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23.10.08

Siegfried no S. Carlos III 

A Sopa de Notas

Em jeito de balanço e após presença na última récita do Siegfried faço uma reflexão sobre a música deste Siegfried dirigido por Marko Letonja. Os meus comentários dizem respeito a esta última récita, bem superior à do dia de estreia em termos de "catástrofes" orquestrais e dos cantores.
Aproveito para me lembrar deste maestro, lembro a destruição arrasadora da partitura da Medeia de Cherubini, lembro alguns concertos menos maus com a Orquestra Sinfónica Portuguesa. Lembro ainda a Valquíria do último ano. Nas lembranças operáticas de Letonja recordo sempre um maestro que atinge um certo ponto e depois desiste de fazer melhor, uma maestro que dirige sempre no "mais ou menos" e que nunca atingiu, em todas interpretações a que assisti, qualquer nível de refinamento ou de grandes qualidades expressivas. No caso de Cherubini a interpretação foi catastrófica, no caso da Valquíria a interpretação foi mais ou menos indiferente.

Mas Wagner, uma observação que se pode estender a outros compositores mas de particular acuidade para o alemão, não se pode ficar pelo "mais ou menos". Ser "wagneriano" tem que se lhe diga. É necessário o estudo, é necessária a paixão, a "obra de arte total" não está ao alcance do primeiro que compra a "edição da Dover do Siegfried", como Letonja revelou ter comprado, e fez umas semanas de ensaios com a OSP. Por outro lado a visão de "encenador" da obra, deixa o maestro claramente na sombra, Letonja é apenas mais um instrumento ao serviço de Graham Vick e das suas ideias.

Não é alheio a isto o facto de tocar com menos duas harpas e catorze cordas do que o escrito por Wagner e realizado desde então em Bayreuth, ou pela Filarmónica de Berlim ou nos Proms de Londres ou em Mannheim ou Valência. Enfim, por todo o lado: dos Estados Unidos até ao Extremo Oriente... menos em Lisboa. Como se deu a volta ao Teatro de S. Carlos para se acabar com um fosso sem espaço? É algo que continua incompreensível e que, depois disso, haja um bom "maestro" capaz de dirigir nessas circunstâncias torna-se insondável. É evidente que depois de se escutar o trabalho de Letonja, da OSP e dos cantores, o insondável torna-se transparente.

A direcção de Letonja poderia ser até uma direcção "edição Dover", uma edição baratinha mas com um certo aprumo e digna mas acabámos a escutar uma sopa de notas sem ênfase, sem arquitectura nem rumo, onde os motivos condutores foram apresentados sem alma nem glória, embebidos no visco sonoro informe, sem realce, sem verve, sem cor, onde as indicações dinâmicas e as articulações foram integralmente desrespeitadas, onde passagens inteiras eram tocadas descoordenadamente por violinos e violas, eles primeiro... elas atrás. Nesta última récita os violoncelos primaram por um som horrível e desafinados (v.g. murmúrios da floresta) e onde as violas corresponderam com notas erradas, passagens destruídas, incapacidade de articulação do que está escrito. Nas passagens mais complexas foram passando staccati a legati alegremente. Os violinos desafinaram do princípio ao fim, e foram transformando as articulações escritas, geralmente cheias de cor e detalhe onde primam contrastes dinâmicas em passagens difíceis, sforzandi aqui e ali e acentuações por todo o lado em cima de escalas com staccati pelo meio, numa massa caótica com a articulação feita da forma para conseguir "dar" as notas e o menos possível para tocar o que está escrito de forma confiante e afirmativa. Foi notória uma passagem onde vem escrito "sempre staccato" pelo punho do Wagner, e onde a "edição Dover" do maestro não esquece a indicação, que foi tocada "sempre legato" e feita sem uma única acentuação. Entretanto os metais parecem só conhecer duas indicações: meio forte e fortíssimo e com a resalva da tuba lá conseguir ainda reunir forças para um "ainda mais forte" como vem escrito, louvada seja, apesar de se debater com o problema do fôlego que leva o instrumentista a interromper notas sustentadas para respirar e voltar ao assunto, que é como quem diz: à mesma nota mas agora de peito mais aliviado. Tem a desculpa de uma interpretação arrastada, lentíssima, que torna qualquer tubista num homem deprimido e sem fôlego... Uma interpretação que parece desconhecer as indicações de Porges, Levi, Mottl ou Kniese e do próprio Wagner que comentou que Richter (na estreia em Bayreuth) andou devagar demais e a arrastar: "se os senhores não fossem tão aborrecidos o Ouro estava acabado em duas horas!" Não seguir ou não estudar, ou ignorar ou querer ignorar, o que se escreveu, não se conhecer a nova edição da obra e andar a comprar a edição de vinte euros não quer dizer que não se toque uma "edição Dover" da obra: se fosse tocada como vem escrita na referida edição já não era nada mau... Mas a Letonja e ao S. Carlos exige-se a Neue Richard-Wagner-Gesamtausgabe.

