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31.10.08

Banha da cobra 

Nunca esperei ver um primeiro ministro do meu país, por muito desvalorizada que esteja a função e a dignidade do Estado, a tentar vender banha da cobra numa cimeira de alto nível.
Simplesmente deplorável...

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23.10.08

Siegfried no S. Carlos III 

A Sopa de Notas

Em jeito de balanço e após presença na última récita do Siegfried faço uma reflexão sobre a música deste Siegfried dirigido por Marko Letonja. Os meus comentários dizem respeito a esta última récita, bem superior à do dia de estreia em termos de "catástrofes" orquestrais e dos cantores.
Aproveito para me lembrar deste maestro, lembro a destruição arrasadora da partitura da Medeia de Cherubini, lembro alguns concertos menos maus com a Orquestra Sinfónica Portuguesa. Lembro ainda a Valquíria do último ano. Nas lembranças operáticas de Letonja recordo sempre um maestro que atinge um certo ponto e depois desiste de fazer melhor, uma maestro que dirige sempre no "mais ou menos" e que nunca atingiu, em todas interpretações a que assisti, qualquer nível de refinamento ou de grandes qualidades expressivas. No caso de Cherubini a interpretação foi catastrófica, no caso da Valquíria a interpretação foi mais ou menos indiferente.

Mas Wagner, uma observação que se pode estender a outros compositores mas de particular acuidade para o alemão, não se pode ficar pelo "mais ou menos". Ser "wagneriano" tem que se lhe diga. É necessário o estudo, é necessária a paixão, a "obra de arte total" não está ao alcance do primeiro que compra a "edição da Dover do Siegfried", como Letonja revelou ter comprado, e fez umas semanas de ensaios com a OSP. Por outro lado a visão de "encenador" da obra, deixa o maestro claramente na sombra, Letonja é apenas mais um instrumento ao serviço de Graham Vick e das suas ideias.

Não é alheio a isto o facto de tocar com menos duas harpas e catorze cordas do que o escrito por Wagner e realizado desde então em Bayreuth, ou pela Filarmónica de Berlim ou nos Proms de Londres ou em Mannheim ou Valência. Enfim, por todo o lado: dos Estados Unidos até ao Extremo Oriente... menos em Lisboa. Como se deu a volta ao Teatro de S. Carlos para se acabar com um fosso sem espaço? É algo que continua incompreensível e que, depois disso, haja um bom "maestro" capaz de dirigir nessas circunstâncias torna-se insondável. É evidente que depois de se escutar o trabalho de Letonja, da OSP e dos cantores, o insondável torna-se transparente.

A direcção de Letonja poderia ser até uma direcção "edição Dover", uma edição baratinha mas com um certo aprumo e digna mas acabámos a escutar uma sopa de notas sem ênfase, sem arquitectura nem rumo, onde os motivos condutores foram apresentados sem alma nem glória, embebidos no visco sonoro informe, sem realce, sem verve, sem cor, onde as indicações dinâmicas e as articulações foram integralmente desrespeitadas, onde passagens inteiras eram tocadas descoordenadamente por violinos e violas, eles primeiro... elas atrás. Nesta última récita os violoncelos primaram por um som horrível e desafinados (v.g. murmúrios da floresta) e onde as violas corresponderam com notas erradas, passagens destruídas, incapacidade de articulação do que está escrito. Nas passagens mais complexas foram passando staccati a legati alegremente. Os violinos desafinaram do princípio ao fim, e foram transformando as articulações escritas, geralmente cheias de cor e detalhe onde primam contrastes dinâmicas em passagens difíceis, sforzandi aqui e ali e acentuações por todo o lado em cima de escalas com staccati pelo meio, numa massa caótica com a articulação feita da forma para conseguir "dar" as notas e o menos possível para tocar o que está escrito de forma confiante e afirmativa. Foi notória uma passagem onde vem escrito "sempre staccato" pelo punho do Wagner, e onde a "edição Dover" do maestro não esquece a indicação, que foi tocada "sempre legato" e feita sem uma única acentuação. Entretanto os metais parecem só conhecer duas indicações: meio forte e fortíssimo e com a resalva da tuba lá conseguir ainda reunir forças para um "ainda mais forte" como vem escrito, louvada seja, apesar de se debater com o problema do fôlego que leva o instrumentista a interromper notas sustentadas para respirar e voltar ao assunto, que é como quem diz: à mesma nota mas agora de peito mais aliviado. Tem a desculpa de uma interpretação arrastada, lentíssima, que torna qualquer tubista num homem deprimido e sem fôlego... Uma interpretação que parece desconhecer as indicações de Porges, Levi, Mottl ou Kniese e do próprio Wagner que comentou que Richter (na estreia em Bayreuth) andou devagar demais e a arrastar: "se os senhores não fossem tão aborrecidos o Ouro estava acabado em duas horas!" Não seguir ou não estudar, ou ignorar ou querer ignorar, o que se escreveu, não se conhecer a nova edição da obra e andar a comprar a edição de vinte euros não quer dizer que não se toque uma "edição Dover" da obra: se fosse tocada como vem escrita na referida edição já não era nada mau... Mas a Letonja e ao S. Carlos exige-se a Neue Richard-Wagner-Gesamtausgabe.

