram transformando as articulações escritas, geralmente cheias de cor e detalhe onde primam contrastes dinâmicas em passagens difíceis, sforzandi aqui e ali e acentuações por todo o lado em cima de escalas com staccati pelo meio, numa massa caótica com a articulação feita da forma para conseguir "dar" as notas e o menos possível para tocar o que está escrito de forma confiante e afirmativa. Foi notória uma passagem onde vem escrito "sempre staccato" pelo punho do Wagner, e onde a "edição Dover" do maestro não esquece a indicação, que foi tocada "sempre legato" e feita sem uma única acentuação. Entretanto os metais parecem só conhecer duas indicações: meio forte e fortíssimo e com a resalva da tuba lá conseguir ainda reunir forças para um "ainda mais forte" como vem escrito, louvada seja, apesar de se debater com o problema do fôlego que leva o instrumentista a interromper notas sustentadas para respirar e voltar ao assunto, que é como quem diz: à mesma nota mas agora de peito mais aliviado. Tem a desculpa de uma interpretação arrastada, lentíssima, que torna qualquer tubista num homem deprimido e sem fôlego... Uma interpretação que parece desconhecer as indicações de Porges, Levi, Mottl ou Kniese e do próprio Wagner que comentou que Richter (na estreia em Bayreuth) andou devagar demais e a arrastar: "se os senhores não fossem tão aborrecidos o Ouro estava acabado em duas horas!" Não seguir ou não estudar, ou ignorar ou querer ignorar, o que se escreveu, não se conhecer a nova edição da obra e andar a comprar a edição de vinte euros não quer dizer que não se toque uma "edição Dover" da obra: se fosse tocada como vem escrita na referida edição já não era nada mau... Mas a Letonja e ao S. Carlos exige-se a Neue Richard-Wagner-Gesamtausgabe.

Assim tivemos duzentos e setenta minutos de Siegfried na estreia e duzentos e cinquenta e cinco minutos na última récita! Evolução brilhante, que retira sob a mesma direcção cerca de quinze minutos ao empadão final. Se na última récita o Siegfried foi arrastado imagine-se agora a estreia... Recordo que Amsterdão fez o mesmo Siegfried em 2004 em duzentos e vinte e três minutos. O maestro Hartmut Haenchen seguiu a nova edição Richard Wagner e estudou a fundo as indicações recolhidas da boca de Wagner por Porges. Imagine-se a OSP a fazer o Siegfried em menos 47 minutos do que na estreia!!! Se esta produção foi o caos musical com menos 47 minutos o que seria?...

Uma palavra para a trompa, sempre em elevado plano. Já a tuba, como apontei, deixou-me algo insatisfeito. Noto que ambos os instrumentos são bem importantes para o fluxo discursivo da obra. O corne inglês a imitar a cana rachada de Siegfried saiu perfeito.

As madeiras não tiveram a qualidade de som exigível e no seu conjunto padeceram do mesmo mal do resto da orquestra: ausência de cor e de nuance. Falta de trabalho do detalhe. Falta de ênfase e cuidado na articulação. Som surdo devido à posição no fosso. Escaparam alguns solos apesar do clarinete baixo ter cultivado um som pesado e forte, provavelmente para se poder ouvir, em detrimento de um maior lirismo. As madeiras saíram sempre em défice sonoro face ao resto da orquestra, um desequilíbrio manifesto muito por falta do maestro.

O prelúdio do terceiro acto foi um dos piores momentos da direcção de Letonja, os metais com um peso brutal e sem a tal nuance que se impõe nos sforzandi e nas articulações abafaram todo o resto da orquestra. As cordas em número insuficiente e de baixa qualidade ou não se ouviam ou, quando apareciam, escutava-se uma espécie de miado longínquo das notas mais agudas dos violinos. As madeiras, neste trecho, pareciam que estavam lá ao longe dentro de um poço sem fundo. Tudo mesclado numa espécie de caldo informe onde os temas esbracejavam para se poderem escutar e sobressair no meio do viscoso mar de crude que invadiu o teatro no segundo acto e o fosso durante toda a récita, acabámos a escutar repetidamente o tema da lança servido pelos pulmões pujantes da banda metálica.

Outros momentos paradigmáticos desta informe massa sonora foram os murmúrios da floresta e o inenarrável caos sonoro pós quebra da lança de Wotan em que o fogo mágico de Loge soou atabalhoado, com notas erradas nos violinos, numa passagem exigente que acabou por ficar muitíssimo aquém do exigível para uma orquestra profissional e sob a batuta de uma maestro caro e competente.

Entretanto os cantores lá se esforçavam no espaço da arena do S.Carlos, o Siegfried de Stefan Vinke é um Siegfried sem refinamento, que sabe gritar muito cantando muito pouco, sem temperamento lírico e a cantar nas oitavas abaixo no terceiro acto: acima do sol, em notas sustentadas, podia-se contar quase sempre com a oitava abaixo porque a voz já não dava para mais e o cantor estava a ficar rouco. Além disso Vinke arrasta para além do tempo possível a gritaria de cada nota sustentada. Além disso, e apesar do alemão ser a sua língua, canta com voz de "sopinha de massa", fazendo lembrar o lamentável Wotrich...

