14.12.06
Così fan tutte - Um guisado saboroso
Agora que a produção no S. Carlos terminou e depois de algum tempo de reflexão é altura de finalizar esta série de comentários. Devo dizer que, apesar de discordâncias estéticas sobre a encenação, esta é uma abordagem válida, competente e realizada, consistente com a concepção do encenador de centrar tudo na acção teatral e menos nos lados dispersivos. Goste-se ou não da encenação com cena fixa, e eu acho geralmente monótono (excepto em Wagner onde existem muitos argumentos a seu favor), todo o resultado é coerente.
A encenação de Mario Martone é professional, tem uma grande qualidade na direcção de actores, joga nos espelhos entre Dorabella e Fiordiligi e entre Ferrando e Guglielmo, espelho que está bem presente e explícito em cena, espelho que esconde e revela, reflectindo personagens e maestro, sala e público e translúcido revelando o que se passa por detrás. As trocas são no fundo um repor da terra nos eixos, representam ainda uma visão inteligente que resulta no facto de as irmãs e os jovens cavalheiros de facto, consciente ou inconscientemente, cobiçarem o outro.
Se assim não fosse eles não aceitavam no momento máximo da troca de casais o desafio do outro, bem como elas nunca aceitariam um oposto do seu suposto amado se não tivessem esse desejo de experimentar o outro. Nesse subtítulo de "Escola de Amantes" reside, no fundo, a ideia motriz desta encenação, que é claramente a sua vantagem e a sua desvantagem.
Os rapazes aparecem em cena apenas com um bigodinho pintado que nunca disfarçaria ao olhar do outro, neste caso outra, uma identidade bem conhecida, elas vêem tudo, têm todas as cartas na mão mas preferem ignorar, preferem o embuste mais do que óbvio pela sedução do jogo.
A encenação termina precisamente com os quatro amantes na cama, lado a lado, todos tapados por um lençol, reforçando a ideia de que o equívoco vai permanecer, agora que passou o tempo da Escola" os amantes são isso mesmo: amantes, indistintos, já não há espelhos aqui, o espelho desapareceu por detrás dos lençois, desaparecido o espelho revela-se a fusão, uma fusão dos amantes já iniciados...
Um dos lados francamente positivos desta encenação é não querer transformar a ópera de Mozart naquilo que ela não é, trata-se de uma farsa, faz pensar, sem sombra de dúvida, mas sobretudo faz rir, os elementos jocosos são muito bem sublinhados, a criada Despina é extraordinária e muito bem desenhada e orientada por Martone (e muito bem servida de actrizes), uma criada que sem par, este Alfonso não serve para isso, tem de seduzir o maestro, imagem idealizado do universo exterior, que contracena com Despina, teatro fora do teatro, teatro escondido mas presente, nada à mostra e tudo revelado, sem segredos, distanciamento e proximidade. As figuras dos jovens militares estão muito bem realizadas no seu capítulo hiperbólico mas sem atingir o exagero, as duas irmãs estão muito bem realizadas nas suas diferentes personalidades, e até fisicamente estão bem escolhidas. Aposta ainda numa figura desvalorizada de Alfonso, que aparece caracterizado de forma muito grosseira sendo pouco convincente como cavalheiro cínico, conhecedor do mundo e filósofo. Quem acreditaria que aquele Praticò é um D. João reformado? Quem acredita que o D. João é capaz de se reformar? É para mim o único senão da caracterização dos personagens.
Voltando ao plano global, toda a ideia de Martone é coerente, tem leitura psicanalíticas, é alicerçado por uma cenografia de acordo com a ideia. Ópera de câmara, câmara de leito, proximidade com o público, audição quase privada, pornografia para eleitos de uma corte corrompida pelos prazeres do tempo, José II no seu tempo (onde nada era explícito), nós hoje (onde tudo é explícito). Onde resulta menos bem, no meu entender, é no lado óbvio da coisa, não seria mais subtil deixar as acções pelos subentendidos, pelas ausências, pelos claro-escuros? Porquê este preto e branco? O sexo explícito nesta obra é demasiado grosseiro, num século XXI em que tudo tem de ser dito e não sobra espaço para a imaginação. É certo que o século XVIII, pelo menos nas classes elevadas, era bastante mais liberal e tolerante do que os tempos de hoje, por paradoxal que isto possa parecer. Vivemos um tempo de falsas moralidades, vivemos um tempo castrador, um tempo vingativo que devora ainda e sempre os seus filhos. A imaginação, a subtileza, não fazem parte dos nossos dias. Antes fazia-se com subtileza, hoje revela-se com alarde aquilo que já é impossível.
