<$BlogRSDUrl$>

10.12.06

Così fan tutte no S. Carlos 

Agora que assisti a duas récitas, primeiro e segundo elenco posso enunciar mais dados críticos sobre os aspectos musicais desta produção.

Donato Renzetti: Profissional, atento à partitura, sempre tentanto manter a orquestra segura. Não evitou desacertos graves entre cantores e orquestra em ambas as récitas a que assisti. O lado mozarteano, a idiomática, as articulações não atingiram o nível de refinamento e de subtileza necessários a uma partitura destas. Manteve alguma vivacidade (pouca) ao nível dos tempos e perdeu-a ainda no nível das articulações, muito mastigadas e com dificuldades. Se não me enganei na cronometragem a ópera demorou mais de 3h10m na estreia, o que ultrapassa em muito o que se tem feito pelo mundo fora. A coordenação dos elementos em palco foi esforçada mas não atingiu o mínimo exigível, o coro esteve sempre desacertado entre as diversas vozes que o compõem e os restantes elementos musicais. Finalmente os cantores estiveram muitas vezes desfazados da orquestra. Nota positiva porque a coisa lá se foi conseguindo ouvir com algum agrado, mas pouco passa do dez.

Orquestra: As trompas, massacradas por toda a crítica, estiveram realmente em plano muito fraco na estreia, mostrando-se medíocres no dia do segundo elenco. Deve-se dizer que esta orquestra é fraca e enquanto o Estado português pagar o que paga (e não exigir um estatuto de quase exclusividade) terá sempre músicos e instrumentos inferiores aos das melhores orquestras internacionais. Se somarmos a isto falta de disciplina de trabalho, acabamos com uma orquestra muito irregular, supera-se umas vezes decai quase sempre na vez seguinte. Os maestros que aqui passam conseguem nuns casos levar a água ao moinho, noutros a coisa revela-se na sua amargura, não se pode exigir mais, é assim... Pedir a esta orquestra uma prestação digna de mérito absoluto é exigir demais, se nos colocarmos numa análise de mérito relativo então a situação é mesmo vergonhosa para um país que já foi chamado de “mar da música” no século XVI. Factos: falou-se dos sopros, aspectos mais evidentes de uma prestação débil, as trompas comprometeram muitas passagens com erros de palmatória mas as cordas (sobretudo nas partes agudas) exibiram sempre uma articulação inapropriada, arrastada, o som resultou abafado, pelo número reduzido de instrumentistas e pela falta de brilho da interpretação. Se no dia da estreia parecia que a coisa tenderia a subir com mais récitas, no dia do segundo elenco a música resultou muito pior. No dia do segundo elenco reapareceu desafinação nos primeiros violinos, coisa absolutamente inadmissível em qualquer orquestra, mesmo fraca como esta, entradas fora de tempo e saídas também fora de tempo e muitas notas erradas que se destacam pela delicadeza da construção mozarteana. O tecido instrumental foi confuso sem um nexo condutor, desacertos e descoordenações foram gritantes. E se os sopros comprometeram às vezes, os violinos comprometeram sempre. Eu esperava que depois de uma estreia algo fracota a orquestra se superasse, é falso e enganei-me, decaiu em direcção ao lado puramente rotineiro e de cumprir calendário. A orquestra não tem condições de trabalho mas apesar disso poderia ter brio, e não falo do trabalho técnico do maestro mas sim de aspectos absolutamente essenciais como o não dar notas erradas e ser capaz de afinar...

A aparição do coro foi desastrosa na primeira récita. O coro está de novo a decair, os cantores berram tentando sobressair do conjunto, terminam frases depois dos outros porque ficam a sustentar notas não se sabe bem para quê e não conseguem entrar todos ao mesmo tempo e no ponto exacto. Notou-se também desafinação, menor do que em tempos passados. Acabo por não saber se foi pior na estreia ou no dia do segundo elenco, mas é tão fraco que não vale a pena perder muito tempo. Mozart não merecia este tratamento e felizmente o coro não está muito tempo a arruinar o conjunto nesta produção.

