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27.3.04

Domingos António Gomes 

Escutei há poucos dias atrás Domingos António Gomes ao piano, um homem jovem, de vinte e seis anos. De Bach uma suite inglesa, de Mussorgsky “Quadros de uma Exposição”, se bem me recordo seguiu-se Schubert, Chopin e Paganini/Liszt como extras.


Mussorgsky

Se nada tivesse sido dito ou escrito sobre este talento novo da música, as espectativas não teriam sido tão elevadas, Domingos António seria certamente uma surpresa agradável, sabendo ainda por cima que não estudava a sério há mais de dois anos.

Penso no artigo de Duarte Lima no Expresso, 04.03.06, em que apelida o rapaz de “artista genial” com um “talento absoluto” senhor de uma “técnica fora do comum” e “artista prodigioso”; bem como em António Cartaxo, que sem a menor noção da enormidade do que diz, e acredito que é profundamente sincero uma vez que a paixão e o amor pela música podem cegar, quando afirmou: Domingos António toca “Os quadros de uma Exposição” melhor que Sviatoslav Richter”!

A enormidade não está na afirmação em concreto de Cartaxo, mas no que se ouve quando o pianista executa ao piano a peça de Mussorgsky. O que ouvi foi um rapaz com uma força muito grande, com um indesmentível talento, uma técnica razoável, em que se notaram erros interpretativos graves, tempos demasiados puxados para a técnica que demonstrou, falhas nas passagens mais complexas. Exemplo: na passagem muito sincopada das correrias das crianças foi notória a falta de coordenação dos dedos de Domingos António, quando teve de fazer escalas muito recortadas a alta velocidade acabava por se atrapalhar comprometendo a clareza dessas passagens. Outro dado muito concreto foi a falta de precisão de toque, umas vezes mais martelado, outras mais doce, errático de certa forma, mas aqui claramente desculpável para quem andou a tocar em cima de um tampo de uma mesa durante dois anos! É um aspecto que terá de praticar muito, agora que parece já ter um piano. O uso do pedal foi umas facetas mais interessantes deste pianista, sem exageros de empastelamento. Na suite inglesa de Bach, usou tempos violentíssimos, uma rapidez vertiginosa, o que deu completamente para o torto, a clareza das linhas de semicolcheias bachianas ficou completamente destruída, algumas notas ficaram por tocar e o ritmo de execução perdeu-se. O estilo de tocar Bach pela escola russa é altamente discutível, as ênfases, as acentuações estiveram fora do lugar, o fraseado romântico substituiu a articulação barroca. Pior, os tempos exagerados descaracterizam o cariz de dança das suites. A velocidade excessiva tranformou o pianista num frio dactilógrafo imperfeito. A própria Allemande foi demasiado veloz, sabendo que era uma peça de apresentação aos monarcas, pomposa, aqui a pompa deu lugar a um ritmo mais andante marcato que pomposo.
Em suma Domingos António mostra qualidades evidentes, técnica elevada, mas que tem de ser aproveitada com um estudo muito rigoroso, uma vez que tem muitos problemas de interpretação.

O lado humano da questão é muito importante, é um erro gravíssimo endeusar um homem como Domingos António, felizmente creio que ele terá a inteligência e a modéstia para perceber o exagero. Pode ser muito perigroso para o seu futuro de músico e até como ser humano. Domingos António antes de ser apresentado como um “fenómeno” de circo deve ser escutado como um pianista de elevadíssimo potencial, mas que deve ser aconselhado, deve trabalhar com pedagogos de grande qualidade musical e humana. Pouco precisa, apenas uma orientação séria, e poderá ser a confirmação de uma promessa que hoje se começa a desvendar. Fazer de Domingos António, hoje, um artista acabado de mestre incógnito mas consagrado e vender a imagem de um deus vivo do piano é uma irresponsabilidade gravíssima que me faz doer a alma.

Não ponham a fasquia demasiado alta a Domingos António é o que peço a quem “descobriu” o pianista e a quem muito se deve agradecer pela desinteressada ajuda a um jovem carenciado e talentoso, mas sem exageros, com todos os cuidados pelo lado humano.

Henrique Silveira

P.S. Escrevi este texto para mim próprio, de forma a ficar no meu diário pessoal com uma lembrança do que se passou, é complicado escrever publicamente sobre um recital privado. Uma vez que jornais de referência, como o Expresso de hoje, violam alegremente esta regra, creio que não será dispiciendo escrever sobre este assunto, sobretudo pelo factor humano e pela crítica construtiva que encerra e que deve ser ponderado por quem se deixou cegar.

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