Assim tivemos duzentos e setenta minutos de Siegfried na estreia e duzentos e cinquenta e cinco minutos na última récita! Evolução brilhante, que retira sob a mesma direcção cerca de quinze minutos ao empadão final. Se na última récita o Siegfried foi arrastado imagine-se agora a estreia... Recordo que Amsterdão fez o mesmo Siegfried em 2004 em duzentos e vinte e três minutos. O maestro Hartmut Haenchen seguiu a nova edição Richard Wagner e estudou a fundo as indicações recolhidas da boca de Wagner por Porges. Imagine-se a OSP a fazer o Siegfried em menos 47 minutos do que na estreia!!! Se esta produção foi o caos musical com menos 47 minutos o que seria?...

Uma palavra para a trompa, sempre em elevado plano. Já a tuba, como apontei, deixou-me algo insatisfeito. Noto que ambos os instrumentos são bem importantes para o fluxo discursivo da obra. O corne inglês a imitar a cana rachada de Siegfried saiu perfeito.

As madeiras não tiveram a qualidade de som exigível e no seu conjunto padeceram do mesmo mal do resto da orquestra: ausência de cor e de nuance. Falta de trabalho do detalhe. Falta de ênfase e cuidado na articulação. Som surdo devido à posição no fosso. Escaparam alguns solos apesar do clarinete baixo ter cultivado um som pesado e forte, provavelmente para se poder ouvir, em detrimento de um maior lirismo. As madeiras saíram sempre em défice sonoro face ao resto da orquestra, um desequilíbrio manifesto muito por falta do maestro.

O prelúdio do terceiro acto foi um dos piores momentos da direcção de Letonja, os metais com um peso brutal e sem a tal nuance que se impõe nos sforzandi e nas articulações abafaram todo o resto da orquestra. As cordas em número insuficiente e de baixa qualidade ou não se ouviam ou, quando apareciam, escutava-se uma espécie de miado longínquo das notas mais agudas dos violinos. As madeiras, neste trecho, pareciam que estavam lá ao longe dentro de um poço sem fundo. Tudo mesclado numa espécie de caldo informe onde os temas esbracejavam para se poderem escutar e sobressair no meio do viscoso mar de crude que invadiu o teatro no segundo acto e o fosso durante toda a récita, acabámos a escutar repetidamente o tema da lança servido pelos pulmões pujantes da banda metálica.

Outros momentos paradigmáticos desta informe massa sonora foram os murmúrios da floresta e o inenarrável caos sonoro pós quebra da lança de Wotan em que o fogo mágico de Loge soou atabalhoado, com notas erradas nos violinos, numa passagem exigente que acabou por ficar muitíssimo aquém do exigível para uma orquestra profissional e sob a batuta de uma maestro caro e competente.

Entretanto os cantores lá se esforçavam no espaço da arena do S.Carlos, o Siegfried de Stefan Vinke é um Siegfried sem refinamento, que sabe gritar muito cantando muito pouco, sem temperamento lírico e a cantar nas oitavas abaixo no terceiro acto: acima do sol, em notas sustentadas, podia-se contar quase sempre com a oitava abaixo porque a voz já não dava para mais e o cantor estava a ficar rouco. Além disso Vinke arrasta para além do tempo possível a gritaria de cada nota sustentada. Além disso, e apesar do alemão ser a sua língua, canta com voz de "sopinha de massa", fazendo lembrar o lamentável Wotrich...

