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31.3.04

“To create a new theory of science, you have to be mad”- Gregory Chaitin 

TSF, “Pessoal e Transmissível”, o melhor programa de entrevistas diárias às 19h00, Carlos Vaz Marques à conversa com um dos grandes matemáticos deste século, Gregory Chaitin que comparou a beleza da matemática, à beleza de uma mulher, à beleza de Lisboa “all shaped by the same forces, namely what Darwin referred to as "sexual selection" e que, deixou estas entre outras ideias polémicas (completadas pela consulta de outras entrevistas):
A matemática, antes de ser um templo de razão e de lógica e para ser boa matemática tem de ser um acto criativo, misterioso. “You have to imagine a beautiful new theory before you can verify it. And most of the beautiful theories you imagine, fail. The first step is an act of imagination. It is an act of imagination, it is a tremendously emotional thing, too. You have to throw your whole personality at the problem”.
Para fazer boa matemática é necessária uma tremenda emoção. É muito difícil. É preciso estar inspirado e ter um tremendo domínio emocional. O acto da criação é mágico. Não existe qualquer lei para fazer ciência, do mesmo modo que não existe uma lei em arte.
A matemática está mais próxima da arte do que se pensa e não atinge as certezas que se esperam. Tem limitações, um grau de irreducibilidade ou de imponderabilidade que Gregory Chaitin tem denunciado, em livros como The Limits of Mathematics e que lhe tem valido duras críticas de colegas.
A beleza ou elegância é uma palavra corrente tão importante para um matemático, como para um artista. Mais, existe um elemento de loucura na ciência tanto quanto na arte. “You see, you have to be crazy to think something at a time when there is almost no evidence for it and go off in a different direction from the rest of the scientific community. And the scientific community will usually fight you”.


Gottfried Wilhelm von Leibniz (ou Leibnitz)
1 Julho 1646, Leipzig. 14 Nov 1716, Hannover

O matemático persegue a fórmula redutora, quanto mais simples melhor, o small is beautiful. Uma ideia da simplicidade e de inteligilibilidade do universo que remonta a Platão e a Leibnitz, um filósofo que o tem inspirado particularmente, enformado decisivamente pelo seu génio como matemático: “ God has chosen the most perfect world, that is, the one wich is at the same time the simplest in hypotheses and the richest phenomena”. Mas essa equação única não existe, o homem e o mundo são infinitamente complexos e a matemática não está separada dessa realidade e está, nesse aspecto, mais próxima da biologia, da química, da psicologia. Talvez a ênfase na simplicidade reflicta mais o modo de ser e o que a mente humana procura do que a natureza do universo. Talvez essa ênfase diga mais acerca de nós do que acerca do universo. O problema é que admitir uma complexidade das leis que esteja para lá da nossa capacidade de compreensão torna todos os esforços inúteis.
A matemática não se faz só com números, porque existem naturais constrangimentos nas teorias axiomáticas, faz-se também com palavras, literatura, filosofia.
E, finalmente, a genialidade nasce da loucura, da coragem de romper com o pensamento dominante: “Wittgenstein was a lunatic. He is considered a great philosopher, right? But there are lots of lunatics who are lunatics in uninteresting ways... Let me make my point in science. To create a new theory of science, you have to be mad. You have to have for some insane reason, this unjustified belief that all the current theories are wrong and that the physical universe is completely different. Now at the time you do this, the reason you are a genius, is because you are doing this at a time when there is almost no evidence… But then maybe fifty years later, it is no longer the right madness”.
CMC

30.3.04

Quem se lembra do Pinochio? 

Encontro um professor de um curso de escrita infantil que tirei na Gulbenkian, no tempo em que à instituição sobravam trocos para essas actividades. Saí de lá como entrei, sem jeito nenhum para essas coisas, mas com uns truques na manga: o segredo de um bom nome para um herói ou heroína, as leis do conto de Propp e uns livros da autoria de António Torrado autografados aos alunos.

Da geração de Alice Vieira e de Maria Alberta Menéres, diz-me que continua a resistir, escrevendo o mesmo de sempre, histórias para teatro, poesia, contos infanto-juvenis, percorrendo as escolas do país, mas com uma nuance de adaptação aos tempos, criou um site: História do dia, actualizado diariamente. Mau, mau é os miúdos já não reconhecerem a marioneta do Pinóquio por nunca lhes terem contado a história. Era uma vez. Um boneco de pau.

CMC

Rakhmaninov e Zemlinsky 

Em excelente nível a ópera "Cavaleiro Avarento" de Rakhmaninov, ver e rever, ouvir e reouvir. Ópera em um acto, op. 24, texto de Puchkin.

Cavaleiro Avarento: Vladimir Vaneev. Albert: Vsevolod Grivnov. Duque: Arnold Kocharyan. Usurário Judeu: Guy Flechter. Criado: Aleksandr Jerebtsov. Maestro Jonathan Webb.

Sabia-se da qualidade literária de Puchkin, sabia-se da pujança da obra em termos musicais, não se sabia que a realização poderia ser tão boa, todos os elementos se reuniram esta noite para a qualidade musical de todo o conjunto.
Todos os cantores estiveram bem. O destaque vai, no entanto, para Vaneev, um baixo de recursos elevadíssimos, de uma classe imensa, um actor extraordinário, um cantor sublime. Potência, sensibilidade, timbre, capacidade interpretativa, tudo se conjugou para fazer um Barão perfeito. Notável, comovente, de ir às lágrimas. Como se um Barão Avarento pudesse comover... claro que pode, a tragédia de um homem solitário, doente. Vaneev ofusca tudo, por muito bons que fossem os outros cantores, nomeadamente os que se seguiram na Tragédia Florentina de Zemlinsky, o Barão de Vaneev é o tempo mágico que faz memória. É raro poder apreciar estes momentos de música em Portugal, ou noutro lugar qualquer da terra. Se puder não falhe as próximas récitas no S. Carlos. Vivamente recomendado. Vaneev é único. Não tem vinte valores porque nem concebo a enormidade da classificação de um mestre como Vaneev, está acima de qualquer classificação. Notável a naturalidade do génio, em que nem se nota o trabalho imenso de composição que Vaneev não pode deixar de fazer. Sem palavras.

