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24.12.06

O Sentido do Natal 

Ele vai morrer aqui sem culpa, da Cruz abre as mãos e abraça o mundo, espalha a Redenção sobre todos, a todos recolhe nos seus braços. É o Natal dos que nada têm, o abraço de Jesus na Cruz.

Recitativo
Oboe da caccia I/II, Continuo
Ach Golgatha, unselges Golgatha!
Der Herr der Herrlichkeit muss schimpflich hier verderben
Der Segen und das Heil der Welt
Wird als ein Fluch ans Kreuz gestellt.
Der Schöpfer Himmels und der Erden
Soll Erd und Luft entzogen werden.
Die Unschuld muss hier schuldig sterben,
Das gehet meiner Seele nah;
Ach Golgatha, unselges Golgatha!

Aria (alto) Coro
Oboe da caccia I/II, Continuo
Sehet, Jesus hat die Hand,
Uns zu fassen, ausgespannt,
Kommt! - Wohin? - in Jesu Armen
Sucht Erlösung, nehmt Erbarmen,
Suchet! - Wo? - in Jesu Armen.
Lebet, sterbet, ruhet hier,
Ihr verlass'nen Küchlein ihr,
Bleibet - Wo? - in Jesu Armen.

Excerto do Texto da Paixão Segundo S. Mateus de Bach por Christian Friedrich Henrici (Picander) 1727.

23.12.06

Mais Édipo 

Voltei ontem ao Teatro Nacional de S. Carlos.

Primeira parte: Fanny Ardant estava menos rouca mas o sotaque ainda era o do inspector Clouseau. Quase não se percebeu a recitação em Genesis Suite. O coro esteve horrendo também: vozes femininas em plano péssimo, gritadas e feias, vozes amarelas é o termo.

Segunda parte: Felizmente o coro liberto das vozes femininas esteve francamente melhor, mais seguro, mais ponderado nos ataques e nas saídas, mais refinado, mas claro que aqui o plano é relativo, trata-se de um coro de terceira categoria, e assim será enquanto não for completamente remodelado.
Felizmente, e essa foi a grande razão de ter voltado, a música de Stravisnky é magistral e a orquestra esteve muito mais refinada e apurada. Os sopros, com clarinetes à cabeça, onde todos estiveram bem, flautas oboés, fagotes, metais (que não espezinharam os outros com sons estridentes) estiveram francamente em plano elevado, os violinos estiveram mais coesos mas não passando da habitual mediania e as violas, violoncelos e contrabaixos estiveram bem. Notou-se uma grande evolução da estreia para ontem, a tal instabilidade desta orquestra que se vai revelando a cada passo volta a manifestar-se. Infelizmente o som, ainda e sempre o som, não é o de uma grande orquestra sinfónica, mas ontem aceitou-se.
Os cantores estiveram também melhores, se é possível, Chaves cantou de forma natural e sem quaisquer erros o seu pequeno papel demonstrando uma belo timbre, Halem esteve mais profundo, Petchenka continua com o vibrato avassalador e não há nada a fazer senão deixar arrepiar os cabelos com aquele vibrato-trilho pesadíssimo, apesar disso cantou com grande empenho e sentido dramático o que foi reconfortante, Watson melhorou o fraseado mas continua sem graves e perdeu o tom numa passagem inteira, finalmente Willy Hartmann, o melhor para o fim, foi simplesmente notável, nada a acrescentar sobre o texto anterior. Fanny Ardandt no seu francês e na sua elegância foi também muitíssimo melhor do que no primeiro dia, apesar da voz pouco clara.
Renzetti está de parabéns pela evolução demonstrada, ouviu-se agora toda a verdade da obra de Stravinsky. Como diz Pinamonti, o director do Teatro, o todo foi melhor do que a soma das partes, houve emoção, ritmo, força, as acentuações resultaram melhor, a obra foi mais incisiva do que na estreia.



Bandidos e Palermas - dois fait divers 

Afonso Costa foi um dos maiores bandidos que Portugal conheceu, João Gonçalves num esclarecido e indignado texto denuncia os seus seguidores como os PIDES dos costumes democráticos, concordo sem dúvida. E claro que são também uns palermas que não sabem fazer ao tempo livre que têm em excesso.

Outros palermas foram os tipos que andaram a dizer que a colecção Berardo não valia um chavelho, que os Picassos eram maus e que o Picabia era uma treta... e mais imbecilidades e que ninguém dava um chavo para ver aquilo. Um deles foi Fraústo da Silva, mas perdoa-se tendo em conta os serviços prestados ao estado e a sua natural dureza e provecta idade, pouco dada a conhecer novas línguas. Mas os outros, esse bando de coscuvilheiras de cabeça precocemente envelhecida, jornalistas, opinion makers, programadores, directores disto e daquilo, críticos de arte, ia sempre negando valor ao espólio do comendador Berardo, desprezando o self made man que não vai ai Lux e que não viu os filmes todos do Godard, ia também negando qualquer capacidade mental própria de raciocínio. Finalmente a avaliação independente em mais de 300 milhões de euros.
Próximo passo: os palermas do costume dizerem que o Comendador comprou a avaliação ou que se podia arranjar gente ao serviço do Estado capaz de comprar com dinheiros do públicos uma colecção maior e melhor e muito mais barata...


22.12.06

Ana Quintans 

Gostei muito da voz de Ana Quintans, que beleza frágil, que belíssimo timbre agudo que nunca perde a beleza mesmo nos pontos mais elevados, um dom raro, raríssimo. Precisa apenas de mais naturalidade e de um mestre competente que lhe faça abrir a voz e florescer o estilo para um futuro sem igual em Mozart, em Rossini. Ana Quintans será uma grande cantora de música antiga. Um vibrato subtilíssimo. Precisa apenas de mais segurança, de mais à-vontade que só muitos concertos e palco lhe podem dar. É espantoso como os jovens artistas conseguem sobreviver a um sistema de ensino português notável pela sua mediocridade e se afirmam pelo seu talento natural e pela sua força. É fantástico como Ana Quintans cantou tão bem apesar do maestro. Realmente é obra.

Um coro de 85 vozes para Mendelssohn e 62 para uma missa de Mozart. No Salmo de Mendelssohn estavam cinco, pasme-se, cinco violoncelos para 85 cantores e vários trombones, um desequilíbrio objectivo e altamente pernicioso para uma audição equilibrada das obras...
Nunca se ouviu sequer um allegro, quanto mais um allegro vivace...
O órgão desapareceu misteriosamente da partitura de Corboz...
Os pobres músicos e membros do coro não têm culpa mas estilisticamente o concerto foi uma tragédia, o ano Mzar (faltam letras de propósito) encerra na Gulbenkian com chave muito ferrugenta.