Samuel Youn no Viandante apesar de ter belos agudos e uma voz de barítono com presença, cantou de forma muito irregular, de forma algo soluçante, sem nobreza da grande linha vocal. Faltou-lhe gravidade e profundidade nos graves. Tem o defeito de entrar sempre, ou quase sempre, atrasado o que além de ser sistemático revela problemas de musicalidade que devem ser resolvidos com mais treino e trabalho. A sua noção do tempo de entrada e do ritmo é perfeitamente aleatória acabando muitas vezes a arrastar as notas. Youn tem um belo futuro se controlar estes erros.

O Mime de Colin Judson foi muito conseguido, no meu entender, com uma bela presença de actor e uma belíssima colocação vocal num papel incrivelmente ingrato.
O Fafner de Dieter Schweikart foi conseguido sem causar grande impressão, é pouco profundo como baixo, mas é o possível.
A Erda de Gabirele May deve-se ter ressentido da encenação, o facto de aparecer senil e provavelmente com uma doença incapacitante, fez com que a voz aparecesse muito feia, destimbrada mesmo. May é, neste momento, tudo menos contralto.
Susan Bullock foi razoável mas distante da forma como abordou a Valquíria: vibrato excessivo, voz com poder mas com falta de convicção. Estava à espera de melhor mas, mesmo assim, foi muito razoável, a voz ainda tem o chicote da Valquíria mas falta-lhe a frescura necessária para a jovem heroína.
O pássaro da floresta de Chelsey Chill foi conseguido, creio que a canadiana encontrou aqui o papel da sua vida, apropriado ao seu registo estreito, voz metálica e nasalada, com agudos pobres e graves inexistentes. A tessitura estreita e uniforme deste pássaro da floresta é o ideal para a cantora. Entretanto a voz nos saltos para cima, notório no lá agudo, desliza de forma muito pouco natural, fazendo um brutal sforzando em stress ao atacar o som mais agudo atacado em fortíssimo agressivo sem qualidade, quando na partitura não existe qualquer indicação dinâmica e o canto deva fluir natural e uniforme. É o papel da vida deste pássaro mas, mesmo assim, bem longe do ideal.

Wagner sem música não é obra de arte total, nem sequer é obra de arte. Dar ao encenador o papel total é reduzir a dimensão da obra. O meu Wagner tem música, não sei como será o Wagner do leitor, ou como o leitor quer o seu Wagner. Os críticos da nossa praça parecem esquecer este lado e preferir o Wagner do encenador. Não percebo esta abordagem, creio que essa visão é provinciana e coxa. É uma visão sem referentes e, sobretudo, sem grande amor pela obra deslumbrante do compositor alemão.
Esta produção é um risco interessante como conceito, no entanto creio ser um falhanço enquanto obra de arte total e um falhanço estrondoso no capítulo musical. O meu balanço é francamente negativo e as culpas vão direitinhas para um maestro pouco wagneriano e complacente, para uma orquestra sem grande qualidade, sobretudo nas cordas, para uma encenação que despreza a música e uma cenografia que rouba espaço a uma verdadeira orquestra wagneriana. Veremos como corre o Crepúsculo dos Deuses, onde o coro entra de forma fundamental, mas a 75% desta produção o balanço é desolador, sobra a revolução no teatro e pouco mais.

Etiquetas: , , , , ,


20.7.08

Concerto vergonhoso 

Prometi a mim próprio não ser destrutivo numa crítica, não o farei agora, destrutiva foi a indiferença, a falta de precisão, o amadorismo, a falta de qualidade sonora, a desconcentração inenarrável, a ausência de qualquer sensibilidade musical, a sopa de som informe e maçuda da Orquestra Sinfónica Portuguesa no concerto do Festival do Estoril no Teatro Camões no dia 18 de Julho.
A peça de Colla foi uma berraria do princípio ao fim, sem textura nem cor.
O concerto de Sibelius com um violinista excelente a lutar contra a apatia sonora da orquestra que apenas soube produzir uma espécie de pasta sonora que se agarrava ao som belo poderoso, sensível e transparente de Ovrustsky, um violinista a merecer ser notado a nível mundial.
A peça de Ince, Memórias de Lycia, foi o culminar do cataclismo. Será que os senhores dos violinos (simplesmente caóticos), madeiras (lamentável a falta de precisão nas partes mais ritmadas), percussão (sem controle de som) e todo o resto da orquestra, não percebem que o facto da obra ser estreia em Portugal não os obriga a tocar de forma empenhada mesmo que ninguém conheça a obra? Não percebem que desafinação, descontrolo no tempo, falta de ritmo, som horrível, arcadas trocadas e sons desconexos, pizzicatos completamente desfasados, entradas erradas, descoordenações entre naipes e dentro dos naipes, não são perceptíveis mesmo numa obra que nunca se escutou antes? Uma obra com imensas qualidades simplesmente arrasada pela interpretação displicente desta orquestra indisciplinada e sem qualidade.
O maestro David Miller, que escutei noutras oportunidades, tem qualidade, nada pode fazer contra este estado de coisas apesar das suas indicações precisas e o compositor ao piano suava e tentava adaptar-se o melhor possível a um caos total.
Desastre: quando um concerto é assim a crítica não arrasa, quem arrasou é a orquestra. Arrasaram a música vestidos de camisa preta, sem cor nem chama, sem alegria nem empenho, celebraram o funeral da música ao longo de duas horas de concerto.

Bola preta.