Assim tivemos duzentos e setenta minutos de Siegfried na estreia e duzentos e cinquenta e cinco minutos na última récita! Evolução brilhante, que retira sob a mesma direcção cerca de quinze minutos ao empadão final. Se na última récita o Siegfried foi arrastado imagine-se agora a estreia... Recordo que Amsterdão fez o mesmo Siegfried em 2004 em duzentos e vinte e três minutos. O maestro Hartmut Haenchen seguiu a nova edição Richard Wagner e estudou a fundo as indicações recolhidas da boca de Wagner por Porges. Imagine-se a OSP a fazer o Siegfried em menos 47 minutos do que na estreia!!! Se esta produção foi o caos musical com menos 47 minutos o que seria?...

Uma palavra para a trompa, sempre em elevado plano. Já a tuba, como apontei, deixou-me algo insatisfeito. Noto que ambos os instrumentos são bem importantes para o fluxo discursivo da obra. O corne inglês a imitar a cana rachada de Siegfried saiu perfeito.

As madeiras não tiveram a qualidade de som exigível e no seu conjunto padeceram do mesmo mal do resto da orquestra: ausência de cor e de nuance. Falta de trabalho do detalhe. Falta de ênfase e cuidado na articulação. Som surdo devido à posição no fosso. Escaparam alguns solos apesar do clarinete baixo ter cultivado um som pesado e forte, provavelmente para se poder ouvir, em detrimento de um maior lirismo. As madeiras saíram sempre em défice sonoro face ao resto da orquestra, um desequilíbrio manifesto muito por falta do maestro.

O prelúdio do terceiro acto foi um dos piores momentos da direcção de Letonja, os metais com um peso brutal e sem a tal nuance que se impõe nos sforzandi e nas articulações abafaram todo o resto da orquestra. As cordas em número insuficiente e de baixa qualidade ou não se ouviam ou, quando apareciam, escutava-se uma espécie de miado longínquo das notas mais agudas dos violinos. As madeiras, neste trecho, pareciam que estavam lá ao longe dentro de um poço sem fundo. Tudo mesclado numa espécie de caldo informe onde os temas esbracejavam para se poderem escutar e sobressair no meio do viscoso mar de crude que invadiu o teatro no segundo acto e o fosso durante toda a récita, acabámos a escutar repetidamente o tema da lança servido pelos pulmões pujantes da banda metálica.

Outros momentos paradigmáticos desta informe massa sonora foram os murmúrios da floresta e o inenarrável caos sonoro pós quebra da lança de Wotan em que o fogo mágico de Loge soou atabalhoado, com notas erradas nos violinos, numa passagem exigente que acabou por ficar muitíssimo aquém do exigível para uma orquestra profissional e sob a batuta de uma maestro caro e competente.