Fica a lista dos tempos para o leitor saber com o que devia ter contado:

Andante Moderato
Allegro Vivace
Allegro Aperto
Allegro Moderato
Largo
Allegro
Adagio
Allegro Maestoso (credo)
Largo
Allegro Comodo
Allegro Comodo

Sobre o resto é melhor estar calado, far-me-ia mal aos nervos e era capaz de escrever dezenas de milhares de caracteres, os meus amigos ir-me-iam acusar de ser sempre um rabugento e já não estou para isso.
Parece que vai haver um orgasmo pela paz. Acho bem mas não sou capaz, infelizmente ouvi ontem o Michel Corboz a dirigir...


21.12.06

Édipo no S. Carlos 

20. 21. 22 de Dezembro 2006 às 20:00h.
Teatro Nacional de São Carlos

GENESIS SUITE (1945) numa estreia em Portugal.
Schönberg - Milhaud - Castelnuovo-Tedesco - Stravinski
Interpretação musical em sete partes dos primeiros onze capítulos do Livro Génesis.
Voz recitante
Fanny Ardant
OEDIPUS REX em versão de concerto - Igor Stravinski
Direcção musical Donato Renzetti
Ópera-oratória em dois actos. Libreto de Jean Cocteau segundo Sófocles.
versão de concerto
Voz recitante - Fanny Ardant
Oedipus - Will Hartmann
Creonte/Mensageiro - Keel Watson
Jocasta - Mariana Pentcheva
Pastor - Pedro Chaves

Orquestra Sinfónica Portuguesa
Coro do Teatro Nacional de São Carlos

Sejamos claros, a Genesis suite é uma obra interessante, é interessante a sua recuperação, mas é também uma obra incongruente, sem coerência interna, dispersa, e ainda por cima faltam-lhe três quadros, perdidos.
Os compositores estavam em campos estéticos diametralmente opostos, o que, apesar de conferir falta de unidade à obra, se torna interessante pelas diferenças estéticas presentes e tão evidentes. Foi bem programada e deu um interesse acrescido ao concerto.
A orquestra Sinfónica portuguesa cumpriu dentro das suas limitações de orquestra de segunda, o som continua desinteressante e não existe pathos dramático, as acentuações são frouxas, as cordas agudas continuam sem um som de conjunto.
Fanny Ardant, recitante em inglês, esteve francamente mal face às expectativas, voz muito pouco clara e rouca, o inglês parecia o do inspector Clouseau, o que até conferiu algum humor ao seu trabalho.
O coro esteve fraco (aqui o fraco do coro é de uma outra dimensão do fraco de Ardant), vozes gritadas e estrídulas, projecções excessivas, para lá do necessário. Dá a impressão de termos no conjunto dos sopranos um conjunto frustrado de Natálias de Andrade: todas gostariam de poder gravar uns CD e serem solistas no S. Carlos. Os tenores enfermam do mesmo vício, entusiasmam-se e... é o caos, ficam a berrar fora de tempo, prolongam em excesso as notas, atrasam. Já foi pior mas continua inaceitável, depois de um franco progresso com Andreoli à frente, o coro está a voltar a estagnar e a não passar daquilo.
Foi interessante escutar esta peça mas fica uma imagem pálida da obra pela interpretação insatisfatória.

No Édipo de Stravinsky a coisa melhorou muito em termos musicais, a orquestra pareceu mais trabalhada e o som mais coeso, o coro menos agressivo, mas ainda num patamar inferior ao exigível, com entradas inseguras e saídas desconexas, desafinação e gritaria.
Os cantores ajudaram a melhorar o panorama: Willi Hartmann é um cantor extraordinário que raramente temos a possibilidade de escutar, compôs um Édipo atormentado psicologicamente e de grande dramatismo vocal, bem diferente do também excelente brilho irónico do Loge que realizou aqui no ano passado: Hartmann muda o seu timbre de acordo com o papel. Interpreta de forma muito natural a difícil linha de Stravinsky, não exagera na emissão adequando a sua prestação à obra, simplesmente brilhante.
Fanny Ardant foi novo recitante, um recitante que confere unidade a uma obra também ela aparentemente desconexa onde as ideias de Jean Cocteau procuram apontar os eixos simbólicos mais importante no Édipo original de Sófocles e da tragédia mitológica. Desta feita sem o peso da orquestra a tapar o texto e num francês puro, num tom carregado de dramatismo, esteve mais à altura do que se lhe esperava. Foi impressiva a sua entrada com uma voz assustadora que deixou o público assustado na cadeira.
A cantora Mariana Pentcheva, tem uma voz de peso, mas não evitou erros, o seu vibrato pesado, pesadíssimo mesmo, aproxima a sua voz dum registo kitsch e muito pouco refinado. Um vibrato tão excessivo que se aproxima da desafinação. Poderia ser uma excelente cantora se tivesse sido dirigida de acordo com a dimensão frágil e atormentada do papel de Jocasta; assim parecia um elefante numa loja de louça. Quem acredita que a padeira de Aljubarrota pode fazer de Jocasta, mãe de Édipo? Tivemos uma padeira de Aljubarrota com um vibrato digno de um apito de comboio. Belíssimos graves, médios cheios de corpo e agudos vibrantes de energia, mas pouca adequação ao texto e interpretação duvidosa.
Não gostei tanto de Keel Watson como da última vez que o escutei (no Ouro do Reno), parece-me que a sua voz estava com pouca densidade nos graves. Era exigível aqui uma maior presença do registo grave.
Victor Von Halem foi impressivo no seu pequeno papel, os seus graves continuam profundos, o veterano cantor continua a impressionar pelo seu ar imponente e interpretações de peso hierático, a la Grande Inquisidor...
Finalmente Pedro Chaves surpreendeu pela sua capacidade de se adaptar a uma linha vocal espinhosa, a sua voz bonita e a sua concentração e interpretação estiveram ao nível exigido pelo seu papel com levíssimos desvios de tom que corrigiu com inteligência. Gostei de ouvir o cantor português a cantar num palco maior.
A interpretação conduzida por Renzetti foi mais uma vez profissional e um compromisso aceitável com os recursos disponíveis, uma orquestra temperamental, irregular e com dificuldades, um coro fraco, vozes solistas entre o razoável e o excelente. Falhou redondamente em não domar as exorbitantes características vocais de Pentcheva. Esteve bem nas entradas e procurou dar um poder incisivo e dramático ao tecido musical em Édipo, mas falhou mais uma vez no refinamento do som, algo que me parece quase impossível de obter...