Não consigo escrever sobre o resto, que me perdoem. Noutro dia, mais para a frente, falarei dos restantes cantores, do maestro, das encenações, da orquestra. Mas deixo em jeito de aperitivo que a récita correu bem sobre todos os aspectos excepção feita à encenação tonta da Tragédia Florentina. Nota negativa para o fosso da orquestra do TNSC, atravancado, péssimo em termos de condições de trabalho, a orquestra necessária a Zemlinsky não cabe neste fosso, daqui resultam desequilíbrios sonoros artificiais que foram corrigidos com muito mérito pelo maestro e pelos músicos que se acotovelam no espaço ridículo que o S. Carlos lhes põe à disposição.

Henrique Silveira

29.3.04

Tristeza globalizada? 

Breves notas trocadas com um amigo italiano de visita a Portugal. Não há alternativa a Berlusconi que ultimamente, entre outras, perdoou as dívidas dos clubes de futebol e fez-se ouvir durante trinta minutos na televisão estadual na qualidade de ouvinte opinativo. Não há política de ensino. Os alunos parqueiam na universidade até aos trinta anos desmotivados para completarem os cursos, sem emprego à vista. O trabalho é precário para os poucos contemplados, celebram-se contratos por seis meses e depois é esperar. O aluguer de um módico quarto não custa menos de 600 euros. Um ordenado médio cifra-se na ordem dos 1000 euros. Neste cenário são poucos os jovens que saem de casa dos pais, onde vivem à espera de melhores dias. As relações amorosas duram pouco. Um homem que tenha casa própria é cobiçadíssimo. Pessoas interessadas pela leitura e cultura são poucas. Artistas de talento e cientistas emigram para a Europa ou States. Resultado: tristeza contagiosa. Falta de esperança. Presente ou futuro de Portugal?

CMC



Literatura, Música e Cinema 

Sábado passado teve lugar o terceiro destes encontros. Organizado pela Culturgest, mais precisamente por Miguel Lobo Antunes que é actualmente seu vice-Presidente, teve desta vez o auditório às moscas. Depois de Mega Ferreira ler Proust (boring) e Lobo Antunes ler Pessoa (muito bem) chegou a vez de Natália Luiza ler Musil (nada mal para o grau de dificuldade) sobre música de românticos, Schubert e Strauss e antecedida da projecção dos primeiros filmes que nos situam na Viena imperial. Pena a falta de adesão em espectáculos de tanta qualidade e bastante completos. Os últimos resistentes agradecem.

CMC

No Fim de Semana 

Imprescindível:
Luiz Pacheco.

A ler:
Adelino Gomes.

Detestável:
Tanto o Público como o Expresso noticiam fim de casamento de duas pessoas conhecidas como se isso tivesse algum interesse público, não há pachora. O Expresso com honras de primeira página. A decadência dos media, uma pouca vergonha.

28.3.04

Como hei-de prometer as coisas  




Como hei-de prometer as coisas
que se movem no mar
os dedos que demoram na leitura
os modos que tecem devagar
o escuro a tocar-nos
nome novo
adormecem na areia
os quartetos
sob as cordas dos barcos
as mãos
sob as águas dos peixes
onda a onda
como hei-de prometer as coisas

João Miguel Fernandes Jorge

Cabeça de turco e jovem turco 

Augusto Manuel Seabra em 21 de Março ataca com a veemência, da sua pose de "patrono dos media portugueses", o "jovem" Pereira Coutinho:
João Pereira Coutinho, um desses colunistas cuja ascensão é sintomática da gratuitidade que impera na "opinião" impressa no espaço público...

Pereira Coutinho neste Expresso, com a sua pose de "jovem arrogante e iconoclasta mas brilhante", ataca o "velho" A. M. Seabra:
Augusto M. Seabra, um desses colunistas cuja existência é sintomática da gratuitidade que impera na opinião impressa no espaço público...

O resto não interessa. Estão bem um para o outro e ambos têm razão.

27.3.04

Domingos António Gomes 

Escutei há poucos dias atrás Domingos António Gomes ao piano, um homem jovem, de vinte e seis anos. De Bach uma suite inglesa, de Mussorgsky “Quadros de uma Exposição”, se bem me recordo seguiu-se Schubert, Chopin e Paganini/Liszt como extras.


Mussorgsky

Se nada tivesse sido dito ou escrito sobre este talento novo da música, as espectativas não teriam sido tão elevadas, Domingos António seria certamente uma surpresa agradável, sabendo ainda por cima que não estudava a sério há mais de dois anos.

Penso no artigo de Duarte Lima no Expresso, 04.03.06, em que apelida o rapaz de “artista genial” com um “talento absoluto” senhor de uma “técnica fora do comum” e “artista prodigioso”; bem como em António Cartaxo, que sem a menor noção da enormidade do que diz, e acredito que é profundamente sincero uma vez que a paixão e o amor pela música podem cegar, quando afirmou: Domingos António toca “Os quadros de uma Exposição” melhor que Sviatoslav Richter”!

