7.5.13
Um todo muito abaixo da soma das partes
Henrique Silveira
Crítico
Traviata de Verdi e Francesco Maria Piave, Teatro Nacional de S. Carlos, dia 2 de Maio, última récita, sala cheia.
Il Dottor Grenvil: Luís Rodrigues, brilhante. Gastone: Marco Alves dos Santos; Annina: Leila Moreso; Il Barone Douphol: Mário Redondo; Il Marchese D’obigny: João Merino; Guiseppe: Nuno Cardoso; Un Domestico: Daniel Paixão; Un Commissionario: Costa Campos, todos razoáveis; Violetta Valery: Daniela Schillaci, medíocre; Alfredo Germont: Andrés Veramendi, mau; Giorgio Germont: Damián Del Castillo, péssimo; Flora Bervoix: Joana Seara, erro de casting. Direcção Musical: Martin André, mau; Orquestra Sinfónica Portuguesa e Coro do TNSC, fracos; Encenação e Figurinos: Francesco Esposito, encenação má e figurinos péssimos; Cenografia: Francesco Esposito e Mauro Tinti, má; Coreografia: Domenico Iannone, péssima; Desenho De Luz: Fabio Rossi, péssima.
Fui a esta Traviata com bilhetes comprados e não oferecidos pelo teatro de S. Carlos, como é habitual junto dos críticos. Renunciei a requerer os mesmos ao Teatro nesta produção para ter a liberdade normal num público pagante e sentir a mesma sensação da assistência normal. Fui à última récita propositadamente, nas primeiras récitas há sempre muitos erros que se podem corrigir com a sequência, foi-me dito por diversas pessoas que esta Traviata seria a menos má das produções e que, dos três cantores principais, a Violetta de Schillaci escaparia. Fui com esperança num espectáculo digno de interesse por qualidades cénicas apesar da falta de dinheiro e da pouca qualidade nominal dos cantores. Afinal Martin André, o director artístico, é um maestro, deve ter algum ouvido, mesmo dentro de um orçamento limitado há escolhas excelentes que se podem fazer, ainda por cima com o tempo disponível dado pela quase total ausência de produções operáticas do teatro nacional de ópera.
Constatei que as escolhas de Martin André foram desastrosas, a soprano principal tem a voz pouco rica de harmónicos, a sua emissão é estridente e apitada, o domínio dos agudos é muito mau, entrando desafinada frequentemente sempre que a nota está acima do sol, recorrendo sistematicamente a portamentos de correcção para emendar as notas, tem um vibrato grosso e feio nos médios e não tem graves, tem algum “métier” mas, apesar de ser esforçada, a sua postura em palco é rígida e artificial, talvez culpa de uma fraca direcção de actores. Musicalmente é grosseira e pouco artística, limita-se a seguir André, o que é inseguro, e não tem inteligência própria. Note-se que esta é uma produção em que em lugar de existirem muitos pontos fortes e um ou outro defeito, acontece que é notada por a titular ser escapatória numa completa ausência de qualidade, o que não é admissível.
O tenor Veramendi não tem nível para uma ópera desta envergadura, de voz feia, anasalada (sobretudo na voz de cabeça) e pequena, má técnica vocal: após inúmeros dias de descanso surge cansado e com a voz a partir e com a emissão em grande stress, incapaz de cantar em dueto, sempre fora de tom e com as entradas pouco certas, oitavando notas arriscadas, tem uma dicção do italiano ciciada “a la espanhola” o que é horrível. Precisa de um longo trabalho com um bom professor de canto e de melhorar grandemente a pronúncia italiana.
O “barítono” Damián Del Castillo não tem qualidade musical, em dueto com Schillaci nunca acertou nas entradas, tem mau solfejo, voz muito feia e instável, não tem gravidade vocal arranhando nos agudos e não sendo capaz de graves, de voz pequena foi tapado pela orquestra e pela batuta dura e pesada do maestro, pouco inteligente no trabalho de doseamento de som e incapaz de perceber os compromissos que uma ópera requer.
A Flora de Joana Seara foi fraquita, a sua voz ligeira nada tem a ver com a necessária para Flora, e a sua graça é plastificada, relembro que cantoras como Gundula Janowitz ou Frederica Von Stade cantaram este papel!