Pedro Boleo faz uma crítica no "O Público" a este concerto, uma crítica que vai bem mas com algumas imprecisões! Boleo afirma que a actuação da orquestra e coro foi "bastante bem excepto algumas imprecisões", que é o mesmo que não dizer nada e mesmo assim de forma deficiente. Nem o coro nem a orquestra estiveram "bastante bem". A orquestra esteve medíocre e o coro foi fraco, e as imprecisões foram mais do que muitas. Impreciso esteve também Boleo ao escrever o nome do cantor Victor Halem, onde faltou o "H" que tanta diferença faz; ainda por cima é um cantor bem conhecido em Portugal...
Recomenda-se aos críticos que vão dar uma volta para ouvir em concerto algumas boas orquestras e coros por esse Mundo fora para ter elementos comparativos, não faz bem aos ouvidos e ao sentido crítico ficar em Portugal a ouvir muitas vezes a Sinfónica Portuguesa e o coro do S. Carlos.
O meu médico até já me proibiu ouvir demasiadas vezes estes agrupamentos porque me faz mal aos nervos, é por isso que lá para a Páscoa rumo mais uma vez para a Baviera e Salzburg para, livre desta horrenda febre Mozart, mergulhar de novo em Música, e mais uma vez Wagner pela Filarmónica de Berlim. Lavagem de ouvidos e do cérebro.


20.12.06

Petições on-line 

Duvido muito de petições on-line, quase nunca assino. São falsificáveis, manipuláveis, as identidades não se podem confirmar, podem até ser assinadas milhares de vezes pelos mesmo indivíduos.
São argumentos contra, mas o pior nem é isso, o pior são as falsificações das intenções e os pressupostos errados apresentados como verdades imutáveis Os pressupostos deste tipo de petições são geralmente histéricos: gente descabelada procura chamar a atenção para as causas mais variadas, os pressupostos são sempre conducentes a repor a justiça onde foram cometidas injustiças malévolas e gritantes. Nunca são apresentados os dois lados da situação. O segundo lado da moeda fica para a inteligência e a boa fé de quem é tentado a assinar, uns têm boa fé em demasia e acreditam e assinam logo, os cínicos percebem logo tudo e assinam porque têm precisamente excesso de má-fé, outros não assinam porque se podem prejudicar, sobram muito poucos: os que realmente reflectem no assunto.
Quem não assinaria uma petição clamando contra o espancamento ritual das avós com mais de setenta anos, seguida por cuspidelas na sopa, por parte das tribos de uma qualquer região bárbara da Tansmânia, fenómeno sempre acompanhado pela queima de livros do Saramago?
Ninguém procura perceber qual a fonte de tal informação, mas aquilo é tão indigno, é horrível, temos de assinar, é compulsivo, queremos insultar a tal tribo de bárbaros, os outros são sempre uns malandros: pobres livros do Saramago queimados sem remissão por uns bárbaros que ainda por cima batem nas avós e cospem na sopa.
É o que se passa com estas petições, querem levar as pessoas na sua boa fé a assinarem de acordo com um manifesto que geralmente gera angústias e a revolta perante a injustiça.
Mas será que é mesmo assim? Vem isto a propósito de uma recente petição contra (há sempre um contra) a Direcção da RDP por ter "proibido um colaborador [não jornalista] de entrevistar portugueses", falo de Jorge Rodrigues, alguém que tem feito ao longo dos anos o programa Ritornello no final da tarde da antena 2. Posta assim a coisa é indigna, dá mesmo vontade de assinar contra a censura, é demais, além da popularização e jazzificação da rádio ainda querem calar o Jorge Rodrigues! Malandros, é acabar com eles, bora lá assinar. Assim se passou comigo, numa primeira fase resolvi assinar sem a menor dúvida, até quis escrever aqui um post contra a atitude terrível e censória da RDP.
Alguém me contou, recebi emails de quatro pessoas diferentes, li e fiquei indignado, vou já assinar, pensei. Mas e alto! E se parássemos para pensar, ler o texto olímpico da petição é perceber: com que então o Saramago não mais vai ser entrevistado. Isto não será um pouco excessivo?

Telefonei ao João Almeida, director adjunto da rádio, que me disse que aquilo não era verdade, que não tinha sido considerado de acordo com a ética jornalística o Jorge Rodrigues entrevistar pessoas ou responsáveis de entidades das quais dependesse enquanto funcionário do Teatro Nacional de S. Carlos e que evitasse entrevistar amigos devendo levar as entrevistas para aspectos gerais que interessassem ao público e não perdesse tempo na antena com conversa com amigos, a propósito de tudo e de nada, e com amiguismos do género: "há tanto tempo que não falamos, estás bom, e que belos tempos passámos e etc, etc, etc...", por outro lado não seria conveniente entrevistar personalidades que tivessem sido alvo de entrevistas nos dias mais próximos por outros membros, jornalistas ou colaboradores da Antena 2 para não afunilar a programação, parece que a Direcção através de Rui Pego, também quer orientar o Ritornello para um programa de cariz musical, foi dito a Jorge Rodrigues que poderia entrevistar quem quisesse (estrangeiro ou português), e isso até seria um trunfo da estação, para transmitir fora do programa Ritornello o que lhe daria mais espaço na rádio, finalmente nunca foi impedido de fazer entrevistas a portugueses, o que seria um total absurdo.
Parece-me sensato e um critério editorial irrepreensível por parte da Direcção, aliás consistente com uma orientação editorial rigorosa e precisa, uma orientação ética que impediria o acotovelamento das entrevistas às mesmas pessoas em períodos muito curtos e evitaria situações deontológicas duvidosas como fazer entrevistas ao patrão directo. Se um colaborador não compreende os limites do normal exercício da actividade de entrevistador, e um programa editorial de uma estação, deve então ter indicações editoriais para actuar de acordo com os padrões de exigência da estação. Não se trata de censura, imaginemos um jornal onde os jornalistas resolvem entrevistar quem muito bem lhes apetece e os editores dizem que as entrevistas não têm interesse e não são publicáveis. Será censura? Provavelmente esse tipo de atitudes é mais forte (e próximo de uma eventual censura) do que dar indicações editoriais concretas, genéricas e eticamente inabaláveis. É um princípio fundamental do jornalismo ser a direcção a decidir quem tem interesse entrevistar no espaço que dirige. Evidentemente que no caso vertente a Jorge Rodrigues foi dada toda a liberdade de entrevistar quem quisesse, desde que seguisse as normas editoriais, o que é mais aberto e livre do que em qualquer outra rádio ou jornal.
Grave, por exemplo, é o poder discricionários dos editores nos jornais que cortam e retalham e alteram textos dos jornalistas sem qualquer protesto ou petição.