Etiquetas:


15.2.08

Orquestra Sinfónica Portuguesa em Concerto 

A Orquestra sinfónica portuguesa fez um concerto razoável no CCB na passada terça feira, dia 12 de Fevereiro. Um maestro esforçado, Enrico Dovico. Um violoncelista mediano Matt Haimovitz num concerto de Elgar sofrível. Dezasseis cantores solistas para uma cantata de Vaugham Williams, solistas entre o péssimo (...) e o bom (Luís Rodrigues), na obra que constituiu a pior parte do concerto.
Uma segunda parte mais interessante com as variações de Britten (op. 34) e as Enigma de Elgar (op. 36), tocadas com energia e com alguma segurança, embora eu tenha apontado alguns desacertos nos sopros nas partes mais complexas. O pior defeito continua a ser a falta de brilho nas cordas o que faz da OSP uma orquestra sem qualidade de som: a OSP ainda não tem o som de uma orquestra sinfónica, muito por culpa dos violinos.

Menos de trezentas pessoas na sala e frente de sala desatenta a criancinhas aos gritos, a saltar nas cadeiras da plateia com estrondo, a rastejar pelo chão, e comportar-se de forma vergonhosa apesar da presença de adultos por perto (talvez os pais) que se mantiveram imperturbáveis às diatribes dos petizes. Lamentável a desatenção dos rapazitos e rapariguitas ao serviço do CCB que deviam assegurar que estas coisas não acontecem num concerto público.

Etiquetas: ,


13.1.08

Uma sinfonia, mas não de Mahler 

Volto às críticas com a OSP, ontem (12 de Janeiro de 2008, 21h, CCB) na segunda de Mahler em dó menor, a direcção foi de Julia Jones. Um concerto para 11.5 valores.

Gostei, muito relativamente ao que tenho ouvido destes intérpretes, da forma como a orquestra abordou a obra, concentrada, profissional na medida das suas possibilidades, dirigida de forma suave e redonda por Julia Jones.

Infelizmente a grande preocupação foi o "não falhar", o que se justifica pelos recentes descalabros interpretativos desta orquestra, finalmente sob uma batuta relativamente competente. Assim, não existiu uma verdadeira interpretação da obra. A música foi fluindo plana: chata no sentido da ausência de nuance, ausência de sforzandi, ausência do trabalho de som nas cordas na dinâmica e expressão, houve suavidade excessiva nas madeiras sem qualquer relevo dado à expressão, onde dar as notas sem falhanços foi a tónica.
A haver algum brilho foi nos trompetes e nalguns apontamentos excepcionais dos trombones, onde o solista no primeiro trombone, em solos de grande qualidade e trabalho sobre o som, se destacou de forma notável sobre o marasmo global. Escapou também um solo de flauta a imitar os pássaros onde o primeiro flauta se superou, até por um certo descontrolo na emissão, numa interpretação global absolutamente indiferente e sem risco. Sem muita expressividade, em toda a restante actuação, no único ponto onde a flauta arriscou o belo e surpreendente foi atingido, é caso para dizer que "quem não arrisca não petisca"...

Julia Jones limitou-se a marcar bem, a dar entradas, a manter as coisas cosidas, era a sua função perante este tipo de "não interpretação" que privilegiou o manter o tecido coeso e integrado e não o trabalho estético, não a produção do som; faltou expressividade no jogo dos temas suaves contraposto à violência das fanfarras e das marchas fúnebres, que vão marcando esta peça colossal que é a "Ressureição" de Mahler. Elogia-se o belo gesto da maestrina, elogia-se a sua atenção e elegância no pódio. Elogia-se a atenção profissional dos músicos e o facto da sinfonia não ter sido assassinada por um maestro incompetente logo à partida (costume cada vez mais frequente no S. Carlos), mas seria necessário um trabalho muitíssimo mais profundo para um resultado de qualidade. Ouviu-se no CCB uma leitura, uma passagem razoável de ensaio, e não uma interpretação que necessitaria de muitíssimo mais trabalho preparatório. Foi uma sinfonia, mas não a verdadeira segunda sinfonia de Mahler por uma orquestra profissional. Se fosse um concerto de uma orquestra de um conservatório teria sido bom, assim foi apenas sofrível. Um resultado mediano porque a música de Mahler tocada desta forma resiste, ainda assim, e pode-se entrever a ideia da obra através da planura de uma leitura sem plano conceptual que não seja o "não errar", mas o detalhe, essência da construção do compositor, não foi trabalhado, o âmago da obra, com a sua angulosidade, com o risco do abismo sobre o infinito, não foi atingido. Foi uma espécie doce de Mahler, apesar do barulho, este que escutámos. Faltou a emoção, o lado sombrio e o tormento, faltou o sublime da "Ressureição". Este não é o meu Mahler.

Para se perceber o que quero dizer tenho de entrar no detalhe, pois é de detalhe o que faltou e o que Mahler mais pede, a arquitectura global vive de mútiplas visões e camadas cada vez mais reduzidas, eu diria fractais, que na sua completude fazem a obra. Vou assim destacar os pontos mais insuficientes e que mereceriam mais trabalho de preparação e de construção.