Cantores: Já afirmei que não há cantores maus nesta produção, na estreia é verdade, no segundo elenco já não estou tão certo, o segundo elenco é, no meu entender, bastante inferior ao primeiro, vejamos:

Irina Lungu Fiordiligi 1º Elenco – Irina Lungu é muito jovem, tem um longuíssimo caminho a percorrer, saiu do conservatório em 2004, tem uma voz natural de soprano lírico, eu diria que apropriadíssimo à ópera verdiana. Aperfeiçoa-se em Itália e o seu italiano é já muito bom, fez uma extraordinária Iolanta de Tchaikovsky com Fedoseyev a dirigir. Mas ou Donato Renzetti não é Fedoseyev ou Irina Lungu não é uma cantora mozarteana em estado natural, o seu papel é muito extenso no tempo e na tessitura, Irina teve dificuldades nos agudos emitidos de forma apitada em “como scoglio” e no tremendo conjunto “Per pietà...” (onde as trompas exibiram o seu lado mais trapalhão) foram os graves que não tiveram a necessária profundidade, o “tradimento” bem no fundo do registo grave do recitativo não teve o poder de uma grande mozarteana, e não comparo com os nomes que já imaginaram porque não é justo comparar uma jovem de 26 anos com cantoras que fizeram uma carreira longuíssima e trabalharam Mozart ao longo de dezenas de anos. Irina Lungu onde lhe falta estilo mozarteano compensa com uma boa voz e muito talento, tenta interpretar a partitura com inteligência, apiana, faz efeitos de cor, é afinada e não recorre a portamentos para a recolocar no sítio porque não precisa, o vibrato não é exagerado, tem legato mesmo nos saltos para os agudos, mas tem ainda um longo caminho a percorrer em Mozart. Como actriz também poderia ter sido mais expressiva.
E se a ligeireza e a facilidade de articulação serão adquiridas com trabalho, o peso dos graves talvez venha a aparecer com o tempo. No entanto Irina Lungu será sempre uma muito melhor verdiana, e estará sempre melhor nos Bellini e Donizetti do que em Mozart. Em Tchaikovsky já provou que, apesar da idade, os seus estudos e a sua língua lhe dão um talento natural tão grande que não há melhor, mas escutámos Mozart...
Como actriz foi inexpressiva.

Ekaterina Godovanets (2º Elenco) O facto de ter uma entrada desastrosa não retira muito mérito ao seu trabalho, é muito jovem, creio que 27 anos, tem uma voz menos rica do que Lungu, a emissão dos agudos foi sempre um problema muito complexo e delicado, porque creio que estava muito nervosa com esta estreia no papel, nunca conseguiu fazer legato para notas acima do sol, deixando sempre um buraco, um intervalo de tempo necessário para atacar a nota superior com mais alguma segurança, o que é pouco convincente e vai arruinando uma interpretação coerente, destrói o fraseado e qualquer possibilidade de articulação. Por outro lado tem um timbre pobre em harmónicos, e em cenas de conjunto desafinou clamorosamente. Penso que terá potencialidades, demonstradas sobretudo no segundo acto onde esteve francamente melhor, mas ainda assim ainda no plano escolar. Gostei do seu sentido dramático em termos teatrais e em termos interpretativos, mas sempre no segundo acto. Os duetos, e tercetos com Dorabella e Alfonso correram mal, sobretudo por culpa dos seus comparsas (onde se destaca pela negativa Mansilla). Será melhor aguardar por novas prestações desta cantora pois creio que os nervos podem ter contribuído para uma prestação relativamente fraca.

