9.6.14
Norma ou o império do mau gosto
Henrique
Silveira – Crítico
Norma,
ópera composta por Bellini (1801-1835) com libreto de Romani
(1788-1865) em dois actos, Teatro Nacional de S. Carlos, TNSC, 4 de
Junho, estreia. Orquestra Sinfónica Portuguesa (OSP), Coro do Teatro
Nacional de S. Carlos (CSC), direcção de Speranza Scappucci,
maestro de Coro: Giovanni Andreolli. Pollione: Alejandro Rey, tenor
espanhol, Oroveso: Wojtek Gierlach, baixo polaco, Norma: Dimitra
Theodossiou, soprano grego, Adalgisa: Patrizia Biccirè, soprano
italiano, Clotilde: Cátia Moreso, meio-soprano português e Flavio:
Bruno Almeida, tenor português. Versão de concerto, sala a três
quartos.
Uma
nota inicial: fomos a S. Carlos contrariados, não é do nosso agrado
escutar ópera, nomeadamente a belíssima obra de Bellini e Romani,
em versão de concerto, nem é função do TNSC ter uma temporada de
ópera com três versões de concerto. Por isso vetámos as duas
versões anteriores, até por serem de compositores relativamente
menores. A curiosidade venceu no caso desta Norma, primeiro a música
é muito boa, em segundo lugar não escutávamos o soprano grego há
alguns anos. Sempre tivemos dúvidas sobre as suas qualidades e
queríamos comprovar a evolução da cantora, apresentada pelo
consultor artístico Pinamonti como se fosse uma espécie de grande
diva mundial. É certo que uma ópera em versão de concerto nunca
poderá concorrer com o verdadeiro produto teatral, nunca podendo
aspirar a uma total satisfação do público. Norma constituía assim
um grande risco, sendo uma obra complexa do ponto de vista musical e
extremamente difícil para cantores medíocres apenas poderia
resultar interessante com intérpretes superlativos.
Começamos
pela direcção musical. A italiana Scarappuci é franzina mas tem
gestos duros e feios, a sua postura no pódio é agreste e angulosa,
tem o péssimo hábito de bater com o pé, de forma percussiva e
violenta o que é tremendamente incomodativo, quer do ponto de vista
estético, quer do ponto de vista da violenta pancada que se sente
momentos antes de mais um acorde intenso um fortíssimo do coro ou
uma entrada dos metais. Parece que Bellini não escreveu para bombo,
tímpanos e… “sapatadas de maestro” quando assinalou os
compassos da percussão. Acontecem assim sucessivos anticlímaxes nos
pontos em que Bellini procura efeitos de contraste e surpresa,
resulta muito estranho, a meio de um pianíssimo dos violinos,
escutarmos as patadas vigorosas da maestrina antecedendo um forte
súbito que aparece uns instantes depois, estragada a surpresa pela
violenta cacetada. Constatando esta idiossincrasia da senhora logo na
sinfonia inicial percebemos que a elegância musical iria estar
arredada da interpretação pela pose da artista, o que se confirmou
ao longo da noite. Não é com patadas de natureza hípica que se
dirige a extraordinária melodia e o belíssimo legato com que
Bellini, compositor inspiradíssimo, dotou a sua música. Outro
aspecto verdadeiramente negativo foi o facto de a maestrina não
dirigir os cantores mas, pelo contrário, ser dirigida por estes. Uma
coisa é saber escutar as vozes e dar-lhes tempo de respiração,
outra é arrastar e parar a evolução musical sempre que há uma
nota mais aguda em que um tenor vaidoso gosta de se ouvir ou um
soprano de ego monstruoso se quer deliciar deleitada com os seus
dotes de diva. Bellini apenas constrói coloraturas ao serviço do
discurso verbal e do fluxo dramático, não há cadências espúrias,
parar em cada nota mais exibicional, tipo guitarristas a acompanhar o
fadista em cada final de fado, final que se repete centenas de vezes,
dando tempo ao cantor de exibir vaidades pouco consentâneas com as
suas reais capacidades e destruindo a propulsão musical e o discurso
rítmico e melódico, arrasando cantar natural da musicalidade do
poema ao serviço da presunção dos divos é destruir a ideia da
obra e o génio de Bellini. Espalhafato gratuito, deselegância
musical, fortíssimos desproporcionados, falta de equilíbrio dos
planos sonoros, direcção pesadona, arrastamento constante nas
passagens lentas e em muitas que deviam ser rápidas, entradas em
falso, todos estes factos contribuíram para uma confrangedora falta
de nexo musical, de fluxo dramático e de ausência de tensão que
arrasaram negativamente a música de Bellini.