Notas específicas sobre o primeiro andamento: Allegro maestoso (peça autónoma e composta com grande antecedência relativamente ao resto da obra), utilizo a edição original de 1897, fixada pelo próprio Mahler:

Achei, logo de entrada, muito trôpega e confusa a entrada dos contrabaixos e violoncelos, sobretudo no acelerando no final do compasso 4, o que retirou muito impacto à enérgica e violenta entrada na sinfonia, mas estes naipes estiveram, no geral, bem acima (foram razoáveis) dos naipes de violas (este muito fraco) e dos violinos (relativamente fraco).
Os inúmeros sfp, ffp, os sffp dos violinos (e restantes cordas) sairam sem a menor ênfase, aliás a própria entrada ao compasso 21 e seguintes saiu extremamente magra em termos sonoros e continuou magra até ao fim culminando com a ausência de som do ff ao compasso nº418 onde o ff saiu magro e pífio nos violinos (sol agudo a medo) onde o diminuendo seguinte não teve qualquer efeito por ausência de contraste. Verdadeiramente confrangedores aos compassos 95 e 96, onde o sf com glissando e diminuendo não foi feito.
As flautas fizeram a passagem ao compasso 103 e seguintes sem respeitar as indicaçãoes escritas nomeadamente no crescendo-diminuendo do compasso 104 e em legato excessivo, não escrito, facto que se manteve até ao final (comp. 211 até à marca de ensaio 14 - onde até o violino solo foi bastante mais expressivo, etc, etc, etc), o que retirou energia às passagens que deveriam ser mais agrestes. As madeiras foram, aliás, sempre indistintas e sem acentuação, facto notável nos compassos 176 e seguintes em que nem sequer se conseguiram ouvir, enquanto por essa zona os crescendos diminuendos dos primeiros e segundos violinos foram absolutamente indistintos (compassos 169 e seguintes) tocando sempre em f e sem respeitar as indicações dinâmicas que vão variando sistematicamente entre o piano e o forte, facto que se repetiu ad nauseam, comp. 186 e seguintes por exemplo - a excepção foram os compassos 375 (4 compassos depois do nº de ensaio 23) onde os glissandos sairam bonitos mas sem respeitar as indicações dinâmicas (e de expressividade) da primeira semínima de cada compasso.
O corne inglês aos compassos 258 e seguintes não realizou os diminuendos, facto que repetiu mais algumas vezes.
Completamente decepcionante foi, ainda no primeiro andamento, a saída ao violentíssimo "Tempo I", compasso 329, em que o naipe das violas fica a descoberto com o bombo, parecia que não existia uma única viola a fazer o trémolo de tal modo se instalou um buraco sonoro depois do tremendo clímax do início deste compasso, o próprio bombo não conseguiu reagir e criar o efeito desejado que vai do fff ao pp, com as violas com um ffp completamente insatisfatório e denotando má sonoridade e incapacidade de reacção como naipe: uma vez instalado o buraco em vez de um diminuendo entre o p e o pp tivemos um crescendo para "tapar o buraco" neste naipe.
Aos compassos 346 e seguintes o som das madeiras resultou horrível, entre o desafinado e o descontrolado, até a banda de Quadrazais faria melhor!
O naipe das trompas esteve particularmente inseguro nas entradas de conjunto, o que foi notório ao compasso 335 logo antes do número de ensaio 21, na última nota deste compasso, mas este fenómeno repetiu-se inúmeras vezes, ao contrário do usual neste naipe, creio que seria fastidioso dar mas exemplos.


Notas específicas sobre o segundo andamento: Andante moderato:

Queixo-me neste andamento da falta de expressividade, notória logo de entrada, mas que começou a ser demasiado evidente aos compassos 44 (na entrada flauta marcada espress.) e 46 (clarinete), onde se calhar estava escrito nas partes monot como abreviatura de "monótono"... entretanto os três ppp e a indicação sempre ppp escritos na partitura eram inacessíveis aos violinos, violas, violoncelos e contrabaixos que, olimpicamente, e apesar da redução de efectivos, continuavam em mp ou mesmo mf, isto tornou-se muito marcado aos compassos 48 e seguintes com a líndissima passagem das cordas a soar tudo menos ppp, (indicação que se prolonga até à marca de ensaio 4 no compasso 64) e que depois continua até às entradas das flautas, trompas e tímbales no compasso 68, devendo permanecer ppp até ao compasso 74 onde começa (começaria) uma evolução dinâmica de dimimuendo e crescendo (depois do compasso 75), onde se dá uma sequência de sf, dim, ppp, sfmf, e sempre em diminuendo passando por sfp, sfpp e terminando em ppp nas cordas; esta sequência termina logo antes da marca 5 (compasso 85). O que é certo é nada disto se ouviu, faltou aqui um trabalho sério de produção sonora, de refinamento, de qualidade no detalhe que enriquece sobremaneira a interpretação desta sinfonia e que se pode escutar em TODAS as gravações de referência. Isto não é apenas uma questão de estilo ou de gosto do director, é uma questão de respeito pelo que está escrito na partitura.
Ler desta forma plana e sem ênfase, sem acentuação, uma obra destas é tremendamente pobre. A falha no meu entender é claramente do concertino, será que os músicos não fazem ensaios de naipe para preparar os detalhes de uma obra desta envergadura e com este nível de exigência? Considero esta passagem como um desastre. O público em grande medida talvez não se apercebe, porque as notas até foram dadas, porque não tem a partitura ao alcance da mão. Mas nota-se que falta algo e o que se perde é um mundo.
As indicações molto espress. nos violoncelos foram respeitadas, mas com demasiado poder sonoro, exagerando as muito moderadas indicações dinâmicas de Mahler. Pianos súbitos, pp súbitos, crescendos de p que terminam em pp súbito, os três fff que nunca se ouvem (exemplo: compasso 132), a dinâmica sempre entre mp e f mostram uma falta de qualidade intrínseca das cordas que só se resolve ou com despedimentos ou com muito trabalho de naipes. Enérgico e agitado, onde?
Marca de ensaio 7: que confusão, onde está o ffp, o fp nos primeiros violinos e violas, onde estão as nuances dinâmicas, diferenciadas para toda a orquestra??? Ficaram na partitura. Bonita a respiração na marca 8 (escrita por Mahler), mas que depois não sai contrastada suficientemente pelo demasiado forte, no que deveria ser o pp, das cordas ao compasso 164. Inexactos os divisi aos compassos 187 sem respeitar a dinâmica pedida, imprecisão nos compassos 202 e seguintes nas perguntas e respostas entre cordas agudas e graves. Falta de contraste e de trabalho de conjunto nos decrescendos dos seis compassos anteriores. Desafinação no compasso 254, começando no ré bemol e acabando no sol nos primeiros violinos. E etc. etc. etc. de tal forma que se torna fastidioso exemplificar tudo.
Julia Jones para respeitar o que Mahler pediu na partitura deveria esperar cinco minutos entre o primeiro e o segundo andamentos. Esperou um minuto e quarenta! Até neste ponto o detalhe não foi respeitado. Este não é o meu Mahler.