A enormidade não está na afirmação em concreto de Cartaxo, mas no que se ouve quando o pianista executa ao piano a peça de Mussorgsky. O que ouvi foi um rapaz com uma força muito grande, com um indesmentível talento, uma técnica razoável, em que se notaram erros interpretativos graves, tempos demasiados puxados para a técnica que demonstrou, falhas nas passagens mais complexas. Exemplo: na passagem muito sincopada das correrias das crianças foi notória a falta de coordenação dos dedos de Domingos António, quando teve de fazer escalas muito recortadas a alta velocidade acabava por se atrapalhar comprometendo a clareza dessas passagens. Outro dado muito concreto foi a falta de precisão de toque, umas vezes mais martelado, outras mais doce, errático de certa forma, mas aqui claramente desculpável para quem andou a tocar em cima de um tampo de uma mesa durante dois anos! É um aspecto que terá de praticar muito, agora que parece já ter um piano. O uso do pedal foi umas facetas mais interessantes deste pianista, sem exageros de empastelamento. Na suite inglesa de Bach, usou tempos violentíssimos, uma rapidez vertiginosa, o que deu completamente para o torto, a clareza das linhas de semicolcheias bachianas ficou completamente destruída, algumas notas ficaram por tocar e o ritmo de execução perdeu-se. O estilo de tocar Bach pela escola russa é altamente discutível, as ênfases, as acentuações estiveram fora do lugar, o fraseado romântico substituiu a articulação barroca. Pior, os tempos exagerados descaracterizam o cariz de dança das suites. A velocidade excessiva tranformou o pianista num frio dactilógrafo imperfeito. A própria Allemande foi demasiado veloz, sabendo que era uma peça de apresentação aos monarcas, pomposa, aqui a pompa deu lugar a um ritmo mais andante marcato que pomposo.
Em suma Domingos António mostra qualidades evidentes, técnica elevada, mas que tem de ser aproveitada com um estudo muito rigoroso, uma vez que tem muitos problemas de interpretação.

O lado humano da questão é muito importante, é um erro gravíssimo endeusar um homem como Domingos António, felizmente creio que ele terá a inteligência e a modéstia para perceber o exagero. Pode ser muito perigroso para o seu futuro de músico e até como ser humano. Domingos António antes de ser apresentado como um “fenómeno” de circo deve ser escutado como um pianista de elevadíssimo potencial, mas que deve ser aconselhado, deve trabalhar com pedagogos de grande qualidade musical e humana. Pouco precisa, apenas uma orientação séria, e poderá ser a confirmação de uma promessa que hoje se começa a desvendar. Fazer de Domingos António, hoje, um artista acabado de mestre incógnito mas consagrado e vender a imagem de um deus vivo do piano é uma irresponsabilidade gravíssima que me faz doer a alma.

Não ponham a fasquia demasiado alta a Domingos António é o que peço a quem “descobriu” o pianista e a quem muito se deve agradecer pela desinteressada ajuda a um jovem carenciado e talentoso, mas sem exageros, com todos os cuidados pelo lado humano.

Henrique Silveira

P.S. Escrevi este texto para mim próprio, de forma a ficar no meu diário pessoal com uma lembrança do que se passou, é complicado escrever publicamente sobre um recital privado. Uma vez que jornais de referência, como o Expresso de hoje, violam alegremente esta regra, creio que não será dispiciendo escrever sobre este assunto, sobretudo pelo factor humano e pela crítica construtiva que encerra e que deve ser ponderado por quem se deixou cegar.

26.3.04

Elizabeth Barrett Browning 


How do I love thee? Let me count the ways.
I love thee to the depth and breadth and height
My soul can reach, when feeling out of sight
For the ends of Being and ideal Grace.
I love thee to the level of everyday's
Most quiet need, by sun and candle-light.
I love thee freely, as men strive for Right;
I love thee purely, as they turn from Praise.
I love thee with the passion put to use
In my old griefs, and with my childhood's faith.
I love thee with a love I seemed to lose
With my lost saints, -I love thee with the breath,
Smiles, tears, of all my life! -and, if God choose,
I shall but love thee better after death.


De que formas te amo eu? Deixa-me ver:
Com a profundidade, extensão e altura
Que minha alma alcança quando procura
Os limites da Graça ideal e do Ser.

Amo-te ao nível do meu mais simples viver,
A luz do sol ou da vela que tremula;
Livremente como o que p'lo Direito luta,
Pura, como o que o louvor soube esquecer.

Amo-te com a paixão com que então sofria
As velhas penas, e a fé de infância sem par.
Amo-te com um amor que já não sentia

P'los queridos mortos - amo-te com o meu respirar,
Risos, lágrimas! - e, se Deus assim o queria,
Só depois da morte melhor te hei-de amar.

Clara Macedo Cabral

24.3.04

Mistério II 

Absorvi o mundo através de uns olhos verdes. Seixos obstinados, de lágrimas fáceis.
Moldei os gestos a partir de umas mãos. Velozes, eficientes, irrequietas.
Copiei os passos de uns pés, o sabor de uma mão de sal, a voz de um timbre, o olfacto de um nariz.
Persegui nuns dedos as primeiras sílabas, letras, linhas, histórias e sonhos que deixaram debaixo da almofada.
Tirei-lhe da figura a maquilhage, perfume, roupas, vaidade.
Perdeu altura, perdeu peso. Ainda peço o que me habituei a ter, comida e histórias, lençóis frescos a seguir à febre. Um cordão onde estou a salvo.

Clara Macedo Cabral

Angela Gheoghiu - Recital péssimo com direito a corte de orelhas e rabo 

Era o título que tinha preparado, aliás já estava anunciado, ao contrário do que é habitual deixei-me atrasar, o Público diz tudo na sua crítica, em que até explica porque razão o público da Gulbenkian se deixou rabejar, não encontro outro termo, por uma cantora abominável de uma escola que devia ter sido arrumada numa nota de rodapé dos tratados de história da música séria.