Samuel Youn no Viandante apesar de ter belos agudos e uma voz de barítono com presença, cantou de forma muito irregular, de forma algo soluçante, sem nobreza da grande linha vocal. Faltou-lhe gravidade e profundidade nos graves. Tem o defeito de entrar sempre, ou quase sempre, atrasado o que além de ser sistemático revela problemas de musicalidade que devem ser resolvidos com mais treino e trabalho. A sua noção do tempo de entrada e do ritmo é perfeitamente aleatória acabando muitas vezes a arrastar as notas. Youn tem um belo futuro se controlar estes erros.

O Mime de Colin Judson foi muito conseguido, no meu entender, com uma bela presença de actor e uma belíssima colocação vocal num papel incrivelmente ingrato.
O Fafner de Dieter Schweikart foi conseguido sem causar grande impressão, é pouco profundo como baixo, mas é o possível.
A Erda de Gabirele May deve-se ter ressentido da encenação, o facto de aparecer senil e provavelmente com uma doença incapacitante, fez com que a voz aparecesse muito feia, destimbrada mesmo. May é, neste momento, tudo menos contralto.
Susan Bullock foi razoável mas distante da forma como abordou a Valquíria: vibrato excessivo, voz com poder mas com falta de convicção. Estava à espera de melhor mas, mesmo assim, foi muito razoável, a voz ainda tem o chicote da Valquíria mas falta-lhe a frescura necessária para a jovem heroína.
O pássaro da floresta de Chelsey Chill foi conseguido, creio que a canadiana encontrou aqui o papel da sua vida, apropriado ao seu registo estreito, voz metálica e nasalada, com agudos pobres e graves inexistentes. A tessitura estreita e uniforme deste pássaro da floresta é o ideal para a cantora. Entretanto a voz nos saltos para cima, notório no lá agudo, desliza de forma muito pouco natural, fazendo um brutal sforzando em stress ao atacar o som mais agudo atacado em fortíssimo agressivo sem qualidade, quando na partitura não existe qualquer indicação dinâmica e o canto deva fluir natural e uniforme. É o papel da vida deste pássaro mas, mesmo assim, bem longe do ideal.

Wagner sem música não é obra de arte total, nem sequer é obra de arte. Dar ao encenador o papel total é reduzir a dimensão da obra. O meu Wagner tem música, não sei como será o Wagner do leitor, ou como o leitor quer o seu Wagner. Os críticos da nossa praça parecem esquecer este lado e preferir o Wagner do encenador. Não percebo esta abordagem, creio que essa visão é provinciana e coxa. É uma visão sem referentes e, sobretudo, sem grande amor pela obra deslumbrante do compositor alemão.
Esta produção é um risco interessante como conceito, no entanto creio ser um falhanço enquanto obra de arte total e um falhanço estrondoso no capítulo musical. O meu balanço é francamente negativo e as culpas vão direitinhas para um maestro pouco wagneriano e complacente, para uma orquestra sem grande qualidade, sobretudo nas cordas, para uma encenação que despreza a música e uma cenografia que rouba espaço a uma verdadeira orquestra wagneriana. Veremos como corre o Crepúsculo dos Deuses, onde o coro entra de forma fundamental, mas a 75% desta produção o balanço é desolador, sobra a revolução no teatro e pouco mais.