Este post será completado com a análise dos restantes andamentos (coro e solistas incluídos) e uma análise do programa de sala, tradução (muito fraca) e da estrutura da obra.

Etiquetas: , ,


15.11.07

Ordem e Caos - Razão e Emoção 

Depois de um jejum penitencial de alguns dias volto ao blogue. Volto para escrever a propósito de concertos desta semana, sobre a Orquestra Sinfónica Portuguesa e a sua falta de rumo e de estratégia.

Tenho sido acusado, justa ou injustamente, de escrever com demasiada paixão e, às vezes, sem razão. Vou tentar ser desapaixonado sobre um assunto que não pode deixar indiferentes em termos de razão e de emoção os portugueses amantes de música.

Começo pela Sinfónica Portuguesa. Esta orquestra tem uma história recente, recebe fundos do Estado Português de onde retira quase exclusivamente o seu orçamento. Tem também uma história de desconsideração enorme por parte dos poderes públicos, sem condições para ensaiar, sem meios, sem maestro titular desde a saída de Soltan Péskó que deixou aliás uma memória de péssima qualidade artística. Depois de outros maestros titulares sem a menor marca ou valor a orquestra está neste momento entregue aos bichos, sem uma política efectiva de gestão artística, que se arrasta com a contratação deste novo director artístico do teatro nacional de S. Carlos que tem a tutela da orquestra sinfónica portuguesa, e que trabalha em part time em Lisboa. O desleixo relativamente à OSP é tão grande que nem sequer um concertino principal (1º violino solista e chefe de naipe dos violinos) tem neste momento.

Não existe qualquer razão emocional que ligue os portugueses a esta orquestra dirigida inicialmente por Álvaro Cassuto. É considerada nacional e internacionalmente, muito justamente, como uma orquestra fraca e pouco empenhada.

Esta orquestra custa ao erário público português muitos milhões de euros, creio que só em vencimentos e reforços atinge os 3 milhões, importância mínima para uma verdadeira orquestra sinfónica e um desperdício neste caso. Dedica-se a fazer algumas óperas, cada vez menos, que necessitam de recursos muito menores do que o seu efectivo, ficando muitos músicos em casa. Faz ainda alguns concertos muito esporadicamente e em número muitíssimo menor que qualquer orquestra sinfónica nacional. Não tem uma temporada de concertos coerente. A sua qualidade é muito baixa e isso nota-se quando os maestros são também eles de qualidade muito baixa, como neste ano com um rapaz alemão do qual não me recordo o nome e com um José Cura em que se atingiu o nível da indigência musical num concerto pretensamente de "gala" e que foi mais um concerto de miséria. Uma orquestra incapaz de tocar as notas da nona de Beethoven apesar da falta de direcção de José Cura não pode ostentar o nome de orquestra. Orquestra significa organização, significa concerto de personalidades e de valências musicais artísticas, e o que temos com a OSP é uma desorganização, uma desestruturação orgânica, é um agrupamento em fase de disrupção. Hoje a OSP é desagregação, é falta de motivação. O desrespeito por parte da tutela da cultura leva à desculpabilização dos músicos pela falta de qualidade artística do seu trabalho e a um desinteresse de muitos dos músicos pelo seu trabalho e pela música.

Esquecem-se no entanto que a música e o respeito pelo público e por si próprios estão acima da real desvalorização do papel da orquestra por parte dos poderes públicos que até são tutelados por professores catedráticos e não apenas por jovens turcos carreiristas oriundos das juventudes partidárias...