Martone é fruto do nosso tempo, tal como Mozart e Da Ponte o eram do seu. No meu entender a poesia original é mais profunda e bela do que a grosseria e a arrogância do "artista" de hoje, o óbvio escondido, no texto e na partitura, são puxados para primeiro plano, tudo aquilo que um público inteligente perceberia facilmente no tempo de Mozart é agora escarrapachado aos nossos olhos.
E depois aparecem sempre uns lados incongruentes que acabam por me deixar desconfiado relativamente à profundidade da encenação e à sensibilidade do encenador: o facto de na serenata aparecerem dois figurantes a fingir que tocam tambor e pandeireta é simplesmente ridículo, a música que se toca nada tem a ver com pandeireta e tambor, é música subtil, nocturna, diáfana.
Por outro lado as camas que servem para tudo, inclusivamente para mesas de banquete, estão em cena o tempo todo, acabam por dar uma dimensão estática que se torna monótona e incongruente com o texto, é-me desagradável ouvir que se vão sentar numa mesa e se sentam na cama, para encenação surreal ao menos que se invertessem os papeis: deitavam-se na mesa e sentavam-se na cama. Ser radical nuns pontos e convencional noutros é andar nas meias tintas, os figurinos são de época, estamos sempre dentro de casa, camas em cena, e ao mesmo tempo passeia-se no jardim, camas em cena, e aparecem umas pedras estranhíssimas (parece que são vesuvianas, será que só existem pedras no Vesúvio?) na boca de cena, e camas em cena. Não será um pouco incongruente com texto? Não distrai em vez de centrar? A distracção resulta do facto de serem anómalas aos ambientes descritos e explicitados no texto. Será que o encenador não ouve o texto e o que dizem os personagens? Será que o triângulo usado pelo médico é maçónico? Alguém que me explique o significado maçónico desta ópera? Será pela iniciação e processo de descoberta que os personagens vão vivendo? Nesse caso sempre que existe uma obra teatral de valor temos um processo maçónico, porque a evolução dos personagens é sempre o motor fundamenal do processo dramático, estou farto de referências maçónicas gratuitas, a propósito de tudo e nada, em qualquer obra de Mozart.
Finalmente acho que os copos deviam conter mesmo líquido!
Felizmente Martone é um profissional competentíssimo e conhecedor do seu metier, porque consegue realizar a sua ideia de forma coerente até ao fim e dirigir um grupo de actores sempre muito jovem (excepto o citado Praticò), com melhores resultados num e noutro caso e com piores noutros, mas numa globalidade muito positiva.
Sobre a produção destaco que, apesar destas considerações estéticas, me pareceu absolutamente conseguida nos seus objectivos, apesar de discordar desta ou daquela ideia, apesar de pensar que o lado explícito foi desajustado da obra, o Così fan tutte no S. Carlos valeu a pena, a orquestra é medíocre, o coro é fracote, Renzetti poderia ter explorado mais as linhas complexas do texto mozarteano, poderia ter construído uma teia de som mais articulada e complexa, mas foi o melhor possível com o material de que dispõe. Creio que ter orientado todo o discurso musical para o refinamento, em vez de priviligear alguma segurança e algum pathos mais romântico, poderia levar à catástrofe. Preferiu jogar pelo seguro. Como se sabe o bom é inimigo do óptimo, e com a OSP e este coro o óptimo é impossível, neste caso o pragmatismo compensou conseguindo levar o barco até ao porto. As vozes foram no geral boas e com grande campo de evolução. A encenação foi altamente competente. A cenografia eficaz no contexto pobre das tais camas, mas com boas realizações como a dos telões deslizantes, os figurinos ao tempo foram bem realizados. Belíssimo e subtil o desenho de luzes.