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3.10.08

Siegfried no S. Carlos II 

Uma brevíssima nota sobre VIck e esta encenação:
Creio que a encenação de Vick, não entende a modernidade do Ring de Wagner e reduz todo o mito sobre o homem moderno a uma encenação "doméstico-contemporânea", onde apenas existe uma leitura directa, primária, óbvia, do fluxo discursivo wagneriano: os capitalistas estão em decadência, o socialismo triunfará, o povo participa na coisa e vê a acção decorrer dentro de si mesmo, ali à frente, chegando os artistas a pisar os calos do próprio povo que está calmamente no seu camarote a tentar ver e escutar uma obra de teatro, não através de uma distância mágica que o transporta a um mundo de pensamento e emoção pura, como Wagner queria, mas percebendo que aquilo que ali está é apenas teatro, percebendo a mecânica daquilo, sem nada escondido.
Vários equívocos, o "povo" representado pelo "público" são uns senhores e senhoras que nunca serão o público que Wagner queria. Que se estão aliás nas tintas para a vitória do socialismo e a queda do capitalismo no mundo de hoje.
Esta leitura de Wagner é primária porque escamoteia a própria evolução do artista: Wagner saiu das barricadas de Dresden em 1848, Wagner antes de acabar o Siegfried escreve os Mestres e antes tinha escrito o Tristão, passam-se mais de vinte anos, Wagner não é o socialista em choque que imaginou o programa do Ring. Wagner não leu Brecht nem teve oportunidade de assistir às suas peças de teatro do pós-guerra, Wagner não viveu em Berlin Leste. Realizar Wagner no tempo de hoje com ideias de hoje é perfeitamente possível, ver por exemplo Braunschweig em Aix e Salzburg, obra em progresso de uma força e de uma beleza plástica incríveis, lendo até ao âmago e reinterpertando Wagner à luz do desencanto do homem moderno. O problema de Vick é que, ao tentar, subverter de forma alarve o texto de Wagner está, de facto, a reduzir a dimensão da obra a apenas uma faceta, a da parábola anti-capitalista vista no contexto de um drama doméstico, afastando-se do teatro conceptual que poderia levar a encenação a uma verdadeira subversão, a subversão da transcendência.
O conflito pai-filho domina esta encenação o que está certo no meu entender, a decadência de Wotan, por outo lado, é grotesca. Vick não percebe que esta putativa decadência é apenas aparente, esse é o seu erro mais grosseiro, Wotan perde poder mas ganha uma compreensão infinita, uma consciência tão forte que se torna insustentável e que só tem uma saída: o nirvana.
Não perceber isto é ser ultra conservador, é ser reaccionário, é ser redutor e incompetente. Por outro lado existe um desprezo total pela música sobrevalorizando o teatro. O que com os meios do TNSC era um risco também ele óbvio uma vez que a orquestra é incapaz da qualidade e subtileza necessária a este Siegfried e os cantores são de muito baixa qualidade (em média) e as condições acústicas são más, mas esse risco poderia ter sido minorado e foi engrandecido pelo encenador. Tudo demonstra mais uma vez a mais profunda ignorância ou o mais profundo desprezo, o que me parece mais plausível, pela obra de arte total de Wagner. A arrogância ignorante ou pedante do encenador sobrepõe-se ao génio de Wagner. Prefiro o segundo. Não me interessa o Siegfreid de Vick, interessa-me o Siegfried de Wagner.


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2.10.08

Siegfried no S. Carlos I 

Wotan não é um bêbado



Siegfried de Richard Wagner. Teatro Nacional de S. Carlos, Lisboa.

30 de Setembro de 2008, 18h30.



Segunda jornada de: Der Ring des Nibelungen.

Poema de Richard Wagner. Estreia a 1876, Bayreuth.



Direcção musical Marko Letonja.

Encenação Graham Vick.

Cenografia e figurinos Timothy O'Brien.

Desenho de Luz Giuseppe Di Iorio.



Orquestra Sinfónica Portuguesa

Nova produção





Assisti à estreia de Siegfried no S. Carlos na passada terça feira, dia 30 de Setembro. Começo por fazer notar que a experiência de Vick como encenador de Siegfried é interessante. Do ponto de vista conceptual "virar o teatro ao contrário" dá ao encenador infinitas possibilidades.

Começo por abordar o personagem central da obra: Wotan, o centro, o pilar de toda a estrutura do Ring, a imagem do W, Wotan, Wanderer, Wagner. O W que serve de bandeira em Bayreuth hasteada enquanto o festival decorre, o W a que Wagner recorreu para domesticar o nome de Odin à sua aliteração, forma poética que cultivou à exaustão, e que foi o motor rítmico da composição a partir do poema.

Vick vê a obra quase como se tratasse de um drama doméstico, Wotan é visto como um chefe de família decadente, não é nunca um deus poderoso, faz negócios e engendra teias de esquemas em Rheingold, aparece na Walküre como um burguês sem poder com vulgares amantes e de roupão jogando bilhar em casa e, finalmente, como um bêbedo sem abrigo neste Siegfried.