Qual a solução para este problema? Penso que a solução é simples. A OSP não tem qualquer património, não criou afectos ou empatias com o público. Os concertos no CCB estão às moscas, apesar de chuvas copiosas de convites, mesmo quando dirigidos por maestros de qualidade que por vezes disfarçam a real dimensão do problema com uma semana de ensaios mais ou menos atribulados. Quando aparece uma "estrela" lá se vai ao concerto e este enche, devido ao nome da estrela e, em muitos casos, para tirar os vestidos da naftalina, isto acontece sobretudo no velho teatro. O público lá vai aquentando a orquestra para ter o prazer de escutar uns dós de peito do tenor ou uns sobreagudos da diva, que nisto do gosto lusitano que quanto mais berrar o tenor ou mais guinchar a diva mais palmas e bravos levam, e têm de ser agudos, que baixos e contraltos não têm nunca o mesmo sucesso em Portugal do que os seus comparsas que andam no arame das notas perigosas...
Por outro lado a esquizofrenia de uma orquestra sinfónica sem sede, sem espaço, sem director, que não se sabe se é de ópera ou sinfónica, leva a uma permanente indefinição.
Recordo o exemplo da Metropolitana de Lisboa, que sob a direcção de Michael Zilm e de outros bons maestros e a uma política inteligente e apaixonada de Gabriela Canavilhas, apesar da tradicional barragem de críticas que muitos "melómanos" e outros maldicentes lusos lhe levantam, tem levado a um aumento de qualidade efectivo desta orquestra e a um aumento real de qualidade.
Mas nada se faz sem cortar, sem doer, a metropolitana tem despedido músicos, alguns até com capacidades, mas que provaram ao longo do tempo ser incapazes de manter um nível elevado sabe-se lá porque razões.

Extinção da OSP, a única solução

É neste contexto que penso que a solução seria acabar com a OSP. A extinção desta orquestra é a única solução que vejo no horizonte. O plano seria muito simples, criar uma orquestra de ópera, com cerca 40 músicos abaixo do efectivo da actual, que se especializasse em ópera e, em menor escal, bailado. A simples razão de se fazer Wagner com menos 19 cordas do que o previsto na partitura "porque não cabem no fosso" é razão mais do que suficiente para pensar numa orquestra muito mais económica. Nas grandes produções em que é necessário uma orquestra grande, a nova "Orquestra do S. Carlos" seria reforçada com músicos pagos específicamente para a tarefa. Poupar-se-ia ao erário público muitos milhões de euros em vencimentos, contribuições, reformas e segurança social.

Na contratação de músicos para esta orquestra seria dada prioridade aos músicos da actual OSP que mostrassem qualidade para tocar. Quem seria o júri destas contratações? Seriam músicos de elevadíssimo padrão internacional a presidir ao júri, exemplo Rattle, Abbado, Haitink, Gardiner. Não haveria a menor ingerência do poder político nesta questão, nem delegados do Secretário de Estado nem membros nomeados pela OPART, ou por nomeação do director artístico. Pedir-se-ia ao maestro de nomeada, presidente dos júris, que decidisse dos diferentes avaliadores para avaliar os instrumentistas. Cada painel teria que ser formado por músicos de nacionalidades diferentes (para evitar enviesamentos estilísticos, regionais ou outros), este maestro nomearia os especialistas dos diversos instrumentos para fazer as avaliações para cada naipe. Esta orquestra teria reavaliações obrigatórias a cada três anos.
Teria de ser nomeado um director artístico presente e permanente. Este esquema permitiria poupar dinheiro em vencimentos de forma a pagar um vencimento decente ao director para atrair gente de qualidade elevada e não um simples Peskó (que mesmo assim ganhava 4000 euros por mês mesmo quando não punha cá os pés), ou mesmo um Ranzetti ou, pior, um destes rapazes saídos do conservatório que têm aparecido sem qualquer noção do que é gerir o tremendo caldeirão de personalidades que é uma orquestra. Os vencimentos dos músicos da orquestra seriam mais elevados do que os actuais em cerca de vinte por cento. Mesmo triplicando o vencimento do titular e pagando mais vinte por cento aos músicos da nova orquestra poupar-se-ia uma soma de cerca de quinhentos mil euros por ano, o suficiente para pagar uma renda de uma sede e pagar todos os extras e mais alguns, com um aumento extraordinário de qualidade.
O problema é que mesmo pagando o triplo, hoje, creio que não há nenhum maestro de craveira internacional que aceite vir dirigir a Sinfónica Portuguesa. É evidente que a nova orquestra da ópera do S. Carlos teria de ter uma política claríssima de procura da qualidade, a partir da sua criação, o que já poderia ser estimulante para um maestro de elevado nível. Noto que ao vencimento do titular acrescem sempre os cachets dos concertos e óperas que dirige, já o foi assim no tempo de Peskó...

O coro do S. Carlos seria refundado a partir do nada, já que o que
"existe" é menos que nada, com um juri internacional para o qual convidaria (para presidir) Eberhard Friedrich, para mim o melhor maestro de coro de ópera do mundo.

Primeiros Violinos: actual 19, nova orquestra 12: -7
Segundos Violinos: actual 17, nova orquestra 10: -7
Violas: actual 15, nova orquestra 8: -7
Violoncelos: actual 11, nova orquestra 6: -5
Contrabaixos: actual 9, nova orquestra 4: -5

Flautas: actual 4, nova orquestra 3: -1
Oboés: actual 4, nova orquestra 3: -1
Clarinetes: actual 4, nova orquestra 3: -1
Fagotes: actual 4, nova orquestra 3: -1
Trompas: actual 6, nova orquestra 3: -1
Trompetes: actual 4, nova orquestra 3: -1
Trombones: actual 4, nova orquestra 3: -1
Tuba: actual 1, nova orquestra seria extra: -1
Percussão: actual 4, nova orquestra 1 (só tímpanos): -3
Harpa: actual 1, nova orquestra seria extra: -1

Existem outros modelos, de forma ainda mais radical poder-se-iam reduzir as madeiras a pares ou, noutro sentido, poder-se-iam manter tuba e harpa. É evidente que aqui escrevo em abstracto, não tenho razões de queixa artísticas, quaisquer que sejam, dos instrumentistas em particular.