Uma produção que acabou por dar prazer presenciar porque "como na cozinha, em Ópera o todo é mais do que a soma das partes", sob a orientação dos "cozinheiros" Martone e Renzettti o guisado acabou por ser saboroso!
A encenação de Mario Martone é professional, tem uma grande qualidade na direcção de actores, joga nos espelhos entre Dorabella e Fiordiligi e entre Ferrando e Guglielmo, espelho que está bem presente e explícito em cena, espelho que esconde e revela, reflectindo personagens e maestro, sala e público e translúcido revelando o que se passa por detrás. As trocas são no fundo um repor da terra nos eixos, representam ainda uma visão inteligente que resulta no facto de as irmãs e os jovens cavalheiros de facto, consciente ou inconscientemente, cobiçarem o outro.
Se assim não fosse eles não aceitavam no momento máximo da troca de casais o desafio do outro, bem como elas nunca aceitariam um oposto do seu suposto amado se não tivessem esse desejo de experimentar o outro. Nesse subtítulo de "Escola de Amantes" reside, no fundo, a ideia motriz desta encenação, que é claramente a sua vantagem e a sua desvantagem.
Os rapazes aparecem em cena apenas com um bigodinho pintado que nunca disfarçaria ao olhar do outro, neste caso outra, uma identidade bem conhecida, elas vêem tudo, têm todas as cartas na mão mas preferem ignorar, preferem o embuste mais do que óbvio pela sedução do jogo.
A encenação termina precisamente com os quatro amantes na cama, lado a lado, todos tapados por um lençol, reforçando a ideia de que o equívoco vai permanecer, agora que passou o tempo da Escola" os amantes são isso mesmo: amantes, indistintos, já não há espelhos aqui, o espelho desapareceu por detrás dos lençois, desaparecido o espelho revela-se a fusão, uma fusão dos amantes já iniciados...
Um dos lados francamente positivos desta encenação é não querer transformar a ópera de Mozart naquilo que ela não é, trata-se de uma farsa, faz pensar, sem sombra de dúvida, mas sobretudo faz rir, os elementos jocosos são muito bem sublinhados, a criada Despina é extraordinária e muito bem desenhada e orientada por Martone (e muito bem servida de actrizes), uma criada que sem par, este Alfonso não serve para isso, tem de seduzir o maestro, imagem idealizado do universo exterior, que contracena com Despina, teatro fora do teatro, teatro escondido mas presente, nada à mostra e tudo revelado, sem segredos, distanciamento e proximidade. As figuras dos jovens militares estão muito bem realizadas no seu capítulo hiperbólico mas sem atingir o exagero, as duas irmãs estão muito bem realizadas nas suas diferentes personalidades, e até fisicamente estão bem escolhidas. Aposta ainda numa figura desvalorizada de Alfonso, que aparece caracterizado de forma muito grosseira sendo pouco convincente como cavalheiro cínico, conhecedor do mundo e filósofo. Quem acreditaria que aquele Praticò é um D. João reformado? Quem acredita que o D. João é capaz de se reformar? É para mim o único senão da caracterização dos personagens.
Voltando ao plano global, toda a ideia de Martone é coerente, tem leitura psicanalíticas, é alicerçado por uma cenografia de acordo com a ideia. Ópera de câmara, câmara de leito, proximidade com o público, audição quase privada, pornografia para eleitos de uma corte corrompida pelos prazeres do tempo, José II no seu tempo (onde nada era explícito), nós hoje (onde tudo é explícito). Onde resulta menos bem, no meu entender, é no lado óbvio da coisa, não seria mais subtil deixar as acções pelos subentendidos, pelas ausências, pelos claro-escuros? Porquê este preto e branco? O sexo explícito nesta obra é demasiado grosseiro, num século XXI em que tudo tem de ser dito e não sobra espaço para a imaginação. É certo que o século XVIII, pelo menos nas classes elevadas, era bastante mais liberal e tolerante do que os tempos de hoje, por paradoxal que isto possa parecer. Vivemos um tempo de falsas moralidades, vivemos um tempo castrador, um tempo vingativo que devora ainda e sempre os seus filhos. A imaginação, a subtileza, não fazem parte dos nossos dias. Antes fazia-se com subtileza, hoje revela-se com alarde aquilo que já é impossível.