Fiquei esclarecido, não assinei, também tenho sempre uma grande dificuldade em alinhar nestes movimentos imponderados. Hesitei em escrever este post, mas o meu programa na Antena 2 acaba em 31 de Dezembro, o que me deixa à vontade para elogiar quando é preciso e defender aquilo que considero ser uma causa justa contra uma descarada manipulação dos factos por esta pretensa petição. O que não quer dizer que defenda a linha editorial da Antena 2 no que respeita a uma certa popularização, mas isso são contas de outro rosário que fica para uma análise posterior que terá de ser feita forçosamente. Mas uma coisa são questões passíveis de argumentação como uma linha editorial, outra são questões éticas e descaradas manipulações da verdade.

Em Comum o Bigode 


Torres Couto.
António Guterres.
António Mega Ferreira.
José Sócrates Pinto Sousa.


16.12.06

Um de Abril? 

O jornal "O Público" noticia Lobélia Ventura (???) como futura director ou presidente da nova empresa "Opart" que dirigirá os futuros fundidos Teatro Nacional de S. Carlos e a Companhia Nacional de Bailado. Eu pergunto: Quem é esta criatura? Foi criada por quem? É criada de quem? Existe?

Será que o jornal publica hoje a notícia destinada ao 1 de Abril por engano?

Existe uma avenida Lobélia em Ventura!

Isto parece completamente surreal. Sem estratégia nem rumo, o teatro do absurdo tomou conta do governo de Portugal. Tendo um director capaz, inteligente, culto, reconhecido internacionalmente, competente para o lugar, capaz de produzir serviço público a preços muito baixos, equilibrado, pragmático e barato, compare-se o seu vencimento com o dos directores de Londres, Frankfurt, Paris, Madrid, Viena, Milão ou mesmo Manheim com os seus 200.000 habitantes, ou de Festivais como Aix, que só funcionam um mês por ano, todos ganham muitíssimo mais e a lista poderia continuar. Vai-se deitar fora um trunfo notável ao serviço deste país a troco do nada ou pior do que nada, porque pior do que ser nulo é ser destrutivo. Ou seja: tendo a pessoa ideal para o lugar que ocupa, e falo com a consciência tranquila porque critiquei muitas das suas decisões e escolhas, parece que se vai nomear alguém com currículo zero.

Pinamonti faz, disfarçando as faltas de dinheiro com imaginação, se não contrata o melhor vai contratando o menos mau, e às vezes contrata mesmo o melhor, Vick está no topo, Letonja é muito bom, Tate é do melhor que há no mundo, Braunschweig é do melhor que há no mundo e a lista não pára. Escolhe artistas jovens mas já muito bons. Pinamonti é capaz de gerar empatias que vão do BCP ao antigo presidente Jorge Sampaio passando pela gente comum, Pinamonti enche a sala do S. Carlos para as produções operáticas, e é mesmo Pinamonti quem restaurou o Teatro e o recolocou no mapa, porque os directores anteriores foram arrastando o Teatro para uma espiral de decadência (e despesismo) que ia acabando de vez com o S. Carlos. No panorama nacional e internacional não há melhor e mais disponível do que Pinanonti, está no lugar e satisfeito com Portugal, não haverá mais uma oportunidade de ter um director competente e com relações internacionais como Pinamonti nos próximos anos. Voltamos a deitar fora o que é bom pelo desconhecido apenas por birra, por interesse próprio e não por interesse do Estado, apenas por afirmação de vontades e de personalidades alheias a projectos consistentes e estratégias definidas, alheias ao serviço público que os governantes deveriam servir.

E faz-se isto tudo (a fusão) nas costas do Director do S. Carlos? Sem conversar, sem preparar estratégias, deselegantemente, sem categoria nem respeito pelas pessoas. Pelos visados e pelos contribuintes que pagam todo este estaminé.

A minha sugestão é que Mário Vieira de Carvalho passe a acumular as funções de secretário de Estado com o de director da nova estrutura, ao menos fez um doutoramento na RDA sobre o assunto, matava assim dois coelhos: arrumava o Pinamonti e poupava um ordenado, podia-se comer mais sushi e beber Clicquot em vêz de Moët nas futuras sessões de apresentação de documentários sobre o Ring. Podia-se então ouvir Wagner em Português no Coliseu dos Recreios.


14.12.06

Finalmente saiu 

De cortar a respiração


São dias de júbilo, estes, há nova música, música avassaladora de Diego Ortiz, que estávamos habituados a ouvir nas Glosas, ou nas ricercadas para viola de gamba, em interpretações de Jordi Savall.
Marco Mencoboni descobriu esta música religiosa de Ortiz, toledano em Nápoles ao serviço do vice-rei. A música, polifonia da mais altíssima qualidade, escrita por Ortiz é avassaladora. A interpretação é arrepiante, quer nos instrumentos quer, sobretudo, na parte vocal. A técnica de gravação ultrapassa todos os paradigmas; em cinco canais para fazer jus à técnica do Cantar Lontano de Marco Mencoboni.

O Tomás Marques, amigo de Marco Mencoboni, deu-me a conhecer este disco. Nestes últimos dias quando se entra na VGM, ali para as Picoas em Lisboa, frente ao "O Público", ouvem-se imediatamente os graves profundos dos baixos que cantam nesta gravação sublime. Este é sem dúvida um dos melhores discos de todos os tempos.

Uma gravação que não pode ser deste mundo!


Così fan tutte - Um guisado saboroso 

Agora que a produção no S. Carlos terminou e depois de algum tempo de reflexão é altura de finalizar esta série de comentários. Devo dizer que, apesar de discordâncias estéticas sobre a encenação, esta é uma abordagem válida, competente e realizada, consistente com a concepção do encenador de centrar tudo na acção teatral e menos nos lados dispersivos. Goste-se ou não da encenação com cena fixa, e eu acho geralmente monótono (excepto em Wagner onde existem muitos argumentos a seu favor), todo o resultado é coerente.