Por isso faço apenas uns breves comentários:
Se quisermos perceber porque razão a música pimba ainda tem o sucesso que tem em Portugal, afinal o "povo" é todo o mesmo, devemos ir à Gulbenkian num destes dias de Angela Gheorghiu. Esta assassinou literalmente compositores (fraquíssimos a maior parte deles como Massenet, Délibes e os romenos, nem consigo perceber porque razão Massenet ainda não foi banido de recitais, deve ser pela mesma razão porque Marco Paulo ainda canta) e músicas. Mostrou uma imagem triste de uma diva que errou a vocação e que deveria ter sido toureira. Nem sequer grandes qualidades vocais evidenciou, uns fortes bem pujantes, despropositados a maior parte deles, nas cadências finais a puxar o aplauso, mas apianandos muito fracos, irregulares, em que não conseguia sustentar as notas de forma gradual, mostrando um controlo vocal bem menor do que eu estava à espera. Não é pela berraria no final dos trechos, com consequente levantar de braços em poses mais ou menos bandarilhadoras que se vê a qualidade vocal, ouve-se, isso sim, pela qualidade dos pianos e do domínio vocal em situações delicadas. Qual domínio? Parecia um boi numa loja de porcelanas, se Massenet mercecia os bibelots partidos ao menos que as delicadas obras de Alexandro Scalatti, de Bizet ou de Verdi escapassem intactas! Mas Angela arrasou com igual alegria todos os 14(!) compositores que abordou. Que belo instrumento desperdiçado desta forma. Concerto horrendo, para esquecer, melhor teria feito se eu tivesse ido à (extinta) feira popular ou ao cinema. Volta Vengerov, estás perdoado!

Henrique Silveira

P.S. Desnecessária a crítica feita por Cristina Fernandes ao vestido da cantora, mas apropriada! O vestido da primeira parte era mais elegante, o que retirou um pouco de monotonia ao abominável passar dos minutos...

23.3.04

Alvíssaras 

Li textos notáveis no Aviz sobre Belgais, estou finalmente em total sintonia com Francisco José Viegas, que deixando ser "simpático", escreve algo que faz sentido sobre Maria João Pires e Belgais.

[Actualização em 24.3.2004]Alvíssaras II, "O Menino Chegou!" Francisco José Viegas volta a surpreender pela positiva, mostrando mais uma reflexão sensata no seu blogue. Fala do último livro de António Manuel Baptista. É de ler.[Fim da actualização]

Nota sobre o nome Vianna da Motta. Já vi este nome escrito de quatro variadas formas. O Carlos Alves, que mantém um blogue muito atento a estes problemas, e com muita qualidade, esclareceu-me que Vianna da Motta gostava de assinar, e fazia questão que lhe escrevessem o nome, com dois "nn" e dois"tt". No entanto do seu assento de baptismo em S. Tomé consta Viana da Mota! O que não é certo é usar erraticamente Vianna da Mota ou Viana da Motta, ou se é coerente e se usa o nome registado no baptismo, ou se respeita a vontade do velho mestre. Eu prefiro a segunda hipótese.

Henrique Silveira

Próximo post: Angela Gheorghiu na Gulbenkian. Um concerto péssimo com corte de orelhas e rabo! Crítica ao público e ao concerto. Ou porque razão a música pimba tem o sucesso que tem em Portugal.

Por uma vez 

Seabra na sua crítica do Público diz tudo. A ópera "Os Fugitivos" é de fugir, como eu já disse aqui.

Sem inovar absolutamente nada o compositor José Rocha ainda consegue tecer uma teia musical minimamente profissional. Mas para um homem que colocava coros de cãezinhos de peluche a ladrar (ao menos estes coros conseguem-se ouvir) um homem que usava a ironia e o humor como uma forma estimulante de criação cai aqui num trabalho monótono e de pendor academista, com o a querer provar que sabe realmente compor para instrumentos a sério.

O pior mesmo é o inacreditável libreto de Zink, banalidades, estilização infecunda das personagens e um desfecho que só um puto do liceu se lembraria para sair do impasse a que acção dramática, praticamente inexistente, conduziu. Um beco sem saída, sem originalidade nem qualidade literária no texto, uma inconcebível e monótona sucessão de quadros, com caracterizações triviais e previsíveis dos personagens, já vistos e revistos em milhares de peças: a mãe complacente, o pai frustado, o filho político, palavroso e com uma mancha terrível no passado, uma inacreditável "maluquinha de Arroios" do consumismo, personagem não-personagem, que nada traz e sem qualquer ligação dramática ou interacção com os outros elementos. A luta contra a globalização aqui é tão pateta e desconexa como todo o resto do libreto. Afinal estamos numa Ópera do Tempo? Se estamos porquê a marca da "tragédia" falsa e sem densidade? Uma ópera do tempo com o elemento fantástico? Com um deus ex machina? Que afinal é o diabo, e que surge do toxidependente, figura também banal, que no contraponto de classes começa por ser um elemento menor e que acaba por ser a gota de água que demonstra que nesta mecânica teatral nada funciona.
Descobrimos, para nosso "espanto" como não fosse evidente, que a solução de Zink iria surgir sem qualquer rasgo: na peça está tudo morto, incluindo o engenho do libretista. De facto estão todos na barca do inferno, onde oh!... suprema moralidade de pacotilha, a heroína, a personagem boazinha da história: Marta a segurança pessoal do político, que passou toda a peça sem se perceber qual o seu papel ali, vai desembarcar e salvar-se, vivinha da costa nas costas do inferno, depois de feita a travessia. Porra! Já não há pachorra para teatro de liceu, depois do Freitas do Amaral e as suas peças de menino da escola primária vem o "intelectual" Zink apresentar as suas meditações escolares.
Isto de se mandar umas bocas e ter alguma graça, isto de se ser mediático não garante qualidade, nem bilheteira. Mais uma prova: este triste espectáculo que nem sequer atinge o nível do bocejo...

