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2.10.08

Siegfried no S. Carlos I 

Wotan não é um bêbado



Siegfried de Richard Wagner. Teatro Nacional de S. Carlos, Lisboa.

30 de Setembro de 2008, 18h30.



Segunda jornada de: Der Ring des Nibelungen.

Poema de Richard Wagner. Estreia a 1876, Bayreuth.



Direcção musical Marko Letonja.

Encenação Graham Vick.

Cenografia e figurinos Timothy O'Brien.

Desenho de Luz Giuseppe Di Iorio.



Orquestra Sinfónica Portuguesa

Nova produção





Assisti à estreia de Siegfried no S. Carlos na passada terça feira, dia 30 de Setembro. Começo por fazer notar que a experiência de Vick como encenador de Siegfried é interessante. Do ponto de vista conceptual "virar o teatro ao contrário" dá ao encenador infinitas possibilidades.

Começo por abordar o personagem central da obra: Wotan, o centro, o pilar de toda a estrutura do Ring, a imagem do W, Wotan, Wanderer, Wagner. O W que serve de bandeira em Bayreuth hasteada enquanto o festival decorre, o W a que Wagner recorreu para domesticar o nome de Odin à sua aliteração, forma poética que cultivou à exaustão, e que foi o motor rítmico da composição a partir do poema.

Vick vê a obra quase como se tratasse de um drama doméstico, Wotan é visto como um chefe de família decadente, não é nunca um deus poderoso, faz negócios e engendra teias de esquemas em Rheingold, aparece na Walküre como um burguês sem poder com vulgares amantes e de roupão jogando bilhar em casa e, finalmente, como um bêbedo sem abrigo neste Siegfried.

É na essência no tratamento do personagem Wotan que Vick mais se revela como encenador. Esquecendo o folclore do palco ao centro do teatro como se tratasse de uma arena, a encenação vale muito mais pelo tratamento dos personagens, pela leitura em concreto da obra. É na leitura em concreto da obra e na sua passagem a teatro que Vick falha estrondosamente. Em Wotan, Wagner coloca o poder, a sabedoria, a potência, a sua lança tem geralmente uma acção simbólica e apenas é utilizada como instrumento de poder quando parte a espada de Siegmund no final do segundo acto da Walküre. Gradualmente este poder dissipa-se, não por acção dos elementos estranhos mas pela própria acção de Wotan que se enreda numa teia de compromissos inextricáveis que o atam a ele mesmo. Pela compreensão de que já não faz falta ao mundo.
Wotan concebe de Erda entre Rheingold e a Walküre, engendra Brünnhilde dessa Terra Primordial, sábia e eterna. A mesma Terra que é violada, a mesma Natureza que Wotan violou ao cortar a lança do Freixo do Mundo. Mais do que os compromissos é o destino de Wotan a perda de poder, ele tudo sabe mas a Fonte da Sabedoria secou, o Freixo secou, a lança vai perdendo força. Wotan apercebe-se e quer o Crepúsculos dos Deuses, ele afirma que o Mundo é das novas gerações, puras, sem malícia, sem culpa, sem tratados. Ele afirma-o neste Siegfried. Wotan realiza o supremo ideal de Wagner: a renúncia, a mesma renúncia que Wagner nunca realizou mas que amava em Schopenhauer.

Wagner passa do socialista em 1848, quando idealiza a obra, a pessimista em finais de sessenta quando retoma o Siegfried. É evidente que a ideia simples do início, uma parábola sobre o capitalismo destruído não pela força das armas em revolta armada mas pela arte e pela ideia, deixou de ter sentido para Wagner, que escreve após a epifania de S.: "O Ring continha em si a filosofia que vim a descobrir em Shopenhauer". Não só é isso evidente como a escrita musical de Siegfried foi, toda ela, realizada depois da revelação. O que antes no poema era semente torna-se com a composição da música filosofia pura, é com a música que se percebe a intenção mais íntima de Wagner, nos temas do crepúsculo, da lança, da falsa segurança do Walhalla, da angústia de Wotan, nos temas da Natureza e, sobretudo, na forma como são dispostos, os corais de metais que sublinham e suportam as últimas linhas de Wotan são um exemplo notável do amor que Wagner colocou neste personagem. A linha vocal de Wotan é sempre de uma nobreza sem par ao longo de todo o Ring, e neste Siegfried o personagem é tratado com um carinho e cuidado musical verdadeiramente reveladores da identificação que W tinha com W. Ouvindo o Siegfried, mais do que vendo, percebe-se o amor com que o Wagner maduro, com mais de cinquenta anos e depois de abandonar Siegfried por mais de uma década, retoma o tratamento de Wotan, agora o mais nobre senhor de toda a Tetralogia, deixou de ser o Deus poderoso e sonhador que olha para o Anel em Rheingold, deixa de ser o Deus em Queda livre que abandona o seu filho amado à morte por causa dos seus esquemas, o deus que clama desesperado "É o Fim" o eixo central da Walküre. Wotan no terceiro acto de Siegfried é mais do que um deus, é um homem sábio, o mundo pesa-lhe nos ombros, ele que tudo sabe não quer mais o poder, o poder afinal é inútil, basta-lhe saber, basta-lhe ser o senhor dos corvos.