A esta nova orquestra seria dado o edifício da CNB como sede, que seria totalmente remodelado. O bailado seria transferido para outras instalações a construir de raiz na área envolvente do teatro Camões.

Portugal ficaria sem orquestra sinfónica nacional. Por enquanto sim. Quem questiona isto tem como resposta duas perguntas:
Será que Portugal tem uma Orquestra Sinfónica Nacional? Aquela que tem o nome de Orquestra Sinfónica Portuguesa é motivo para orgulho?
Dispenso-me de dar uma resposta.

Etiquetas: , , , ,


7.6.07

O talento da manipulação 

Vieira de Carvalho continua com um grave problema de lógica, como posso constatar na entrevista no Jornal de Letras de hoje. Vieira de Carvalho, o hermenêuta da Ajuda, atira uns números para o ar, percebe-se que com o OPART poupa-se um milhão e trezentos mil euros. Segue a sequência da entrevista.

O jornalista pergunta: Como?
Hermeneuta: Sobretudo com a redução de quadros dirigentes.
J. Foram despedidos?
H. Não: há menos directores de serviços, menos directores gerais.
J. E foram para onde?
H. Continuam a trabalhar, grande parte deles com funções diferentes.
J. A ganhar menos... Se ganham o mesmo, não houve poupança.
H. Os termos dos vencimentos estão regulados. Não dou mais detalhes.

Genial, fica ao leitor a hermenêutica, sem necessidade de recorrer à arte das cifras exóticas.

Mais à frente o senhor Hermeneuta, que sendo catedrático de musicologia e licenciado em direito, parece que nunca aprendeu a fazer contas:

"O S. Carlos custa 38.000 euros por dia. Cada assinante por oito óperas recebe 2.500 de subsídio do Estado, o que significa seis salários mínimos nacionais. É o teatro de ópera mais caro da Europa."

Vejamos as falácias das divisões na nossa arte de prestidigitação numérica: o S. Carlos fica a menos de 4 milésimos de euro por dia a cada português e a 3 cêntimos de euro por récita por lusitano residente em Portugal e que pode ouvir essas mesmas récitas pela antena 2! O S. Carlos é mesmo barato, o total dos dinheiros públicos gastos na ópera na Alemanha por cidadão é mais de cinquenta vezes mais... E quanto custa o gabinete do Sr. Hermenêutica a cada português? Não será também ele demasiado caro para a produtividade que tem? Fica o repto para se fazerem essas contas.

Admitindo que as divisões do secretário estão certas, recordamos que em orçamento o S. Carlos é um dos teatros de ópera mais baratos do mundo, curiosamente por isso é que sai caro por récita. Para fazer mais produções é necessário dotar as instituições de um orçamento para produções além dos custos fixos. Vieira de Carvalho diz que Lisboa é a cidade com ópera mais cara da Europa. Se a culpa não fosse do governo ainda percebia o lamento, mas como esta situação é integralmente da culpa do executivo não percebo o queixume, ou é pouco inteligente ou é manipulador. Explico a fundamentação do que digo:

O S. Carlos tem 13 milhões de euros por ano, qualquer teatro de capital europeia supera largamente os trinta milhões.
O S. Carlos gasta pelo menos dez milhões em custos fixos. Sobram uns tostões para as tais oito óperas. Imagine-se que com três milhões se fazem oito óperas. Quando dá? 50 euros por ópera por espectador, bem distante do que o secretário anda a apregoar! O público paga mais do que isso por bilhete médio! Imagine-se agora que em vez de oito óperas tinha 32 produções, o quádruplo. Já houve mas no tempo do Salazar, era fascista mas, do mal o menos, gostava de música, fica aqui o lembrete a Teixeira dos Santos e a Sócrates de que o seu modelo gastava umas massas no S. Carlos e ouvia depois o resultado pela Emissora Nacional, Programa 2. O Salazar não era só fazer processos disciplinares e meter malta na cadeia quando diziam mal do Presidente do Conselho numa conversa de amigos presenciada por um qualquer bufo.
Seriam agora necessários 12 milhões para estas 32 produções. Colocamos 13 milhões para se fazerem umas coisas com uns cantores melhores que a Theodossiou. Estes 13 milhões são a parte variável do orçamento, e representam os mesmos cinquenta euros, apenas em custos de produção, por espectador/récita. Gastávamos menos do dobro do orçamento actual e passávamos a ter, em vez de oito miseráveis óperas, 32 óperas por ano, qualquer coisa como 4 estreias nos meses activos da temporada.
Façamos agora as contas à moda do hermeneuta 13 + 10 = 23 milhões. O hermeneuta divide os 13 milhões por 1000 lugares a 90 por cento de ocupação e a uma média de seis récitas, obtém assim cerca de 2500 euros para o ciclo de oito óperas por espectador. Quanto o número sobe para 23.000.000, supomos agora que há 32 produções cada com uma média de sete récitas, existem 1000 lugares e mantém-se os 90% de ocupação. Fica agora a cerca de 110 euros por récita/espectador, longe dos 312.5 do hermeneuta. O que é que isto quer dizer? Subiu-se o orçamento para 23 milhões, ainda assim abaixo do Real de Madrid, de Paris, numa ínfima fracção de Berlim com as suas três óperas, a léguas de Viena, abaixo do teatro de Colónia ou mesmo do pequeno teatro de Mannheim, e o preço desceu para 110 euros. Conclusão: Lisboa, por culpa do governo, tem a ópera mais cara do mundo. É claro que também tem um dos governos mais caros do mundo em termos do que lhes pagamos e do benefício que trazem ao país, zero.

