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22.3.04

Mistério 

Quotidiano. Pegar no carro, parar naqueles semáforos, restaurantes, escrever aquelas linhas. Ver as noticias na banca, na T.V, encolher no medo. Pisar a mesma calçada, sobre a qual se tecem invisíveis mudanças, que sobem e se diluem no quotidiano, no igual, na não- memória.
Quotidiano. Aparência de continuidade que a memória desmente. Memória que trai, que transfigura a bel-prazer, mas só ela atesta da mudança. O L. que não via há 10 anos e que continua com os mesmos óculos de massa. Estás igual, digo-lhe, mas sei que não. O café onde ia lanchar igual só em nome, mesas e cadeiras, são outras as pessoas.
Quotidiano para nos sossegar, para nos apaziguar com o tempo. A voragem do tempo. Como estancar o tempo? O segredo dos velhos. Dilatar, na eternidade da memória, a infância, uma professora de escola, um brinquedo, o primeiro amor, dilatar para não morrer.
Quotidiano. Ouvir aquelas palavras vindas daquela boca. Previsíveis. Ouvidas mil vezes. Para me sossegar. Para saber que ela ainda aqui está. Tal como eu a conheci. Tal como eu aqui estou. Eu que mudei, mudo, com qualquer coisa que resiste a unir-me aos estilhaços do que vou sendo.
Quotidiano. Abafador do ruído. Abafador da turbulência. Abafador do mistério do mundo. De todos os mistérios que continuam. Sem neles repararmos. Esquecimento. Conformação ao dissecado no jornal, nos comentários do Prof., nos livros sagrados, na sonda de Marte, no planeta Sedna, na lamina do laboratório.
T. que te aconteceu depois de tocares a morte? J. de dois anos que vês tu quando assistes pela primeira vez a um concerto e acenas aos músicos na despedida? Ouço a tua voz a atravessar o Atlântico, tens 80 anos e estás viva, depois de um cancro, não sei porque te escolhi ou porque me escolheste, mas vejo os lugares por onde andas e tu sabes por que lugares ando. Mistério.

Clara Macedo Cabral


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