Martone é fruto do nosso tempo, tal como Mozart e Da Ponte o eram do seu. No meu entender a poesia original é mais profunda e bela do que a grosseria e a arrogância do "artista" de hoje, o óbvio escondido, no texto e na partitura, são puxados para primeiro plano, tudo aquilo que um público inteligente perceberia facilmente no tempo de Mozart é agora escarrapachado aos nossos olhos.
E depois aparecem sempre uns lados incongruentes que acabam por me deixar desconfiado relativamente à profundidade da encenação e à sensibilidade do encenador: o facto de na serenata aparecerem dois figurantes a fingir que tocam tambor e pandeireta é simplesmente ridículo, a música que se toca nada tem a ver com pandeireta e tambor, é música subtil, nocturna, diáfana.
Por outro lado as camas que servem para tudo, inclusivamente para mesas de banquete, estão em cena o tempo todo, acabam por dar uma dimensão estática que se torna monótona e incongruente com o texto, é-me desagradável ouvir que se vão sentar numa mesa e se sentam na cama, para encenação surreal ao menos que se invertessem os papeis: deitavam-se na mesa e sentavam-se na cama. Ser radical nuns pontos e convencional noutros é andar nas meias tintas, os figurinos são de época, estamos sempre dentro de casa, camas em cena, e ao mesmo tempo passeia-se no jardim, camas em cena, e aparecem umas pedras estranhíssimas (parece que são vesuvianas, será que só existem pedras no Vesúvio?) na boca de cena, e camas em cena. Não será um pouco incongruente com texto? Não distrai em vez de centrar? A distracção resulta do facto de serem anómalas aos ambientes descritos e explicitados no texto. Será que o encenador não ouve o texto e o que dizem os personagens? Será que o triângulo usado pelo médico é maçónico? Alguém que me explique o significado maçónico desta ópera? Será pela iniciação e processo de descoberta que os personagens vão vivendo? Nesse caso sempre que existe uma obra teatral de valor temos um processo maçónico, porque a evolução dos personagens é sempre o motor fundamenal do processo dramático, estou farto de referências maçónicas gratuitas, a propósito de tudo e nada, em qualquer obra de Mozart.
Finalmente acho que os copos deviam conter mesmo líquido!
Felizmente Martone é um profissional competentíssimo e conhecedor do seu metier, porque consegue realizar a sua ideia de forma coerente até ao fim e dirigir um grupo de actores sempre muito jovem (excepto o citado Praticò), com melhores resultados num e noutro caso e com piores noutros, mas numa globalidade muito positiva.
Sobre a produção destaco que, apesar destas considerações estéticas, me pareceu absolutamente conseguida nos seus objectivos, apesar de discordar desta ou daquela ideia, apesar de pensar que o lado explícito foi desajustado da obra, o Così fan tutte no S. Carlos valeu a pena, a orquestra é medíocre, o coro é fracote, Renzetti poderia ter explorado mais as linhas complexas do texto mozarteano, poderia ter construído uma teia de som mais articulada e complexa, mas foi o melhor possível com o material de que dispõe. Creio que ter orientado todo o discurso musical para o refinamento, em vez de priviligear alguma segurança e algum pathos mais romântico, poderia levar à catástrofe. Preferiu jogar pelo seguro. Como se sabe o bom é inimigo do óptimo, e com a OSP e este coro o óptimo é impossível, neste caso o pragmatismo compensou conseguindo levar o barco até ao porto. As vozes foram no geral boas e com grande campo de evolução. A encenação foi altamente competente. A cenografia eficaz no contexto pobre das tais camas, mas com boas realizações como a dos telões deslizantes, os figurinos ao tempo foram bem realizados. Belíssimo e subtil o desenho de luzes.
Uma produção que acabou por dar prazer presenciar porque "como na cozinha, em Ópera o todo é mais do que a soma das partes", sob a orientação dos "cozinheiros" Martone e Renzettti o guisado acabou por ser saboroso!
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