Sobre cenografia Seabra diz tudo.

Os músicos foram muito profissionais e Cesário Costa, o maestro, é um valor seguro, concentrado, pensado. Cesário Costa sempre que o vejo a dirigir e ouço o resultado sinto uma afirmação de qualidade. Seria com jovens deste calibre que o S. Carlos se deveria renovar. Como será Cesário a dirigir um repertório menos contemporâneo? Creio que deve ser excelente, uma carreira a acompanhar.

Os cantores estivem em bom plano, sem destaques. Seabra esquece a soprano ligeiro Sara Braga Simões, muito certa, bem colocada, uma voz sem grande segundo harmónico, e não muito pujante, mas de voz bonita e correcta. Pena a ingratidão das linhas melódicas.

Música e Dramaturgia: José Eduardo Rocha - 9.5
Libreto: Rui Zink - 5
Direcção Musical: Cesário Costa - 16
Encenação: Paulo Matos - 10 (com este material como se pode encenar?)
Cenografia: José Manuel Castanheira - 5
Figurinos: Rafaela Mapril 10 (com esta peça não pode brilhar?)
Desenho de Luz: Vítor Correia 12

Interpretação:
Mário Redondo..................Roberto
Sara Braga Simões...........Marta
José Corvelo.....................Alfredo
Elmira Sebat....................Elisa
José Lourenço..................Ferlucci
Catherine Rey....................Cremilde

Ensemble Instrumental da Metropolitana 13
Produção: Teatro da Trindade/INATEL


22.3.04

O espanto 

Políticos israelitas assassinaram o Sheik Ahmed Yassin. Confesso que o Sheik não me inspirava a menor simpatia, bem como não me inspira Sharon. Num mundo perfeito teriam os dois sido julgados por crimes contra a humanidade há muito tempo, mas isso não impede que a morte de Ahmed Yassin seja um crime hediondo.

A propósito do que leio com espanto o seguinte texto retirado, "copy e paste", de Glória fácil, creio que o título do blogue está de acordo com o texto, é fácil atingir-se a glória com este género de comentários, o autor é João Pedro Henriques, e creio que o ódio em vez de se reduzir se alastra. Quase nem concebo como um homem educado num estado de direito pode proferir este arrazoado:

Março 22, 2004
Esquerda - a separação das águas
Sheikh Ahmed Yassin, líder do Hamas, foi assassinado, o que não me provoca um segundo que seja de angústia ou pena ou lamento ou o que quer que seja. Dizem que era um "inválido de cadeira de rodas" e que que foi "abatido" por tiros disparados "de um helicóptero Apache".

Sabendo que é também possível que um "inválido de cadeiras de rodas" abater um "helicóptero Apache", não me parece grave.

O que me provoca angústia é a esquerda burra (*) que mora no Barnabé (apesar dos esforços de sensatez do Daniel Oliveira).

Porque, obviamente, no assassinato do chefe do Hamas não há o assassinato de um inocente. Era tudo menos "inocente", o senhor Yassin. Não foi um acto de terrorismo de Estado - foi um acto de guerra. Um acto de guerra eficaz, porque pela liderança se debilitam exércitos.

Convinha, por isso, uma separação de águas, à esquerda: não quero a companhia de quem lamenta o "assassinato" do senhor Yassin. A "esquerda" que tem pena do tal líder do Hamas porque andava de "cadeira de rodas" não tem autoridade nenhuma para andar a apanhar boleias da vitória do PSOE. Essa esquerda dá mau nome à decisão espanhola.

(*) - Referência ao texto "Mais um passo na direcção do choque das civilizações, cortesia de Israel", de Pedro Oliveira


Não me associo à esquerda, nem percebo a associação desta com o facto de pretender o autor defender o assassinato como acto de "gerra" na salganhada de conceitos misturados do seu texto. Associo-me, sim, aos valores do estado de direito. Sei que um estado que respeita os direitos humanos não organiza assassinatos. Se um estado que preza o sentido da palavra justiça suspeita de actos criminosos deve trazer os suspeitos à justiça. Penso que é assim que se dá sentido à palavra humanismo, ao pensar assim sinto-me bem comigo mesmo.

Explico melhor uma vez que JPH parece ser um pouco obtuso, neste caso a pedagogia de uma explicação talvez possa ser necessária, nem bem para iluminar o autor do texto acima, mas quem possa ter dúvidas sobre o sentido do que é, para mim, ser humano.
Existe guerra neste caso? É muito duvidoso, uma vez que Israel nega o estado de guerra negando a existência de um estado palestiniano. A guerra existe apenas entre estados, povos ou nações e é um conceito simétrico. Não existe guerra entre um grupo terrorista e um estado. Não existe guerra entre um estado e um povo sem exército e basicamente desarmado. Israel reconhece que toda a nação palestiniana se lhe opõe, daí o futuro muro, mas declara guerra a quem? A qual exército? Extermina a Palestina com mulheres e crianças incluídos? Por estes usarem pedras? Ou actua em termos punitivos contra criminosos individualizados ou em bando? Não existe meio termo. O conceito de guerra ao terrorismo é um disparate filosófico e face à história, o que poderá existir é o direito de perseguição de criminosos com o objectivo de levar estes a julgamento.

A perseguição e extermínio de adversários por políticos é a negação do estado de direito e uma violação da mais elementar ética relaccional entre povos. Dando de barato que existe guerra, realça-se que a guerra é, também, um conceito ético, além de uma situação de facto, até em guerra se deve manter a honra, muito embora Hitler e Estaline, nos façam às vezes pensar que o conceito de honra em guerra foi ultrapassado. JPH parece alinhar por uma práxis desprovida da carga dos princípios, mas são esses princípios que me fazem sentir diferente das feras das SS, dos Kmers vermelhos ou dos esbirros do Beria...