A encenação de Mario Martone é professional, tem uma grande qualidade na direcção de actores, joga nos espelhos entre Dorabella e Fiordiligi e entre Ferrando e Guglielmo, espelho que está bem presente e explícito em cena, espelho que esconde e revela, reflectindo personagens e maestro, sala e público e translúcido revelando o que se passa por detrás. As trocas são no fundo um repor da terra nos eixos, representam ainda uma visão inteligente que resulta no facto de as irmãs e os jovens cavalheiros de facto, consciente ou inconscientemente, cobiçarem o outro.
Se assim não fosse eles não aceitavam no momento máximo da troca de casais o desafio do outro, bem como elas nunca aceitariam um oposto do seu suposto amado se não tivessem esse desejo de experimentar o outro. Nesse subtítulo de "Escola de Amantes" reside, no fundo, a ideia motriz desta encenação, que é claramente a sua vantagem e a sua desvantagem.
Os rapazes aparecem em cena apenas com um bigodinho pintado que nunca disfarçaria ao olhar do outro, neste caso outra, uma identidade bem conhecida, elas vêem tudo, têm todas as cartas na mão mas preferem ignorar, preferem o embuste mais do que óbvio pela sedução do jogo.
A encenação termina precisamente com os quatro amantes na cama, lado a lado, todos tapados por um lençol, reforçando a ideia de que o equívoco vai permanecer, agora que passou o tempo da Escola" os amantes são isso mesmo: amantes, indistintos, já não há espelhos aqui, o espelho desapareceu por detrás dos lençois, desaparecido o espelho revela-se a fusão, uma fusão dos amantes já iniciados...
Um dos lados francamente positivos desta encenação é não querer transformar a ópera de Mozart naquilo que ela não é, trata-se de uma farsa, faz pensar, sem sombra de dúvida, mas sobretudo faz rir, os elementos jocosos são muito bem sublinhados, a criada Despina é extraordinária e muito bem desenhada e orientada por Martone (e muito bem servida de actrizes), uma criada que sem par, este Alfonso não serve para isso, tem de seduzir o maestro, imagem idealizado do universo exterior, que contracena com Despina, teatro fora do teatro, teatro escondido mas presente, nada à mostra e tudo revelado, sem segredos, distanciamento e proximidade. As figuras dos jovens militares estão muito bem realizadas no seu capítulo hiperbólico mas sem atingir o exagero, as duas irmãs estão muito bem realizadas nas suas diferentes personalidades, e até fisicamente estão bem escolhidas. Aposta ainda numa figura desvalorizada de Alfonso, que aparece caracterizado de forma muito grosseira sendo pouco convincente como cavalheiro cínico, conhecedor do mundo e filósofo. Quem acreditaria que aquele Praticò é um D. João reformado? Quem acredita que o D. João é capaz de se reformar? É para mim o único senão da caracterização dos personagens.

Voltando ao plano global, toda a ideia de Martone é coerente, tem leitura psicanalíticas, é alicerçado por uma cenografia de acordo com a ideia. Ópera de câmara, câmara de leito, proximidade com o público, audição quase privada, pornografia para eleitos de uma corte corrompida pelos prazeres do tempo, José II no seu tempo (onde nada era explícito), nós hoje (onde tudo é explícito). Onde resulta menos bem, no meu entender, é no lado óbvio da coisa, não seria mais subtil deixar as acções pelos subentendidos, pelas ausências, pelos claro-escuros? Porquê este preto e branco? O sexo explícito nesta obra é demasiado grosseiro, num século XXI em que tudo tem de ser dito e não sobra espaço para a imaginação. É certo que o século XVIII, pelo menos nas classes elevadas, era bastante mais liberal e tolerante do que os tempos de hoje, por paradoxal que isto possa parecer. Vivemos um tempo de falsas moralidades, vivemos um tempo castrador, um tempo vingativo que devora ainda e sempre os seus filhos. A imaginação, a subtileza, não fazem parte dos nossos dias. Antes fazia-se com subtileza, hoje revela-se com alarde aquilo que já é impossível.
Martone é fruto do nosso tempo, tal como Mozart e Da Ponte o eram do seu. No meu entender a poesia original é mais profunda e bela do que a grosseria e a arrogância do "artista" de hoje, o óbvio escondido, no texto e na partitura, são puxados para primeiro plano, tudo aquilo que um público inteligente perceberia facilmente no tempo de Mozart é agora escarrapachado aos nossos olhos.
E depois aparecem sempre uns lados incongruentes que acabam por me deixar desconfiado relativamente à profundidade da encenação e à sensibilidade do encenador: o facto de na serenata aparecerem dois figurantes a fingir que tocam tambor e pandeireta é simplesmente ridículo, a música que se toca nada tem a ver com pandeireta e tambor, é música subtil, nocturna, diáfana.
Por outro lado as camas que servem para tudo, inclusivamente para mesas de banquete, estão em cena o tempo todo, acabam por dar uma dimensão estática que se torna monótona e incongruente com o texto, é-me desagradável ouvir que se vão sentar numa mesa e se sentam na cama, para encenação surreal ao menos que se invertessem os papeis: deitavam-se na mesa e sentavam-se na cama. Ser radical nuns pontos e convencional noutros é andar nas meias tintas, os figurinos são de época, estamos sempre dentro de casa, camas em cena, e ao mesmo tempo passeia-se no jardim, camas em cena, e aparecem umas pedras estranhíssimas (parece que são vesuvianas, será que só existem pedras no Vesúvio?) na boca de cena, e camas em cena. Não será um pouco incongruente com texto? Não distrai em vez de centrar? A distracção resulta do facto de serem anómalas aos ambientes descritos e explicitados no texto. Será que o encenador não ouve o texto e o que dizem os personagens? Será que o triângulo usado pelo médico é maçónico? Alguém que me explique o significado maçónico desta ópera? Será pela iniciação e processo de descoberta que os personagens vão vivendo? Nesse caso sempre que existe uma obra teatral de valor temos um processo maçónico, porque a evolução dos personagens é sempre o motor fundamenal do processo dramático, estou farto de referências maçónicas gratuitas, a propósito de tudo e nada, em qualquer obra de Mozart.
Finalmente acho que os copos deviam conter mesmo líquido!
Felizmente Martone é um profissional competentíssimo e conhecedor do seu metier, porque consegue realizar a sua ideia de forma coerente até ao fim e dirigir um grupo de actores sempre muito jovem (excepto o citado Praticò), com melhores resultados num e noutro caso e com piores noutros, mas numa globalidade muito positiva.

Sobre a produção destaco que, apesar destas considerações estéticas, me pareceu absolutamente conseguida nos seus objectivos, apesar de discordar desta ou daquela ideia, apesar de pensar que o lado explícito foi desajustado da obra, o Così fan tutte no S. Carlos valeu a pena, a orquestra é medíocre, o coro é fracote, Renzetti poderia ter explorado mais as linhas complexas do texto mozarteano, poderia ter construído uma teia de som mais articulada e complexa, mas foi o melhor possível com o material de que dispõe. Creio que ter orientado todo o discurso musical para o refinamento, em vez de priviligear alguma segurança e algum pathos mais romântico, poderia levar à catástrofe. Preferiu jogar pelo seguro. Como se sabe o bom é inimigo do óptimo, e com a OSP e este coro o óptimo é impossível, neste caso o pragmatismo compensou conseguindo levar o barco até ao porto. As vozes foram no geral boas e com grande campo de evolução. A encenação foi altamente competente. A cenografia eficaz no contexto pobre das tais camas, mas com boas realizações como a dos telões deslizantes, os figurinos ao tempo foram bem realizados. Belíssimo e subtil o desenho de luzes.
Uma produção que acabou por dar prazer presenciar porque "como na cozinha, em Ópera o todo é mais do que a soma das partes", sob a orientação dos "cozinheiros" Martone e Renzettti o guisado acabou por ser saboroso!