Entretanto os cantores lá se esforçavam no espaço da arena do S.Carlos, o Siegfried de Stefan Vinke é um Siegfried sem refinamento, que sabe gritar muito cantando muito pouco, sem temperamento lírico e a cantar nas oitavas abaixo no terceiro acto: acima do sol, em notas sustentadas, podia-se contar quase sempre com a oitava abaixo porque a voz já não dava para mais e o cantor estava a ficar rouco. Além disso Vinke arrasta para além do tempo possível a gritaria de cada nota sustentada. Além disso, e apesar do alemão ser a sua língua, canta com voz de "sopinha de massa", fazendo lembrar o lamentável Wotrich...

Samuel Youn no Viandante apesar de ter belos agudos e uma voz de barítono com presença, cantou de forma muito irregular, de forma algo soluçante, sem nobreza da grande linha vocal. Faltou-lhe gravidade e profundidade nos graves. Tem o defeito de entrar sempre, ou quase sempre, atrasado o que além de ser sistemático revela problemas de musicalidade que devem ser resolvidos com mais treino e trabalho. A sua noção do tempo de entrada e do ritmo é perfeitamente aleatória acabando muitas vezes a arrastar as notas. Youn tem um belo futuro se controlar estes erros.

O Mime de Colin Judson foi muito conseguido, no meu entender, com uma bela presença de actor e uma belíssima colocação vocal num papel incrivelmente ingrato.
O Fafner de Dieter Schweikart foi conseguido sem causar grande impressão, é pouco profundo como baixo, mas é o possível.
A Erda de Gabirele May deve-se ter ressentido da encenação, o facto de aparecer senil e provavelmente com uma doença incapacitante, fez com que a voz aparecesse muito feia, destimbrada mesmo. May é, neste momento, tudo menos contralto.
Susan Bullock foi razoável mas distante da forma como abordou a Valquíria: vibrato excessivo, voz com poder mas com falta de convicção. Estava à espera de melhor mas, mesmo assim, foi muito razoável, a voz ainda tem o chicote da Valquíria mas falta-lhe a frescura necessária para a jovem heroína.
O pássaro da floresta de Chelsey Chill foi conseguido, creio que a canadiana encontrou aqui o papel da sua vida, apropriado ao seu registo estreito, voz metálica e nasalada, com agudos pobres e graves inexistentes. A tessitura estreita e uniforme deste pássaro da floresta é o ideal para a cantora. Entretanto a voz nos saltos para cima, notório no lá agudo, desliza de forma muito pouco natural, fazendo um brutal sforzando em stress ao atacar o som mais agudo atacado em fortíssimo agressivo sem qualidade, quando na partitura não existe qualquer indicação dinâmica e o canto deva fluir natural e uniforme. É o papel da vida deste pássaro mas, mesmo assim, bem longe do ideal.

Wagner sem música não é obra de arte total, nem sequer é obra de arte. Dar ao encenador o papel total é reduzir a dimensão da obra. O meu Wagner tem música, não sei como será o Wagner do leitor, ou como o leitor quer o seu Wagner. Os críticos da nossa praça parecem esquecer este lado e preferir o Wagner do encenador. Não percebo esta abordagem, creio que essa visão é provinciana e coxa. É uma visão sem referentes e, sobretudo, sem grande amor pela obra deslumbrante do compositor alemão.
Esta produção é um risco interessante como conceito, no entanto creio ser um falhanço enquanto obra de arte total e um falhanço estrondoso no capítulo musical. O meu balanço é francamente negativo e as culpas vão direitinhas para um maestro pouco wagneriano e complacente, para uma orquestra sem grande qualidade, sobretudo nas cordas, para uma encenação que despreza a música e uma cenografia que rouba espaço a uma verdadeira orquestra wagneriana. Veremos como corre o Crepúsculo dos Deuses, onde o coro entra de forma fundamental, mas a 75% desta produção o balanço é desolador, sobra a revolução no teatro e pouco mais.

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