Por outro lado pede-se ao estado de direito organizado que mantenha a sua superioridade, o que não significa que seja fraco. Se Israel tem autoridade de estado nas zonas ocupadas, questionável é certo, o que deveria fazer, como estado de direito, seria procurar a prisão do Sheik e o seu julgamento face às leis do seu país, ou face às leis internacionais, mas oferecendo um julgamento justo e com garantias de defesa. Claro que isso significaria também que os dirigentes de Israel poderiam enfrentar a justiça em situações semelhantes. Mas isso não queremos pois não JPH?

Henrique Silveira

P.S. Já agora estendo as considerações pedagógicas acima a Jaquinzinhos que, pelo ódio que demonstra ao "um patifório" como diz, no que parece ter toda a razão, desculpa implicitamente o acto criminoso de políticos israelitas, como se a guerra justificasse o assassinato. Andámos milhares de anos até às convenções dos direitos humanos e de Genebra para ter de aturar neo selvagens no século vinte e um. O Joãozinho nunca terá ouvido falar de justiça, de tribunais? Por muito que o Cheik negasse esses conceitos, essa é a supremacia da democracia, o direito, a garantia, mas também a certeza do castigo se assim for o caso, de se ser julgado quando se é suspeito. Essa é mais uma vantagem da direita esclarecida, a defesa intransigente da justiça, dos valores morais e cristãos do perdão e do castigo justo. Mas Jaquinzinhos não pertence a esta direita esclarecida e com valores humanos, já o provou bastas vezes. Mas faz-me pena, às vezes percebe-se que existe um ser sensível por detrás do suburbano feroz ao volante de um blog radical.

Mistério 

Quotidiano. Pegar no carro, parar naqueles semáforos, restaurantes, escrever aquelas linhas. Ver as noticias na banca, na T.V, encolher no medo. Pisar a mesma calçada, sobre a qual se tecem invisíveis mudanças, que sobem e se diluem no quotidiano, no igual, na não- memória.
Quotidiano. Aparência de continuidade que a memória desmente. Memória que trai, que transfigura a bel-prazer, mas só ela atesta da mudança. O L. que não via há 10 anos e que continua com os mesmos óculos de massa. Estás igual, digo-lhe, mas sei que não. O café onde ia lanchar igual só em nome, mesas e cadeiras, são outras as pessoas.
Quotidiano para nos sossegar, para nos apaziguar com o tempo. A voragem do tempo. Como estancar o tempo? O segredo dos velhos. Dilatar, na eternidade da memória, a infância, uma professora de escola, um brinquedo, o primeiro amor, dilatar para não morrer.
Quotidiano. Ouvir aquelas palavras vindas daquela boca. Previsíveis. Ouvidas mil vezes. Para me sossegar. Para saber que ela ainda aqui está. Tal como eu a conheci. Tal como eu aqui estou. Eu que mudei, mudo, com qualquer coisa que resiste a unir-me aos estilhaços do que vou sendo.
Quotidiano. Abafador do ruído. Abafador da turbulência. Abafador do mistério do mundo. De todos os mistérios que continuam. Sem neles repararmos. Esquecimento. Conformação ao dissecado no jornal, nos comentários do Prof., nos livros sagrados, na sonda de Marte, no planeta Sedna, na lamina do laboratório.
T. que te aconteceu depois de tocares a morte? J. de dois anos que vês tu quando assistes pela primeira vez a um concerto e acenas aos músicos na despedida? Ouço a tua voz a atravessar o Atlântico, tens 80 anos e estás viva, depois de um cancro, não sei porque te escolhi ou porque me escolheste, mas vejo os lugares por onde andas e tu sabes por que lugares ando. Mistério.

Clara Macedo Cabral


20.3.04

Muito a dizer 

Assisti à Ópera: "Os Fugitivos", no Teatro da Trindade, muito há a dizer, mas ainda não me apeteceu.
Muito havia a dizer sobre a genial encenação de Vick da Ópera Werther de Massenet, esse compositor medíocre, que numa temporada de pouquíssimas óperas teima em aparecer, quando Mozart ou Wagner ficam de fora.
Não me esqueci destes assuntos, ambos serão abordados.

Hoje na Livraria "Eterno Retorno", no bairro Alto em Lisboa um debate sobre a Ópera "Os Fugitivos": "Uma ópera de fugir?", como a minha opinião é realmente essa, a ópera é de fugir, fugirei também desse debate.

Muito haveria a dizer sobre a nova participante deste blogue: Clara Macedo Cabral, que aqui começou a escrever sem uma palavra de boas vindas de quem aqui estava antes. Veio do "Desejo Casar". Fica reparada a injustiça, a Clara é muito bem vinda. Clara escreve sobre literatura, poesia, teatro, política e o que lhe vai pela alma, sobre o que quiser, no fundo. Significa também uma lavagem do template, novos links, da sua preferência, e a inclusão de novos blogues nas citações. Na próxima semana faremos essas alterações.

Têm surgido blogues jovens de grande qualidade e têm desaparecido blogues mais antigos, uns por esgotamento das fórmulas, outros por cansaço dos bloggers, outros por fusão e refundação.

Outro assunto: a nossa fórmula ainda não está gasta, parece-nos. Enquanto a crítica em Portugal for feita por um pequeno grupo de pessoas. Enquanto a amizade e os pequenos grupos ditarem as poucas posições no nosso meio, sobra espaço para pessoas, que não tendo o menor interesse em ocupar postos ou acumular prebendas, nem fazer carreira no meio cultural, ou mesmo continuar a sobreviver sem serem votados ao ostracismo, se estão nas tintas para as opiniões dos "ditadores" do nosso tacanho meio e escrevendo por prazer vão explicando as suas sensações, as suas interiorizações do que se vai passando, tentando ser pedagógicos, quer para intérpretes, quer para o público, continuando a ler e a ouvir, estudando, e sobretudo mantendo-se independentes, sem receios que, dizendo bem disto ou mal de aquilo, possamos ser arredados de um lugar qualquer no futuro, com a subjectividade própria das nossas opiniões e da nossa capacidade humana de erro.