10.12.06

Così fan tutte no S. Carlos 

Agora que assisti a duas récitas, primeiro e segundo elenco posso enunciar mais dados críticos sobre os aspectos musicais desta produção.

Donato Renzetti: Profissional, atento à partitura, sempre tentanto manter a orquestra segura. Não evitou desacertos graves entre cantores e orquestra em ambas as récitas a que assisti. O lado mozarteano, a idiomática, as articulações não atingiram o nível de refinamento e de subtileza necessários a uma partitura destas. Manteve alguma vivacidade (pouca) ao nível dos tempos e perdeu-a ainda no nível das articulações, muito mastigadas e com dificuldades. Se não me enganei na cronometragem a ópera demorou mais de 3h10m na estreia, o que ultrapassa em muito o que se tem feito pelo mundo fora. A coordenação dos elementos em palco foi esforçada mas não atingiu o mínimo exigível, o coro esteve sempre desacertado entre as diversas vozes que o compõem e os restantes elementos musicais. Finalmente os cantores estiveram muitas vezes desfazados da orquestra. Nota positiva porque a coisa lá se foi conseguindo ouvir com algum agrado, mas pouco passa do dez.

Orquestra: As trompas, massacradas por toda a crítica, estiveram realmente em plano muito fraco na estreia, mostrando-se medíocres no dia do segundo elenco. Deve-se dizer que esta orquestra é fraca e enquanto o Estado português pagar o que paga (e não exigir um estatuto de quase exclusividade) terá sempre músicos e instrumentos inferiores aos das melhores orquestras internacionais. Se somarmos a isto falta de disciplina de trabalho, acabamos com uma orquestra muito irregular, supera-se umas vezes decai quase sempre na vez seguinte. Os maestros que aqui passam conseguem nuns casos levar a água ao moinho, noutros a coisa revela-se na sua amargura, não se pode exigir mais, é assim... Pedir a esta orquestra uma prestação digna de mérito absoluto é exigir demais, se nos colocarmos numa análise de mérito relativo então a situação é mesmo vergonhosa para um país que já foi chamado de “mar da música” no século XVI. Factos: falou-se dos sopros, aspectos mais evidentes de uma prestação débil, as trompas comprometeram muitas passagens com erros de palmatória mas as cordas (sobretudo nas partes agudas) exibiram sempre uma articulação inapropriada, arrastada, o som resultou abafado, pelo número reduzido de instrumentistas e pela falta de brilho da interpretação. Se no dia da estreia parecia que a coisa tenderia a subir com mais récitas, no dia do segundo elenco a música resultou muito pior. No dia do segundo elenco reapareceu desafinação nos primeiros violinos, coisa absolutamente inadmissível em qualquer orquestra, mesmo fraca como esta, entradas fora de tempo e saídas também fora de tempo e muitas notas erradas que se destacam pela delicadeza da construção mozarteana. O tecido instrumental foi confuso sem um nexo condutor, desacertos e descoordenações foram gritantes. E se os sopros comprometeram às vezes, os violinos comprometeram sempre. Eu esperava que depois de uma estreia algo fracota a orquestra se superasse, é falso e enganei-me, decaiu em direcção ao lado puramente rotineiro e de cumprir calendário. A orquestra não tem condições de trabalho mas apesar disso poderia ter brio, e não falo do trabalho técnico do maestro mas sim de aspectos absolutamente essenciais como o não dar notas erradas e ser capaz de afinar...

A aparição do coro foi desastrosa na primeira récita. O coro está de novo a decair, os cantores berram tentando sobressair do conjunto, terminam frases depois dos outros porque ficam a sustentar notas não se sabe bem para quê e não conseguem entrar todos ao mesmo tempo e no ponto exacto. Notou-se também desafinação, menor do que em tempos passados. Acabo por não saber se foi pior na estreia ou no dia do segundo elenco, mas é tão fraco que não vale a pena perder muito tempo. Mozart não merecia este tratamento e felizmente o coro não está muito tempo a arruinar o conjunto nesta produção.

Cantores: Já afirmei que não há cantores maus nesta produção, na estreia é verdade, no segundo elenco já não estou tão certo, o segundo elenco é, no meu entender, bastante inferior ao primeiro, vejamos:

Irina Lungu Fiordiligi 1º Elenco – Irina Lungu é muito jovem, tem um longuíssimo caminho a percorrer, saiu do conservatório em 2004, tem uma voz natural de soprano lírico, eu diria que apropriadíssimo à ópera verdiana. Aperfeiçoa-se em Itália e o seu italiano é já muito bom, fez uma extraordinária Iolanta de Tchaikovsky com Fedoseyev a dirigir. Mas ou Donato Renzetti não é Fedoseyev ou Irina Lungu não é uma cantora mozarteana em estado natural, o seu papel é muito extenso no tempo e na tessitura, Irina teve dificuldades nos agudos emitidos de forma apitada em “como scoglio” e no tremendo conjunto “Per pietà...” (onde as trompas exibiram o seu lado mais trapalhão) foram os graves que não tiveram a necessária profundidade, o “tradimento” bem no fundo do registo grave do recitativo não teve o poder de uma grande mozarteana, e não comparo com os nomes que já imaginaram porque não é justo comparar uma jovem de 26 anos com cantoras que fizeram uma carreira longuíssima e trabalharam Mozart ao longo de dezenas de anos. Irina Lungu onde lhe falta estilo mozarteano compensa com uma boa voz e muito talento, tenta interpretar a partitura com inteligência, apiana, faz efeitos de cor, é afinada e não recorre a portamentos para a recolocar no sítio porque não precisa, o vibrato não é exagerado, tem legato mesmo nos saltos para os agudos, mas tem ainda um longo caminho a percorrer em Mozart. Como actriz também poderia ter sido mais expressiva.
E se a ligeireza e a facilidade de articulação serão adquiridas com trabalho, o peso dos graves talvez venha a aparecer com o tempo. No entanto Irina Lungu será sempre uma muito melhor verdiana, e estará sempre melhor nos Bellini e Donizetti do que em Mozart. Em Tchaikovsky já provou que, apesar da idade, os seus estudos e a sua língua lhe dão um talento natural tão grande que não há melhor, mas escutámos Mozart...
Como actriz foi inexpressiva.