Mas Wotan ainda é luz, é o Alberich Luz que se revela a Mime na cena das perguntas, é o senhor do cavalo de luz que Alberich entrevê por cima das árvores na floresta onde dorme o Gigante Fafner vestido de Serpente Dragão. Wotan renuncia mas ainda monta o cavalo de luz, ainda tem a lança na mão, ainda é o senhor dos corvos, os mesmos corvos que estão pintados por cima da sua imagem na casa de Wagner em Bayreuth. Pintura emblemática essa, Wagner não escolheu para encimar a porta da sua casa um retrato de Wotan deus, escolheu o retrato de Wotan como o viandante de Siegfried, rodeado pelos corvos que o hão-de servir até ao final do Crepúsculo dois Deuses, os corvos olhos de Wotan.

É pois neste personagem que vai perdendo poder mas vai alcançando a suprema sabedoria e o supremo bem da renúncia, que Wagner também admirava no budismo, na retirada de Wotan para um mundo inacessível aos mortais que ainda não atingiram o Nirvana, que Wagner atribui o papel central do Ring. Wotan perde poder e vai reganhando dignidade, torna-se finalmente um ser resplandecente ao entregar a lança ao seu neto para que este a parta.

Graham Vick trata Wotan neste Siegfried como um bêbedo que usa a lança para devastar em estado de grande decadência a gruta (gaiola) de Mime, que bate numa Erda envelhecida e enterrada num asilo, como um bêbedo bate numa velha e decadente amante, sem dó nem piedade Wotan arrasta-se cambaleando pela cena, arrota, as suas roupas são andrajosas e estão manchadas, os cabelos e a barba hirsutas, Wotan comporta-se como um fantasma sem consciência, como se a sua condição fosse resumida à inevitabilidade da queda na degradação humana. Vick não percebe, ou não quer perceber, que Wotan ao renunciar ao poder ascende ao supremo bem e à verdadeira iluminação. Wotan sombrio e sábio, presidirá doravante na sala do seu castelo à reunião silenciosa dos seus heróis, das suas filhas Valquírias, e dos outros deuses (que não Loge): é o Crepúsculo dos Deuses que se avizinha, Wotan já não está presente na cena, mas é a sombra tutelar do última jornada, Wotan que assistirá de longe à queda e corrupção de Siegfried, último representante da sua raça na terra, e até as nova gerações sem mácula cairão, e a sua queda será muito pior: Siegfried não renuncia, será morto pelas costas, não lhe é dada essa faculdade, essa sabedoria.

A cena da floresta com o esgoto industrial e a poluição não faz o menor sentido na arquitectura da obra, a floresta é primordial, é pura, da floresta nasce o herói sem mácula: Siegfried o idiota que conquista o mundo, o dragão é também um ser primordial. A mancha vem depois, surge no Crepúsculo, colocar o lixo tóxico, o esgoto, o petróleo, no coração da floresta de Siegfried é mais um erro crasso. Parece bem, é a denúncia ecológica do politicamente correcto, a "malta aprecia", mas convenhamos que não tem grande coerência.

O pior é mesmo um Wotan bêbedo e sem consciência, no meu entender um erro violento e grosseiro, incompreensível, que destrói completamente a mensagem filosófica da obra de Wagner. Poupem-me a encenadores que querem ser mais do que os autores da obra e que de forma alarve passeiam a sua ignorância e o seu ódio pelas obras cimeiras do espírito humano.

Tudo o resto são diversões e folclore, a falta de respeito pelos espectadores, com figurantes sentados nas cadeiras pagas pelo público no início do terceiro acto, com gente a entrar nos camarotes sem aviso, e a pisar os calos a pessoas de idade que querem descansadamente gozar as centenas de euros que gastaram para poder assistir a um momento de magia, sem um pedido, sem um aviso, tudo é marca de arrogância e desvario de um encenador que se julga acima da obra e do respeito que deve ao público pagante, mas isso é marginal.

Outro aspecto que Vick despreza alarvemente é o relegar o papel da música e do canto para um plano secundaríssimo, o espaço para a orquestra é reduzido, há menos catorze cordas do que o previsto por Wagner, tudo é mesquinho, os cantores são fracos e têm de correr e saltar desalmadamente, a acústica é muito irregular e depende da orientação dos cantores face ao público circundante, a direcção de Letonja é canhestra e despreza o detalhe, a orquestra tem momentos verdadeiramente miseráveis (mas isso fica para outro texto). Mas, como se sabe, a música em Wagner diz tudo e fazer desaparecer a música da ópera é não entender nada de Wagner.

Gravei ontem para a Antena 2 um possível esboço de discussão crítica, para mim a encenação valia sete valores, é uma classificação muito alta, e tem de ponderar vários efeitos: a direcção de actores é excelente, há efeitos cénicos muito belos como o dos pássaros na ponta de varas que oscilam sobre todo o teatro e sustentados por figurantes que irrompem pelos camarotes, a ideia do dragão está bem imaginada com a a empilhadora do Ouro do Reno transformada agora em aríete. Mas a competência cénica esbarra com um factor inelutável: a destruição da obra na sua visão global, e aí Vick tem zero.

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