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10.6.13

Meio Otello 

Henrique Silveira

Crítico
Otello de Verdi e Arrigo Boito, Fundação Gulbenkian, dia 30 de Maio, sala meia.
Badri Maisuradze, tenor cumpridor em Otello; Dina Kuznetzova em Desdémona, soprano aceitável; Lester Lynch em Iago, baixo-barítono péssimo; Zandra McMaster, meio-soprano razoável em Emilia; Ivan Momirov, tenor de mau gosto em Cassio; Dietmar Kerschbaum, tenor medíocre em Roderigo; Nuno Dias em Lodovico, um baixo esforçado; Luís Rodrigues, barítono demasiado bom para Montano.
Direcção Musical: Lawrence Foster, brutal; Orquestra Gulbenkian, exibindo muita qualidade individual apesar de mal dirigidos, Coro Gulbenkian com maestro Jorge Matta, a nível elevado.
Desta vez tivemos uma verdadeira versão de concerto, decisão acertada, as semi-encenações pindéricas com poucos ensaios e cantores mal preparados, como o pseudo-barítono Lynch mostrou na semana anterior num Falstaff inconcebível, são a receita para o desastre artístico.
Registamos os papeis insignificantes que Luís Rodrigues tem tido no contexto das grandes instituições em Portugal, é verdadeiramente infeliz que instituiçãos como o S. Carlos ou a Gulbenkian não dêem a Luís Rodrigues a oportunidades que este merece. Não conhecemos pessoalmente o cantor, apenas sabemos que já tem mais de quarenta anos, idade em que a voz de barítono está no vigor pleno, é um grande professional, preparando-se com esmero e convicção, conseguindo sempre criar o carácter para boas representações e tem bom gosto.
Neste caso foi chocante ver como Foster colocou todo o gato esfolado em primeiro plano a cantar à frente da orquestra e só o desgraçado do Luís Rodrigues foi colocado junto do coro por detrás da orquestra que, puxada com denodo pela insensível batuta de Foster, tentava abafar olimpicamente a voz do cantor português que, felizmente, não se deixou calar. Será que no confronto com o inenarrável Lynch, um cantor incapaz de criar o tremendo Iago, se perceberia que a voz de Rodrigues está muito acima? É também chocante ver um cantor como Lynch, que faria certamente bem o insignificante Montano, a tentar cantar e compor Iago: sem plasticidade vocal, com agudos possíveis no limite dos limites da sua pesada voz, já destimbrados, com um mau gosto meridiano, com gargalhadas grosseiras a despropósito no final das suas intervenções já desfeito o possível efeito dramático, com a sua afirmação máxima da maldade no seu “credo”, frouxo e aflito, cantada de forma muito pouco convincente e sem representação, como quem canta qualquer papel de segunda.
Iago é o motor da acção, o seu papel é decisivo para insidiar o ciúme e o ódio no coração de Otello. Perante este Iago qualquer Otello deste mundo perceberia de gingeira as intrigas mal urdidas do seu alferes e mandá-lo-ia esfolar vivo e atirar do alto do castelo cipriota. Metaforicamente seria um castigo leve também para quem escolheu este cantor, em detrimento de dar uma oportunidade a Luís Rodrigues neste papel... Um Otello sem Iago é meia ópera.
No naipe de cantores encontrámos um Otello, Badri Maisuradze, um verdadeiro tenor dramático muito composto, infelizmente a sua voz é algo baça nos médios mas foi notório o seu conhecimento do papel, o esforço que colocou no canto do italiano, o poder da sua voz e, sobretudo, a sua interpretação musical. Foi significativa a sua evolução no papel e a sua qualidade de cantar em todos os registos, do herói guerreiro autoritário, do amante apaixonado, ao homem roído pelas dúvidas até à loucura homicida e o arrependimento final. Capaz de apianar e cantar em todas as dinâmicas, apenas teve dois laivos de mau gosto ao deixar sugestões de uns solucinhos tenoris que, felizmente, não se notaram em demasia... Felizmente, na falta de Iago, houve Otello na Gulbenkian.
 A Desdémona de Dina Kuznetsova foi razoável. A sua voz muito quente em todos os registos é densa e encorpada, é um soprano lírico spinto de agudos fáceis e boa paleta dinâmica que poderá evoluir para dramático com o tempo. Infelizmente o seu sotaque tem de ser melhorado no italiano, uma espécie de mix russo-americano não é o ideal para Verdi. Outro aspecto é a sua máscara, faz uma Desdémona sempre em sofrimento, como se já soubesse o que lhe vai acontecer desde o primeiro instante, a voz reproduz esse sofrimento intrínseco. Realiza assim uma composição sem qualquer evolução. Por outro lado, está muito mais confortável no último acto, onde o seu papel atinge o clímax, provavelemente porque os sopranos dedicam mais tempo a preparar a Canção do Salgueiro e o Ave Maria do que tudo o resto e porque passam a vida a cantar estes trechos de resistência em concertos. Poderia ter trabalhado mais os actos iniciais.
O Cassio de Momirov teve todos os defeitos da falta de categoria do cantor, dotado de uma voz que até poderia ser bonita de tenor a puxar para o lírico, mas que o cantor insiste em afirmar como spinto (cuja explicação será: voz lírica com muito apoio e projecção), passa então o tempo a berrar como um possesso, a tentar tapar os outros cantores e a afirmar tiques de personalidade, prolongando notas em excesso sem compreender que Cassio é uma vítima inocente e jovial de Iago e que deve manter essa inocência ao longo da ópera. Momirov tenta cantar o Cassio como um Manrico e toda a interpretação sai ao lado. Com uma inflexão da carreira, e estudando com mestres esclarecidos, poderá melhorar de forma notável a sua postura em palco e a forma como aborda os papeis, porque tem indubitáveis qualidades vocais. Lawrence Foster não teve a compreensão ou a força para moderar este Cassio, provavelmente até gostou desta abordagem porque nada fez para calar a berraria Cassiana!
Gostámos da Emilia de McMaster, muito competente e de voz bem constituída e muito digna. Gostámos do baixo Dias que tentou ser um hierático e sério Lodovico, mas não tem peso vocal nos graves nem idade para encarnar estas personagens. Kerschbaum passou anonimamente em Roderigo.
O Coro de Câmara Infantil da Academia de Música Santa Cecilia (poderia ter um nome ainda mais comprido) esteve bem, tendo sido preparado por Artur Carneiro.
O Coro Gulbenkian esteve muito bem, pujante nas grandes cenas de conjunto e muito incisivo nos comentários à cena de loucura pública de Otello no terceiro acto.
Uma palavra especial para a Orquestra Gulbenkian que, sob a batuta de chumbo de Foster, respondeu muito bem do ponto de vista individual e dos solos, estes foram quase sempre perfeitos: belíssimo o clarinete, o oboé, os fagotes, o corne inglês, as trompas e restantes metais em excelente plano e as cordas estiveram muitíssimo bem. Dedico uma palavra especial para os notáveis contrabaixos liderados por Sorín Orcinschi e Marc Ramirez, que beleza sombria nas suas intervenções sinistras! Pensamos que a superação interna e a liderança, naipe a naipe, foram elementos que valorizaram este Otello.
Três estrelas

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