Os cantores portugueses estiveram razoáveis nas pouqíssimas linhas que cantaram, o que não permite maiores elocubrações sobre a sua actuação. Realço a voz de Luís Rodrigues, no menoríssimo papel de Grenvil, uma distribuição que, para um cantor com as provas dadas de Rodrigues, é um insulto: sempre que a sua voz surgia fazia esquecer o inenarrável Germont. Não consigo entender como foi dado a um cantor que mal consegue arrastar-se em palco o papel de Germont deixando Rodrigues com o papel de Grenvil, das três uma: ou é ignorância ou surdez ou maus fígados contra os cantores portugueses por parte do director.
A direcção musical foi atroz, André parece que dirigiu de memória, sem papel, isso demonstra falta de respeito e arrogância perante a partitura, Carlos Kleiber, um maestro que fica mal só por ser mencionado na mesma folha de papel do que o medíocre André, levava sempre a respectiva partitura, e era um conhecedor obsessivo da Traviata. André é um maestro de ópera incipiente, que dá entradas com a boca a fingir que canta (!), muitas vezes antecipadamente dois ou três compassos, e reserva as mãos e batuta para controlar, obsessivamente, a orquestra. Ter memória e gostar de Verdi não garantem uma boa direcção e isso verificou-se logo na entrada do primeiro acto em que está escrito: “allegro brillantissimo e molto vivace” e se escutou um “allegreto muito baço e muito mortiço”. Tudo o resto foi de mal a pior, pretendendo controlar a obra com “mão de ferro” o maestro inglês conseguiu que tudo fosse feito com sapatos de ferro, arrastado, sem brilho nem cor, trapalhão no gesto, desprezando a tradição, factor importantíssimo quando se trata de ópera italiana, fazendo as repetições das árias, algo completamente disparatado no contexto do fluxo teatral e que Verdi usou para prevenir os infelizes pedidos de bis do seu tempo. Memorizar sem compreender a essência vertiginosa da obra é um exercício espúrio: sem graça nem brilhantismo nos pontos mais rápidos e sem qualidade de som nem pathos nos momentos mais lentos, a interpretação fica um monolito tristonho.
A orquestra não tem qualidade de som e os acompanhamentos sairam pesados, como se fossem patas de elefante, a tuba, que substitui o cimbasso original contribui para um maior peso. Notou-se algum esforço, mas a qualidade musical é limitada pelo fraco som.
O coro, rouco, envelhecido e muito reduzido limitou-se a berrar, o naipe dos tenores mostrou-se atroz, tudo dentro do costume, felizmente mais afinado e mais certo nas entradas do que já foi norma.
A encenação foi um deserto de ideias, a única e infeliz novidade é a cena em que Germont dá tacadas nas bolas de golfe enquanto Violetta renuncia a Alfredo o que demonstra uma absoluta incompreensão da dimensão da partitura e do sentido dos personagens. Um falso teatro dentro do teatro, que não acrescenta nada, uns camarotes mal feitos, um espelho fosco feito de plástico e uns andaimes fazem de cenários, piores do que os de um festival de Verão de província em que se monta e desmonta uma barraca no próprio dia. Um desenho de luzes inteligente poderia colmatar a pobreza daquilo tudo mas não existiu qualquer desenho de luz, existiram projectores fixos e um amarelo deslavado do princípio ao fim. Os figurinos também não existiram onde existiu, quanto muito, pronto a vestir. A coreografia foi uma palhaçada trapalhona e escolar.
Nem o relógio da sala está certo, marcava seis e um quarto e lá continuou penosamente atrasado durante toda a ópera marcando a decadência e a falta de brio desta direcção, imaginar pior do que isto é, porém possível, imagine-se por exemplo um Rui Massena como director? Quem tivesse essa ideia passaria a ser motivo de chacota para a eternidade.
Acrescento que, neste período de crise, cobrar cinquenta euros por uma plateia é um roubo e um insulto ao público em face do produto muito fraco apresentado.
Bola preta
Etiquetas: Crítica de Ópera, Orquestra Sinfónica Portuguesa, S. Carlos
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