Laura Polverelli, Dorabella (1º Elenco) Este mezzo esteve bem, mostrou categoria e maturidade no seu papel, foi coerente na interpretação, domina bem a sua parte e conseguiu estar quase sempre bem nas cenas de conjunto. De voz encorpada conseguiu mostrar subtileza e representar a mais estouvada Dorabella com um grande domínio teatral e musical. Faltou-lhe apenas um pouco daquela facilidade que torna a interpretação superlativa e um teve um vibrato um pouco excessivo, mas cumpriu com qualidade e estilo o papel a que estava confiada. Como actriz também foi muito bem. No meu entender foi a cantora (no terceto feminino) em melhor plano global no primeiro elenco.

Angelica Mansilla, (2º Elenco) Não há muito a dizer, foi um desastre na dicção e no domínio do italiano, e vai ter de trabalhar muito para superar este problema tremendo.
Musicalmente começou de forma muito má, nervosa, fora de tom, com um timbre muito anasalado, descoordenada dos outros intérpretes, o terceto do final do primeiro acto saiu totalmente arruinado por sua falta de colocação, por desafinação e por falta de domínio da voz. No segundo acto conseguiu controlar melhor a voz, mas no balanço final diria que pode ter futuro se conseguir domar melhor a voz, pois o timbre pode até ter aspectos interessantes, um metal inabitual, que trabalhado a pode levar longe. Tem de apurar mais a colocação, o vibrato tem de ser menos tenso, tem de conseguir afinar melhor, tem de trabalhar melhor os aspectos estilisticos e finalmente tem de conseguir dominar o horrível sotaque espanhol madrileno que ostenta ao tentar cantar em italiano.

Silvia Colombini, Despina (1º Elenco) Ao contrário do que se tem dito por aí achei muita graça aos timbres inventados por Colombini para caracterizar o Notário e o Médico, mostrou sentido teatral e a ópera, apesar de ser posta no pedestal da genialidade de obra prima, de melhor ópera de Mozart, e eu sei que coisas mais, não passa de uma farsa, uma farsa para fazer rir, para divertir e para fazer pensar um pouco. Da Ponte é um génio, concordo, mas no seu género, ter leituras demasiado profundas e sacralizar a obra como se fosse a oitava maravilha do mundo leva ao exagero. Colombini correspondeu ao que se esperava dela, com graça, com movimentação cénica de grande qualidade. A voz não será a melhor voz do mundo, mas a cantora sabe o que faz e como faz, e ninguém lhe pede para ter a melhor voz do mundo nem esta é necessária para este papel. Devo dizer que foi das personagens mais consistentes e de acordo com que se espera, ser um motor da acção pela presença teatral, cantou bem, dentro da voz pequena que tem, sem um grande corpo vocal, fez divertir o público e esteve no espírito e estilo da obra.

Dora Rodrigues, (2º Elenco). É uma pena ver uma cantora como Dora Rodrigues confinada a fazer múltiplos papéis menores em produções maiores e ter destaque apenas na Figueira da Foz! Penso que esteve desaproveitada no papel, tem uma voz demasiado rica para a Despina, que caracterizou muito bem e com graça, mas notou-se a falta de rodagem de palco que tão bem lhe faria. Esteve musicalmente muito correcta e não distorceu o timbre para o médico, quando o fez para o notário esteve francamente divertida. Um pouco de vibrato excessivo e um pouco de “puxar” a voz em excesso para este papel foram para mim os defeitos menores desta boa cantora portuguesa.

Saimir Pirgu Ferrando (1º Elenco) Um belíssimo e incrivelmente jovem tenor, 24 anos segundo creio. Uma voz natural excelente, redonda, brilhante, bem timbrada. Algum exagero vocal onde poderia ser mais contido, alguma verdura em passagens mais refinadas, mas nada que estrague uma intervenção vocal e musical notáveis para um jovem desta idade. Um verdadeiro cavaleiro albanês, o albanês Pirgu vai ser um caso sério do canto mundial se prosseguir o aperfeiçoamento e os estudos de forma séria e ponderada sem excessos. O seu Mozart é cantado de forma natural, falta-lhe ainda o recorte que vem com o tempo, mas encantou em todas as árias e sobressaiu no sexteto final nas passagens de bravura com que Mozart o brindou, esteve um pouco menos certo nos recitativos onde a falta de experiência a pouco e pouco vai ser suprida por uma grande confiança que se lhe nota. Uma descoberta a seguir de forma muito interessada.