Ekaterina Godovanets (2º Elenco) O facto de ter uma entrada desastrosa não retira muito mérito ao seu trabalho, é muito jovem, creio que 27 anos, tem uma voz menos rica do que Lungu, a emissão dos agudos foi sempre um problema muito complexo e delicado, porque creio que estava muito nervosa com esta estreia no papel, nunca conseguiu fazer legato para notas acima do sol, deixando sempre um buraco, um intervalo de tempo necessário para atacar a nota superior com mais alguma segurança, o que é pouco convincente e vai arruinando uma interpretação coerente, destrói o fraseado e qualquer possibilidade de articulação. Por outro lado tem um timbre pobre em harmónicos, e em cenas de conjunto desafinou clamorosamente. Penso que terá potencialidades, demonstradas sobretudo no segundo acto onde esteve francamente melhor, mas ainda assim ainda no plano escolar. Gostei do seu sentido dramático em termos teatrais e em termos interpretativos, mas sempre no segundo acto. Os duetos, e tercetos com Dorabella e Alfonso correram mal, sobretudo por culpa dos seus comparsas (onde se destaca pela negativa Mansilla). Será melhor aguardar por novas prestações desta cantora pois creio que os nervos podem ter contribuído para uma prestação relativamente fraca.

Laura Polverelli, Dorabella (1º Elenco) Este mezzo esteve bem, mostrou categoria e maturidade no seu papel, foi coerente na interpretação, domina bem a sua parte e conseguiu estar quase sempre bem nas cenas de conjunto. De voz encorpada conseguiu mostrar subtileza e representar a mais estouvada Dorabella com um grande domínio teatral e musical. Faltou-lhe apenas um pouco daquela facilidade que torna a interpretação superlativa e um teve um vibrato um pouco excessivo, mas cumpriu com qualidade e estilo o papel a que estava confiada. Como actriz também foi muito bem. No meu entender foi a cantora (no terceto feminino) em melhor plano global no primeiro elenco.

Angelica Mansilla, (2º Elenco) Não há muito a dizer, foi um desastre na dicção e no domínio do italiano, e vai ter de trabalhar muito para superar este problema tremendo.
Musicalmente começou de forma muito má, nervosa, fora de tom, com um timbre muito anasalado, descoordenada dos outros intérpretes, o terceto do final do primeiro acto saiu totalmente arruinado por sua falta de colocação, por desafinação e por falta de domínio da voz. No segundo acto conseguiu controlar melhor a voz, mas no balanço final diria que pode ter futuro se conseguir domar melhor a voz, pois o timbre pode até ter aspectos interessantes, um metal inabitual, que trabalhado a pode levar longe. Tem de apurar mais a colocação, o vibrato tem de ser menos tenso, tem de conseguir afinar melhor, tem de trabalhar melhor os aspectos estilisticos e finalmente tem de conseguir dominar o horrível sotaque espanhol madrileno que ostenta ao tentar cantar em italiano.

Silvia Colombini, Despina (1º Elenco) Ao contrário do que se tem dito por aí achei muita graça aos timbres inventados por Colombini para caracterizar o Notário e o Médico, mostrou sentido teatral e a ópera, apesar de ser posta no pedestal da genialidade de obra prima, de melhor ópera de Mozart, e eu sei que coisas mais, não passa de uma farsa, uma farsa para fazer rir, para divertir e para fazer pensar um pouco. Da Ponte é um génio, concordo, mas no seu género, ter leituras demasiado profundas e sacralizar a obra como se fosse a oitava maravilha do mundo leva ao exagero. Colombini correspondeu ao que se esperava dela, com graça, com movimentação cénica de grande qualidade. A voz não será a melhor voz do mundo, mas a cantora sabe o que faz e como faz, e ninguém lhe pede para ter a melhor voz do mundo nem esta é necessária para este papel. Devo dizer que foi das personagens mais consistentes e de acordo com que se espera, ser um motor da acção pela presença teatral, cantou bem, dentro da voz pequena que tem, sem um grande corpo vocal, fez divertir o público e esteve no espírito e estilo da obra.

Dora Rodrigues, (2º Elenco). É uma pena ver uma cantora como Dora Rodrigues confinada a fazer múltiplos papéis menores em produções maiores e ter destaque apenas na Figueira da Foz! Penso que esteve desaproveitada no papel, tem uma voz demasiado rica para a Despina, que caracterizou muito bem e com graça, mas notou-se a falta de rodagem de palco que tão bem lhe faria. Esteve musicalmente muito correcta e não distorceu o timbre para o médico, quando o fez para o notário esteve francamente divertida. Um pouco de vibrato excessivo e um pouco de “puxar” a voz em excesso para este papel foram para mim os defeitos menores desta boa cantora portuguesa.

Saimir Pirgu Ferrando (1º Elenco) Um belíssimo e incrivelmente jovem tenor, 24 anos segundo creio. Uma voz natural excelente, redonda, brilhante, bem timbrada. Algum exagero vocal onde poderia ser mais contido, alguma verdura em passagens mais refinadas, mas nada que estrague uma intervenção vocal e musical notáveis para um jovem desta idade. Um verdadeiro cavaleiro albanês, o albanês Pirgu vai ser um caso sério do canto mundial se prosseguir o aperfeiçoamento e os estudos de forma séria e ponderada sem excessos. O seu Mozart é cantado de forma natural, falta-lhe ainda o recorte que vem com o tempo, mas encantou em todas as árias e sobressaiu no sexteto final nas passagens de bravura com que Mozart o brindou, esteve um pouco menos certo nos recitativos onde a falta de experiência a pouco e pouco vai ser suprida por uma grande confiança que se lhe nota. Uma descoberta a seguir de forma muito interessada.

Mário João Alves (2º Elenco) – Apesar de algumas entradas fora de tom corrigidas prontamente com portamentos mais ou menos disfarçados (fruto de pouca rodagem de palco), Mário João Alves tem um bom sentido musical e teatral, a voz é bonita, redonda e muito apropriada para Mozart. Não tem um poder muito elevado que compensa com cor, com articulação e elegância, não lhe falta um legato que suporta bem alguns saltos (para o registo agudo com mudança de registo) mais ingratos. Gostei muito deste cantor português num papel em que ambos os elencos trouxeram cantores à altura do desafio. Mário João Alves está bem em Mozart, tem facilidade em cantar com fluidez e está bem nos recitativos. Falta-lhe apenas mais segurança em cenas de conjunto, onde poderia ter sido mais preciso. Foi no meu entender muito equilibrado e francamente bom como Ferrando.