A
soprano Dimitra Theodossiou contribuiu para a enorme falta de gosto
desta Norma. Nem discutimos o facto de parecer um mostruário de
berloques e brilhantes, facto que deixamos para outros críticos mais
mundanos. O que interessa é a falta de qualquer elegância vocal,
agudos pesados e baços e médios feios, vibrato monstruoso e voz
aparentemente envelhecida, a única justificação para as tremendas
dificuldades de respiração poderia ser um problema de saúde que a
soprano pareceu invocar assoando-se de forma falsamente recolhida. É
inadmissível que uma cantora, vendida como se fosse a diva das
divas, se apresente a cantar “casta diva” sem conseguir concluir
de forma fluida uma única frase completa. Respirando a meio das
palavras, sem conseguir sustentar o legato, parando para se deleitar
com alguns agudos, a cantora foi uma sombra musical do que parece ter
sido há alguns anos. Junte-se a isto uma géstica histérica e
desproporcionada, mais a fazer-se ao gosto fácil de um público
pouco exigente, abrindo desabridamente os braços, num estilo que
deixaria Amália Rodrigues corada de embaraço, Dimitra Theodossiou
foi um modelo de exuberante espalhafato quando se pedia contenção,
um personagem sem evolução, que não passou a figura hierática
inicial para a mortal encarnação do frágil eterno feminino no
desfecho fatal a que se condenou. Theodossiou foi uma má Norma que,
mesmo assim, convenceu o ignorante público presente que aplaudiu a
pretensa diva de forma ostensiva.
O
espanhol que cantou Pollione foi grosseiro e incapaz de nuance apesar
da voz grande e do peito farto. Cometeu o erro de entrar no despique
dinâmico com uma sempre pronta para a gritaria Theodossiou no
terceto final do primeiro acto, apagando completamente a voz bonita,
mas pequena, da Biccirè, facto que se repetiu nos duetos com esta,
demonstrando falta de companheirismo e de inteligência artística.
Resulta muito mais musical e lógico no contexto dramático manter o
equilíbrio vocal com a ingénua a quem seduz, depois de ter feito
dois filhos a Norma a quem traiu de forma canalha. Provavelmente o
tenor também não seria capaz de moderar a voz, uma vez que não tem
um grande domínio sobre o seu poderoso instrumento, cantando sempre
em poder e nunca em subtileza, o tenor espanhol precisa de reformar o
seu canto, deve procurar um bom professor de canto que lhe ensine
elegância e subtileza pois a voz, a plenos pulmões, é bela e o
instrumento tem qualidades.
A
Adalgiza de última hora, uma vez que substituiu uma cantora incapaz
que ou foi mal escolhida ou adoeceu (versão oficial), foi correcta.
Tendo a elegância que faltou a todos os outros titulares, Bicciré
foi inteligente, delicada e suave, conseguiu sustentar um dueto de
alto nível com a desbragada Theodossiou que, pelo menos aqui, foi ao
encontro da soprano italiana.
O
cantor polaco Gierlach cantou sistematicamente de pernas abertas e
mostrou-se particularmente boçal do ponto de vista musical, apesar
de mostrar bons agudos e consistência na emissão, precisaria de
outra direcção para moderar a deselegância natural.
Os
portugueses Cátia Moreso e Bruno Almeida estiveram muitíssimo bem,
ela densa e consistente mostrou uma voz aveludada e boa presença,
apesar de uns sapatos ruidosos que faziam estremecer todo o teatro
quando entrava e saía. Bruno Almeida esteve também excelente com
uma voz quente e bonita nos agudos, muito bem colocada, a mostrar um
belíssimo trabalho de fundo.
A
orquestra não comprometeu, mostrando bons sopros e cordas graves, a
banda de palco portou-se de forma regular e o coro foi muito bem
preparado para esta produção por Giovanni Andreolli, apesar de
algum excesso de volume. Rápida e incisiva foi a invocação
“Guerra”, tratou-se de um lenitivo no arrastamento global imposto pela
batuta de chumbo da maestrina.
Nota
muito positiva para o programa de sala com belos textos, apesar de
não existir uma crítica e um distanciamento aos pontos débeis na
dramaturgia, que os há, e ao lado superficial que orientava o
divertimento para as emoções dos burgueses que era a indústria da
ópera no início do século XIX. Existe um lado deliberadamente
kitsch – já no seu tempo – a puxar ao sentimentalismo, em que é
paradigmática, por exemplo, a ária final de Norma destinada à
lágrima fácil, mostrando o saber inteligente de Bellini na sua
relação com o seu público, facto que não é explorado no
programa. Felizmente há outras leituras subjacentes dentro da
partitura e, no capítulo das leituras secundárias, o programa é
muito feliz.
Uma
estrela
Etiquetas: Coro do S. Carlos, Crítica aos programadores, Crítica de Concertos, Crítica de Ópera, Orquestra Sinfónica Portuguesa, S. Carlos
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