Finalmente respostas a comentários: o blogue "Portugal dos pequeninos" no meio de textos excelentes, a crónica da Petraglia é uma parábola das pequenas tragédias humanas, resolve comentar que eu, estaria a sofrer algumas consequências por dizer verdades aqui. Nunca pedi ao autor que me servisse de advogado neste tipo de questões, nem me parece que esteja a sofrer o que quer que seja. Se pensa o meu amigo João Gonçalves, ou outro, que uns bilhetes oferecidos ou não, e que custam uns miseráveis euros, podem obnubilar o meu sentido crítico, estará enganado. A Luna acabou, logo é natural que os bilhetes oferecidos desapareçam também. Não vem mal nenhum ao mundo. Ao menos poderei apupar ou aplaudir mais livremente no próprio local, com bilhete pago, em vez de ter de esperar pelos programas de rádio para fazer as críticas aos maus e bons serviços que tenho ouvido.

Sobre o M.P., que escreve também neste blogue, terá as suas opiniões, creio que são muito sentidas e ainda vão mais longe que as minhas. Não creio que gestão Pinamonti do S. Carlos seja uma catástrofe tão grande como a que ele vê. Por exemplo o dr. Pinamonti tem imaginação e consegue montar uma temporada, discutível mas possível, em cima do joelho, com pouco dinheiro e em cima da hora, num teatro cheio de vícios, com um coro que é incapaz de cantar e cheio de grupos de interesses e com gente a mais. Pinamonti terá o defeito de ter também o seu círculo de amizades, mas é o que acaba, paradoxalmente, por salvar o Teatro neste ano.
O seu principal defeito é a incapacidade de reformar de reformular, de despedir os incompetentes ou de enfrentar a realidade. Só um surdo, ou quem meta a cabeça na areia, não percebe o que se passa no TNSC. Se virmos o que ganha um maestro fora de prazo como Peskó, mensalmente, sem por os pés no teatro, ou quando põe: milhares de contos por estreia, mais milhares de contos por récita e por concertos além do ordenado fixo e certo, e o rendimento que esse investimento, pago com os nossos impostos, nos oferece: quase zero ou negativo. Se virmos quanto ganha um concertino, para trabalhar como concertino, e que em vez de concertar desconcerta, percebemos como o dinheiro dos nossos impostos é mal gasto, se percebermos quanto ganha um maestro de coro, mais adjuntos, mais coordenadores, para o coro ser a desgraça que é, sem ninguém dar um murro na mesa, percebemos o escândalo de uma gestão cultural ruinosa com os nossos impostos.
Esse é o defeito de Pinamonti, pactuar com este estado de coisas, que devora milhões de contos por ano, para uns poucos se exibirem nas estreias e dizermos que temos um "teatro de ópera" em Lisboa. Mas para manter a situação, Pinamonti é um gestor ideal, sabe manter-se sempre à tona de água e vai gerindo de forma habilidosa todos os pequenos focos de conflito, sem deixar o barco afundar de vez. O caso das horas extraordinárias que fez o coro deixar de cantar no CCB seria um óptimo pretexto para arrumar de vez com a questão, mas tudo foi ficando em águas turvas até desaparecer das memórias, como se nada se tivesse passado. Pinamonti é um director ideal para uma tutela que prefere deixar tudo como está. Sem a força de um Ministério forte e sem peso político por detrás será impossível, para qualquer direcção, a execução da reforma necessária ao S. Carlos e à ópera tutelada pelo estado neste país.

Se o estado pretendesse poupar dinheiro e produzir mais teria de ter uma vontade política férrea relativamente a este assunto, fazer audições por padrões internacionais, avaliar desempenhos, despedir ou recolocar incompetentes e improdutivos, em vez de andar a cortar nos museus e a deixar de apoiar os jovens artistas. Por outro lado o estado deveria pagar a tempo e horas aos artistas, tratá-los bem. O segredo seriam contratos bem negociados mas escrupulosamente cumpridos e assim recuperar a boa fama do Teatro Nacional de S. Carlos nos círculos internacionais.
A tutela teria de colocar um director no teatro como Almerindo Marques está a funcionar na RTP, o director artístico poderia muito bem não acumular funções com o director do teatro, parece que funciona assim em toda a parte do mundo e só quando a personalidade é excepcional é que se considera a hipótese de acumulação.

Porquê falar tanto deste teatro? Porque a ópera é um assunto apaixonante. Porque o S. Carlos é a instituição que recebe mais dinheiro do estado em termos musicais. É pago por mim e por uma data de gente que nem sequer consegue ser bem atendida num hospital público e que vai pagando salários principescos a gente que nem sequer merecia um pontapé no rabo no dia do despedimento com justa causa. Tenho mais do que o direito de falar sobre o assunto, tenho a obrigação. Sinto esse dever moral.

19.3.04

Vagabundos de Nós 

Subiu ontem ao palco do Teatro Maria Matos, o texto de Daniel Sampaio encenado por Luís Osório, representado por Márcia Breia e Nuno Lopes. 50 minutos de suspensão e comoção. Ponto de partida: o suicídio de um jovem. Dois monólogos em desencontro. De uma mãe, dirigindo-se ao filho que morreu. De um filho, explicando-se à mãe que ficou. Palavras que não serão escutadas. Tudo quanto é possível dizer, finalmente, dito, verbalizado. Em jorro ou em reticências, murmúrios, pausas. O difícil, o inexprimível de todas as relações pais-filhos, mulher-marido. Palavras que desvendam segredos, fixações, que dão forma à dor, que mostram o diferente e a igualdade do diferente, através das quais se procura a sanidade e a salvação. Impossível continuar homofóbico depois desta peça.