Simone Alberghini Guglielmo (1º Elenco) Um barítono muito jovem que cumpriu com poder e convicção o papel de Guglielmo, divertido em palco, vocalmente é algo pesado para Mozart, cantando de forma sacudida (há quem goste o que não é o meu caso) e com um legato pouco elegante. Com características vocais intrínsecas deste tipo o cantor terá de se adaptar para cantar um papel relativamente ágil como o de Ferrando. Alberghini conseguiu manter o papel vivo e dentro do seu quadro vocal conseguiu ter uma leitura muito consistente e apropriada.

Luís Rodrigues (2º Elenco) – O barítono português não é no meu entender ideal para o papel de Guglielmo, sendo um bom actor, muito expressivo e divertido, a sua voz é algo pesada e canta também de forma algo sacudida, o que retira alguma elegância à sua prestação, digamos que o seu legato podia ser mais aveludado. Rodrigues chega a desfear o seu timbre quando puxa em demasia pela voz. No entanto a falta de oportunidades obriga os cantores portugueses a aceitarem papéis ideais e menos ideais, um barítono polivalente nunca será muito conseguido em todos os papéis. Neste caso Rodrigues defendeu-se muito bem pelo lado teatral e acabou por cantar de forma muito conseguida nas árias e cenas de conjunto.

Bruno Praticò Don Alfonso (Todos os elencos) O mais rodado e batido cantor desta produção, foi em tempos um barítono de grande recorte. Hoje mantém uma dicção exemplar, nota-se que domina o legato e o staccato com grande maestria, tem estilo vocal, mas algo está mal, será laringite, será tabaco em excesso, será uma carreira demasiado longa a precisar de repouso, mas a profundidade não está lá, continua com bons recitativos mas a gravidade vocal de outrora desapareceu, ouvem-se apenas os harmónicosa mais agudos o que chega a ser algo estranho, parece que falta o fundamental à sua voz, a voz está seca. Como actor está ainda em forma, mas a encenação fez ressaltar um lado demasiado grosseiro no personagem a que não será alheia a sua figura muito pesada, o que está em total desacordo com o texto de Da Ponte, Alfonso tem de ser um filósofo, um céptico, um homem das luzes, Praticò compõe um grosseirão.

A encenação será tratada noutro post.

Musicalmente a produção é muito razoável no primeiro elenco e menos razoável no segundo elenco. Isto tem a ver com vozes menos consistentes e de uma direcção musical mais frouxa que foi pior na segunda récita (segundo elenco) observada.


8.12.06

Censura e estupidez 

Da leitura deste texto, uma deliberação da Entidade Reguladora da Comunicação social com 144 páginas (que desperdício de tempo a fazê-la e meu a lê-la) o que ressalta é esse vício moralizador do censor, é o extravazar de competência, a elaboração de juízos de valor sem pressupostos universais e fundados. Ressalta enfim uma grande estupidez e uma clara manipulação dos próprios factos observados, atributos maiores dos censores em qualquer tempo e modo, v.g. análise dos conteúdos dos telejornais em relação aos fogos florestais que revela em absoluto um tratamento muito desigual dos canais públicos face aos privados e que a tal entidade considera isento e normal. Mesmo face à avassaladora evidência dos factos conclui-se ao contrário dos mesmos; exemplos: considerar a presença de fontes ligadas ao I.C.N. como não governamentais..., análise do tempo dedicado por cada estação ao assunto muito superior nas estações privadas, número de peças evidenciado muito superior nos canais privados, directos em número muito superior nas estações privadas e, finalmente, os destaque de abertura dos telejornais, onde apenas os canais públicos passaram o assunto para a cauda do alinhamento ao passo que as privadas abriram com o mesmo. Mas as conclusões apontam uma total isenção do operador público sendo estas desigualdades quase louvadas como sendo um dever decorrente do seu estatuto público, quando deveria ser exactamente ao contrário, ao operador público exigia-se um tratamento mais empenhado num assunto de grande importância pública e nacional.

Esta recomendação cheira mais a serviço do que a isenção. Finalmente incorre em erros de omnipotência ao dizer que não se prova a manipulação do governo e a sua ingerência nos operadores públicos. O que pode afirmar é que não conseguiu provar (terá tentado provar isso mesmo?) com os meios à sua disposição, escassos e sem o poder mandatório do poder judicial, que o governo manipulou e tentou manipular a informação dos canais públicos de televisão.
Depois da leitura deste arrazoado desculpabilizador do governo, atacando pessoalmente e de forma gravosa um crítico corajoso e independente que ousou manifestar-se contra uma situação que atinge foros de escândalo, este texto descredibiliza-se a si próprio e a quem o mandou fazer, é um texto persecutório, atentatório da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa.
De onde se prova que esta entidade regularizadora não pode ter mais poderes do que tem e que não serve para os fins para os quais os contribuintes a sustentam: zelar pela independência da comunicação social entre outras tantas coisas aparentemente cheias de bondade e candura mas afinal meros expedientes instrumentais.

Leia e tire as suas conclusões, estou de acordo com José Manuel Fernandes que classifica esta deliberação como infame, sem a menor dúvida.

1.12.06

Telegramas 

Devo aos leitores ainda uma lista de DCD's novo que tenho ouvido, comecei e não acabei, são agora mais de cem desde a lista que iniciei, e continuam...

Assisti a um recital de violoncelo e piano no Palácio Foz, Luís André Ferreira e Vital Stahievich. O pianista pareceu-me um fruto da escola russa, muito técnico mas sem trazer grande novidade. Luís Ferreira no violoncelo trouxe-nos uma frescura e algo de diferente a que não estamos habituados. Fica prometida uma breve crítica.

Brendel foi absolutamente arrasador nas suas aparições em Lisboa: recital e concerto com orquestra Gulbenkian, fica prometida a crítica.

Finalmente Cosi Fan Tutte, e Assim Fazem Todas, de Mozart no S. Carlos:
1. Direcção Musical agradável e com sentido profissional.
2. Encenação escorreita, belíssima direcção de actores mas cenografia tísica com algumas ideias (poucas) interessantes. Não gostei de alguns pontos que esclarecerei em próximas análises.
3. Orquestra fracota nas cordas mas a tentar superar-se, talvez vá subindo de récita para récita, mas quem paga a estreia já merece ter o máximo.
4. Coro (em versão reduzida) desastroso (felizmente não dá para estragar a ópera) embora em tempos passados ainda conseguisse ser pior, vozes muito feias, muito pouca suavidade, tudo agreste, pouco subtil, fora de tempo e mal coordenado, desafinação (menor do que em tempos passados mas mesmo assim inaceitável).
5. Vozes entre o muito bom e o erro de casting, actores no geral muito bem preparados, não existem maus cantores na produção, existem alguns problemas de estilo, mais análises desenvolverão o assunto.

Recomenda-se uma ida ao S. Carlos, no balanço final a coisa está muito razoável (mesmo em termos internacionais).


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