É na essência no tratamento do personagem Wotan que Vick mais se revela como encenador. Esquecendo o folclore do palco ao centro do teatro como se tratasse de uma arena, a encenação vale muito mais pelo tratamento dos personagens, pela leitura em concreto da obra. É na leitura em concreto da obra e na sua passagem a teatro que Vick falha estrondosamente. Em Wotan, Wagner coloca o poder, a sabedoria, a potência, a sua lança tem geralmente uma acção simbólica e apenas é utilizada como instrumento de poder quando parte a espada de Siegmund no final do segundo acto da Walküre. Gradualmente este poder dissipa-se, não por acção dos elementos estranhos mas pela própria acção de Wotan que se enreda numa teia de compromissos inextricáveis que o atam a ele mesmo. Pela compreensão de que já não faz falta ao mundo.
Wotan concebe de Erda entre Rheingold e a Walküre, engendra Brünnhilde dessa Terra Primordial, sábia e eterna. A mesma Terra que é violada, a mesma Natureza que Wotan violou ao cortar a lança do Freixo do Mundo. Mais do que os compromissos é o destino de Wotan a perda de poder, ele tudo sabe mas a Fonte da Sabedoria secou, o Freixo secou, a lança vai perdendo força. Wotan apercebe-se e quer o Crepúsculos dos Deuses, ele afirma que o Mundo é das novas gerações, puras, sem malícia, sem culpa, sem tratados. Ele afirma-o neste Siegfried. Wotan realiza o supremo ideal de Wagner: a renúncia, a mesma renúncia que Wagner nunca realizou mas que amava em Schopenhauer.

Wagner passa do socialista em 1848, quando idealiza a obra, a pessimista em finais de sessenta quando retoma o Siegfried. É evidente que a ideia simples do início, uma parábola sobre o capitalismo destruído não pela força das armas em revolta armada mas pela arte e pela ideia, deixou de ter sentido para Wagner, que escreve após a epifania de S.: "O Ring continha em si a filosofia que vim a descobrir em Shopenhauer". Não só é isso evidente como a escrita musical de Siegfried foi, toda ela, realizada depois da revelação. O que antes no poema era semente torna-se com a composição da música filosofia pura, é com a música que se percebe a intenção mais íntima de Wagner, nos temas do crepúsculo, da lança, da falsa segurança do Walhalla, da angústia de Wotan, nos temas da Natureza e, sobretudo, na forma como são dispostos, os corais de metais que sublinham e suportam as últimas linhas de Wotan são um exemplo notável do amor que Wagner colocou neste personagem. A linha vocal de Wotan é sempre de uma nobreza sem par ao longo de todo o Ring, e neste Siegfried o personagem é tratado com um carinho e cuidado musical verdadeiramente reveladores da identificação que W tinha com W. Ouvindo o Siegfried, mais do que vendo, percebe-se o amor com que o Wagner maduro, com mais de cinquenta anos e depois de abandonar Siegfried por mais de uma década, retoma o tratamento de Wotan, agora o mais nobre senhor de toda a Tetralogia, deixou de ser o Deus poderoso e sonhador que olha para o Anel em Rheingold, deixa de ser o Deus em Queda livre que abandona o seu filho amado à morte por causa dos seus esquemas, o deus que clama desesperado "É o Fim" o eixo central da Walküre. Wotan no terceiro acto de Siegfried é mais do que um deus, é um homem sábio, o mundo pesa-lhe nos ombros, ele que tudo sabe não quer mais o poder, o poder afinal é inútil, basta-lhe saber, basta-lhe ser o senhor dos corvos.

Mas Wotan ainda é luz, é o Alberich Luz que se revela a Mime na cena das perguntas, é o senhor do cavalo de luz que Alberich entrevê por cima das árvores na floresta onde dorme o Gigante Fafner vestido de Serpente Dragão. Wotan renuncia mas ainda monta o cavalo de luz, ainda tem a lança na mão, ainda é o senhor dos corvos, os mesmos corvos que estão pintados por cima da sua imagem na casa de Wagner em Bayreuth. Pintura emblemática essa, Wagner não escolheu para encimar a porta da sua casa um retrato de Wotan deus, escolheu o retrato de Wotan como o viandante de Siegfried, rodeado pelos corvos que o hão-de servir até ao final do Crepúsculo dois Deuses, os corvos olhos de Wotan.