Mário João Alves (2º Elenco) – Apesar de algumas entradas fora de tom corrigidas prontamente com portamentos mais ou menos disfarçados (fruto de pouca rodagem de palco), Mário João Alves tem um bom sentido musical e teatral, a voz é bonita, redonda e muito apropriada para Mozart. Não tem um poder muito elevado que compensa com cor, com articulação e elegância, não lhe falta um legato que suporta bem alguns saltos (para o registo agudo com mudança de registo) mais ingratos. Gostei muito deste cantor português num papel em que ambos os elencos trouxeram cantores à altura do desafio. Mário João Alves está bem em Mozart, tem facilidade em cantar com fluidez e está bem nos recitativos. Falta-lhe apenas mais segurança em cenas de conjunto, onde poderia ter sido mais preciso. Foi no meu entender muito equilibrado e francamente bom como Ferrando.

Simone Alberghini Guglielmo (1º Elenco) Um barítono muito jovem que cumpriu com poder e convicção o papel de Guglielmo, divertido em palco, vocalmente é algo pesado para Mozart, cantando de forma sacudida (há quem goste o que não é o meu caso) e com um legato pouco elegante. Com características vocais intrínsecas deste tipo o cantor terá de se adaptar para cantar um papel relativamente ágil como o de Ferrando. Alberghini conseguiu manter o papel vivo e dentro do seu quadro vocal conseguiu ter uma leitura muito consistente e apropriada.

Luís Rodrigues (2º Elenco) – O barítono português não é no meu entender ideal para o papel de Guglielmo, sendo um bom actor, muito expressivo e divertido, a sua voz é algo pesada e canta também de forma algo sacudida, o que retira alguma elegância à sua prestação, digamos que o seu legato podia ser mais aveludado. Rodrigues chega a desfear o seu timbre quando puxa em demasia pela voz. No entanto a falta de oportunidades obriga os cantores portugueses a aceitarem papéis ideais e menos ideais, um barítono polivalente nunca será muito conseguido em todos os papéis. Neste caso Rodrigues defendeu-se muito bem pelo lado teatral e acabou por cantar de forma muito conseguida nas árias e cenas de conjunto.

Bruno Praticò Don Alfonso (Todos os elencos) O mais rodado e batido cantor desta produção, foi em tempos um barítono de grande recorte. Hoje mantém uma dicção exemplar, nota-se que domina o legato e o staccato com grande maestria, tem estilo vocal, mas algo está mal, será laringite, será tabaco em excesso, será uma carreira demasiado longa a precisar de repouso, mas a profundidade não está lá, continua com bons recitativos mas a gravidade vocal de outrora desapareceu, ouvem-se apenas os harmónicosa mais agudos o que chega a ser algo estranho, parece que falta o fundamental à sua voz, a voz está seca. Como actor está ainda em forma, mas a encenação fez ressaltar um lado demasiado grosseiro no personagem a que não será alheia a sua figura muito pesada, o que está em total desacordo com o texto de Da Ponte, Alfonso tem de ser um filósofo, um céptico, um homem das luzes, Praticò compõe um grosseirão.

A encenação será tratada noutro post.

Musicalmente a produção é muito razoável no primeiro elenco e menos razoável no segundo elenco. Isto tem a ver com vozes menos consistentes e de uma direcção musical mais frouxa que foi pior na segunda récita (segundo elenco) observada.


Arquivos

This page is powered by Blogger. Isn't yours?