E quanto paga o espectador? 60 euros por bilhete, o subsídio por espectador passaria assim para os 50 euros por récita/espectador! Repare o leitor que este subsídio não é para o espectador ver uma ópera: o bilhete cobre o preço da produção (custo variável), o subsídio é para manter o teatro, a orquestra, o coro, o património, o know how, o prestígio internacional de Portugal. Repare-se que a orquestra não faz apenas ópera. Dividir o orçamento actual do S. Carlos apenas pela ópera é mais uma manipulação.

Como reduzir ainda mais a factura do Estado aumentando o consumo artístico? A solução é incrivelmente simples, reduzir a o número de récitas aumentando o número de produções. Parece impossível? Não, não é impossível, basta construir um teatro moderníssimo com 3000 lugares. Cada produção passaria a ter apenas entre duas a três récitas, os custos variáveis de um teatro de ópera dependem fortemente dos números de récitas. Os cantores solistas e os maestros recebem por récita: um maestro razoável recebe 15.000 euros pela estreia e 10.000 pelas récitas seguintes, um cantor (cachet muito variável) recebe também à récita. Além disso um teatro moderno e funcional passaria ser muito mais eficiente em termos de custos de produção.
Por outro lado dava-se à OSP uma possibilidade de ter uma sede fixa digna. O actual teatro de S. Carlos passaria a fazer festivais e música antiga, uma vez que é uma sala de ópera quase em estado original e de uma beleza única.

A contas actuais, e continuando a fazer os mesmos espectáculos por ano, 50 récitas, em 25 produções, cada uma vista por 5600 pagantes, teríamos muitíssimos mais espectadores. Seria o triplo dos espectadores actuais. Seria possível com custos estatais globais (fixos mais variáveis) que estimo em cerca de 16 milhões, apenas mais três milhões do que o orçamento estatal actual, ter cerca de 25 produções. O custo nesta nova situação seria de 110 euros por espectador, também um terço do actual! E apenas com um investimento anual de mais três milhões de euros e, claro está, um grande investimento num teatro novo de ópera mas que ficaria como obra de arte para o futuro num país que não faz nada a não ser consumir-se e a não deixar registo. Acho bem mais importante um bom teatro de ópera do que o aeroporto da Ota. Antes de criar aeroportos deve-se criar qualidade de vida para os que estão cá e para os que nos visitam, senão esta coisa fica mesmo um deserto...

Em Portugal parece loucura uma obra destas, os liberais e outros imbecis vão logo gritar "aqui d'el rei que se anda a gastar dinheiro dos contribuintes", na Itália e em França não foi loucura e rendeu. Recordo a Bastilha, Aix-en-Provence com o seu novo teatro, Valência (decorre a temporada inaugural) e a renovação do Alla Scala.
Mais uma vez Lisboa fica na cauda do mundo, pelo secretário de estado da cultura que tem, um mero sintoma da indigência nacional, e por tudo o resto, com a cultura sempre no fim de, absolutamente, tudo.

Etiquetas: , , , ,


4.6.07

Onde vive esta gente? 

Leio no Público a uma espécie de candidato a crítico sempre em estado de deslumbramento, entre a barbaridade de dizer que para a lady Macbeth não é preciso saber cantar bem (!!!) e que Verdi queria por em causa o belcanto italiano (!!!!!!!). Sobre os efectivos de que dispunha o fraquíssimo Pirolli neste Macbeth de Verdi: "Porque conta com um coro de qualidade, uma orquestra capaz..." Um coro de qualidade? Será que tem alguém da família no coro do S. Carlos? É que apenas um surdo com alguém muito chegado no coro pode dizer que o coro é de qualidade e a Orquestra Sinfónica Portuguesa é capaz! A orquestra é fraquinha e o coro é muito mau. Há erros e erros, há diferenças de opinião, mas dizer que o coro do S. Carlos é de qualidade só por anedota ou ironia, o que não parece francamente o caso.

Remédio para o rapaz, e pago pelo "O Público": ir a um teatro de ópera por essa Europa ouvir um coro decente e ser obrigado a ouvir trinta concertos seguidos da OSP e depois ir ouvir um concerto a Leipzig ou Dresden com as orquestras locais...

P.S. (Ao fim do dia) Não há coincidências! Telefonaram-me a dizer que o rapaz tem uma prima no coro! Não sabia mas parece-me que uma prima não é razão que baste para se dizer que aquilo é um coro com qualidade, devia ser um parente mais próximo que justificasse um erro tão grosseiro. Afinal é mesmo surdez crítica.

Etiquetas: , , , ,


Arquivos

This page is powered by Blogger. Isn't yours?