É pois neste personagem que vai perdendo poder mas vai alcançando a suprema sabedoria e o supremo bem da renúncia, que Wagner também admirava no budismo, na retirada de Wotan para um mundo inacessível aos mortais que ainda não atingiram o Nirvana, que Wagner atribui o papel central do Ring. Wotan perde poder e vai reganhando dignidade, torna-se finalmente um ser resplandecente ao entregar a lança ao seu neto para que este a parta.

Graham Vick trata Wotan neste Siegfried como um bêbedo que usa a lança para devastar em estado de grande decadência a gruta (gaiola) de Mime, que bate numa Erda envelhecida e enterrada num asilo, como um bêbedo bate numa velha e decadente amante, sem dó nem piedade Wotan arrasta-se cambaleando pela cena, arrota, as suas roupas são andrajosas e estão manchadas, os cabelos e a barba hirsutas, Wotan comporta-se como um fantasma sem consciência, como se a sua condição fosse resumida à inevitabilidade da queda na degradação humana. Vick não percebe, ou não quer perceber, que Wotan ao renunciar ao poder ascende ao supremo bem e à verdadeira iluminação. Wotan sombrio e sábio, presidirá doravante na sala do seu castelo à reunião silenciosa dos seus heróis, das suas filhas Valquírias, e dos outros deuses (que não Loge): é o Crepúsculo dos Deuses que se avizinha, Wotan já não está presente na cena, mas é a sombra tutelar do última jornada, Wotan que assistirá de longe à queda e corrupção de Siegfried, último representante da sua raça na terra, e até as nova gerações sem mácula cairão, e a sua queda será muito pior: Siegfried não renuncia, será morto pelas costas, não lhe é dada essa faculdade, essa sabedoria.

A cena da floresta com o esgoto industrial e a poluição não faz o menor sentido na arquitectura da obra, a floresta é primordial, é pura, da floresta nasce o herói sem mácula: Siegfried o idiota que conquista o mundo, o dragão é também um ser primordial. A mancha vem depois, surge no Crepúsculo, colocar o lixo tóxico, o esgoto, o petróleo, no coração da floresta de Siegfried é mais um erro crasso. Parece bem, é a denúncia ecológica do politicamente correcto, a "malta aprecia", mas convenhamos que não tem grande coerência.

O pior é mesmo um Wotan bêbedo e sem consciência, no meu entender um erro violento e grosseiro, incompreensível, que destrói completamente a mensagem filosófica da obra de Wagner. Poupem-me a encenadores que querem ser mais do que os autores da obra e que de forma alarve passeiam a sua ignorância e o seu ódio pelas obras cimeiras do espírito humano.

Tudo o resto são diversões e folclore, a falta de respeito pelos espectadores, com figurantes sentados nas cadeiras pagas pelo público no início do terceiro acto, com gente a entrar nos camarotes sem aviso, e a pisar os calos a pessoas de idade que querem descansadamente gozar as centenas de euros que gastaram para poder assistir a um momento de magia, sem um pedido, sem um aviso, tudo é marca de arrogância e desvario de um encenador que se julga acima da obra e do respeito que deve ao público pagante, mas isso é marginal.

Outro aspecto que Vick despreza alarvemente é o relegar o papel da música e do canto para um plano secundaríssimo, o espaço para a orquestra é reduzido, há menos catorze cordas do que o previsto por Wagner, tudo é mesquinho, os cantores são fracos e têm de correr e saltar desalmadamente, a acústica é muito irregular e depende da orientação dos cantores face ao público circundante, a direcção de Letonja é canhestra e despreza o detalhe, a orquestra tem momentos verdadeiramente miseráveis (mas isso fica para outro texto). Mas, como se sabe, a música em Wagner diz tudo e fazer desaparecer a música da ópera é não entender nada de Wagner.

Gravei ontem para a Antena 2 um possível esboço de discussão crítica, para mim a encenação valia sete valores, é uma classificação muito alta, e tem de ponderar vários efeitos: a direcção de actores é excelente, há efeitos cénicos muito belos como o dos pássaros na ponta de varas que oscilam sobre todo o teatro e sustentados por figurantes que irrompem pelos camarotes, a ideia do dragão está bem imaginada com a a empilhadora do Ouro do Reno transformada agora em aríete. Mas a competência cénica esbarra com um factor inelutável: a destruição da obra na sua visão global, e aí Vick tem zero.

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