Clara Macedo Cabral

18.3.04

“Beyond Belief “ 

Os especialistas já realçaram a importância do sistema de franchising na Al-Quaeda. Desmantelados os campos de treino no Afeganistão, a Al-Quaeda opera agora com locais que reagem ao nome e imagem da Al-Quaeda, evitando deslocações suspeitas, contando com os recém-convertidos ao islamismo.
Naipaul retrata a conversão de um jovem de Oklaoma da seguinte forma: “ toda a gente nasce muçulmano, sem pecado, dissera ele na cerimónia de conversão. A consequência disso- embora ele o não tivesse dito- era que, no mundo exterior ao islão, todos laboravam no erro e talvez estivessem algo incompletos até encontrarem o seu eu muçulmano... O Corão é um sistema de valores. É como um carro. Um carro é um sistema: se apenas tiver o motor e a roda, não tem o automóvel. O Islão é um sistema. Tem de tê-lo todo ou tem de o abandonar. Não se pode ser meio-muçulmano ou muçulmano a três quartos. Ou a pessoa se torna muçulmana com todo o coração ou então não vale a pena”.
Mais à frente, é um poeta paquistanês de uma família hindu recém-convertida que explica o islamismo nos seguintes termos: “ O islamismo não é como o cristianismo, dizia ele. Não é uma religião de consciência e de prática privadas. Vem acompanhado de determinados “conceitos legais”. Estes têm um significado cívico e instauram uma certa ordem social. O ideal religioso não pode ser separado da ordem social”.

Clara Macedo Cabral

17.3.04

O Médio Oriente e o Ocidente. O que correu mal? 

Ontem na Culturgest na última conversa sobre “ Os Livros em Volta” foi apresentado o livro de Bernard Lewis sobre “O Médio Oriente e o Ocidente. O que correu mal?”, escrito antes do 11/09 e com uma actualidade notável. B. Lewis devedor da tese de Huttington de que à guerra fria se sucederiam divisões de carácter civilizacional, explica como a actual animosidade entre o Ocidente e o Médio Oriente é um padrão histórico, com raízes no encontro dramático entre estes mundos e não um fenómeno recente. Na sua análise recua até aos tempos medievais, onde a civilização islâmica não teve rival, quer em termos de potência militar- o Islão invadiu África, Índia, China- quer no campo da ciência e das artes. Com o Renascimento, a civilização europeia regista a primeira ruptura de peso face à civilização islâmica, acentuada com os Descobrimentos, a Reforma e a Revolução Industrial. O Ocidente vai gradualmente efectuando uma modernização de que o mundo islâmico se revela incapaz, declinando militar e economicamente, incapaz de laicização e de atribuir um papel activo às mulheres. No mundo contemporâneo é evidente um mundo islâmico mais pobre, fraco e ignorante e que por detrás destes problemas está a falta de liberdade. Falta de liberdade de pensar, da iniciativa privada, das pessoas em relação ao poder político, das mulheres em relação aos homens.

Clara Macedo Cabral


16.3.04

O Islão em “ Para além da Crença” de V.S. Naipaul 

Depois da tradução de algumas das obras ficcionais de Naipaul, a Dom Quixote lança-se agora na tradução dos seus livros de viagens.
Naipaul assume-se como produto de dois mundos inconciliáveis, por um lado o mundo colonial (Trinidad, onde nasce) por outro, o mundo colonizador ( Inglaterra onde estudou e actualmente vive).
Uma das dimensões da sua escrita e que tem sido mais contestada é a de encarar algumas culturas como obstáculo ao crescimento intelectual, considerar que enquanto os povos do Terceiro Mundo: indianos, africanos, paquistaneses, continuarem a pensar de acordo com as suas instituições culturais, serão inábeis para lidarem com os seus próprios problemas.
A literatura que Naipaul cultiva é a literatura de viagens que se presta por natureza ao ser isolado e desenraizado que Naipaul reconhece em si e é o género não ficcional e mais autobiográfico que lhe dá a possibilidade de escrever sobre o que é viver nas margens, sobre essa procura de uma identidade entre dois mundos sem pertencer a nenhum, já que o romance ficcional pressupunha uma centralidade a que ele não pode aspirar ao dar-se conta da sua fragilidade e falta de auto-confiança. Ele próprio o afirma: “one has ceased to be a colonial. One no longer enjoys this great security. I am aware that I am (an) insecure person”
No prólogo de “ Beyond Belief” Naipaul alerta-nos : “ O islão não é somente uma questão de consciência ou de crença privada. Faz exigências imperiosas. A visão do mundo de um convertido é diferente. Os seus lugares santos são em terras árabes, a sua língua sagrada é o árabe. A sua noção de história é diferente. Ele rejeita a sua e, quer goste quer não, torna-se parte da árabe. O convertido tem de se afastar de tudo quanto é dele. A perturbação é imensa para as sociedades e, mesmo após uns mil anos, pode continuar por resolver; este virar de costas tem de ser feito uma e outra vez. As pessoas criam fantasias sobre quem são e o que são, e, no islão dos países convertidos, existe um elemento de neurose e de niilismo. Estes países podem facilmente entrar em ebulição”.
Nada mais actual e que aqui continuarei a dissecar.

Clara Macedo Cabral


Convidada 

Convidada para uma colaboração com o Crítico, depois de o Desejocasar fechar portas, prometo não me imiscuir em polémicas musicais e limitar-me a um ou outro apontamento sobre o quotidiano e a literatura.

Clara Macedo Cabral

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