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5.3.07

A banalização da tragédia - I 

Comentários sobre "Die Walküre" de Wagner no Teatro nacional de S. Carlos.
Assisti à estreia e à récita de Sábado passado, duas perspectivas, uma do palco, onde agora é a plateia, outra de um camarote de primeira ordem por cima da orquestra.
Graham Vick é o encenador, utiliza uma rotunda enorme no local onde anteriormente se situava a plateia do teatro, as cadeiras foram retiradas e um estrado ao nível do topo da balaustrada das frisas é agora o palco cénico.

Nestes textos comenta-se a encenação de per se, não me interessa se existe uma larga rotunda para expor os cantores, não me interessa nada a espectacularidade dos figurantes a sair ou entrar das frisas, das Valquírias a cantar das torrinhas ou da Fricka na Galeria Real. Nada disso é essencial, são aspectos acessórios que poderiam ter sido utilizados com sucesso sem virar o teatro ao contrário. Uma larga rotunda pode ser excelente se os actores forem excelentes, se as luzes forem poéticas e interessantes, se os cantores tiverem algo a dizer com as suas expressões, se o personagem central do drama, Wotan, e não Brünnhilde, tiver um bom actor a representá-lo. Com um design de luzes miserável, descolorido e enfadonho, uma cenografia de estúdio de teatro amador: uns sofás, um snooker e um bar de canto, o que poderia surtir efeito era a caracterização dos personagens, era o drama.
Qual drama? Pergunta quem assistiu. Tudo se passou no campo do banal, as emoções eram triviais, o jogo do poder, motor último da obra, não existiu. Nesta Walküre o único poder é o do encenador, o poder de destruir e de usar tudo a seu belo prazer, sem espaço para o teatro, sem espaço para a música. Nesta Walküre o maestro não tem qualquer poder, os cantores não têm poder, os personagens poder algum têm. Uma experiência que é um risco, que tem aspectos positivos mas que vista numa análise rigorosa de todos os seus elementos se revela profundamente triste, uma trivialização do teatro, uma secundarização da música, uma banalização da tragédia, afinal aquilo que poderia salvar uma encenação tão nua, tão despida nos seus elementos cenográficos.

Por outro lado esta revolução no Teatro de S. Carlos, feita em cima dos joelhos, sem uma equipa de técnicos de acústica, sem se medir o novo fosso, melhor nome seria buraco, leva a que a orquestra esteja reduzida a um número insuficiente para as sonoridades graves, nobres e majestosas que Wagner requere. A falta de reverberação e a secura do som produzido são confrangedoras e um buraco mal concebido para a orquestra leva a problemas de comunicabilidade dentro da mesma que colocam a música à beira do abismo a cada instante. O facto de no palco, agora feito plateia, não se ouvir quase nada das sonoridades orquestrais e de os cantores estarem quase sempre de costas para esse local, levando a que também não se ouçam, foi claramente subestimado pelo encenador-rei. Uma suposta tampa acústica que só funciona ao nível psicológico na cabeça do encenador e dos membros da produção, sem testes acústicos rigorosos, demonstra o autismo voluntarista deste projecto de Vick. Ficam algumas ideias, ficam alguns aspectos interessantes, mas este Wagner de Lisboa para mim deixa um sabor amargo de tristeza, de secundarização do mais belo que estes dramas encerram.

Alguém disse (Jorge Calado no Expresso) que era caso para "V de victória, de Valquíria de Vick", eu digo a propósito deste buraco da orquestra, um buraco infecto, mal concebido, onde as tubas têm de tocar com o pavilhão a escassos centímetros do tecto, onde mal cabem 9 violoncelos e cinco contrabaixos, onde o número anunciado pelo maestro Letonja de 13 cordas a menos (sobre as cordas pedidas por Wagner) era falso por defeito, sendo pelo menos 16 os instrumentos a menos sobre o exigível e numa péssima localização:
V de vergonha, V de voluntarismo, V de Vick

Esta Walküre ainda poderá ser corrigida, se o projecto continuar, em 2008 e 2009, o buraco infecto da orquestra terá de ser alargado, a sala terá de ser estudada do ponto de vista acústico por gente competente e atempadamente. Assim como está corremos o risco desta ideia nem sequer passar da linha de partida. Talvez resulte na televisão onde microfones e câmaras podem fazer milagres, no teatro não funciona.

Vick disse que queria democratizar a ópera, levá-la ao público, dessacralizar o acto. Conseguiu-o de facto, os actores/cantores estão próximo do público, figurantes saem das frisas e atiram-se sobre o actual palco, pares aparecem nos camarotes quando surge a Primavera (primeiro acto), estação de renovação e reprodução na Natureza. Os actores vestem trajes comuns, o que está de acordo com a intemporalidade do drama, mas também os aproxima do público. A pergunta ingente é: Mas o que isso adianta para o conceito do sublime, para a cosmogonia wagneriana? Atrevo-me a responder: nada. Esta dessacralização não existe, o que existe é a transformação da magia, do mito, em banalidade. Nada é poesia, tudo é gratuito, nada se esconde. Onde está a politização, a filosofia?

Hunding veste de motoqueiro, Sieglinde é uma mulher romântica, mas actual, que vive uma vida miserável com um homem que não ama e que a força, veste de mini-saia de cabedal e recebe apalpões de Hunding, acomodou-se, já não espera redenção. Quando volta à sala para Siegmund vem vestida de branco nupcial. Siegmund é uma espécie de marginal, longe da sociedade, contra tudo e todos. Wotan um burguês que tem um pavilhão onde pode andar vestido à sua vontade, onde tem a sua mesa de snooker e um bar para beber o seu Grants de zero anos.
Fricka representa todos os estereótipos de mulher rica e poderosa, uma tiara cobre-lhe os cabelos, será uma deusa? Talvez, talvez seja também, e apenas, uma mulher rica e pretensiosa. Felizmente a cantora/actriz Judit Németh compõe uma Fricka deslumbrante de nobreza, mercê da sua presença em palco e da sua vocalidade, que acaba por fazer cair a simpatia numa personagem que Vick pretendia homiziar, aviltar... que paradoxo.
Brünnhilde veste de preto, uma viúva negra. Todos os de raça divina têm uma mancha na face, uma nuvem, uma marca sagrada. Siegmund, Sieglinde, Wotan e Fricka, pares, casais. Curiosamente Brünnhilde e suas irmãs, Valquírias, ela que é filha de Erda a deusa ancestral da Terra e de Wotan, as outras, filhas nascidas também de Wotan e possivelmente com a mesma ascendência materna não têm a marca divina nas suas faces. Uma incongruência que o o encenador continuará ao longo desta primeira jornada da trilogia com prólogo.

Por outro lado os gémeos Siegmund e Sieglinde, parecidíssimos, segundo Hunding e segundo eles próprios, ele pretíssimo e gordíssimo, ela loura e com menos um cento de quilogramas. Se não eram fisicamente parecidos, os actores de Seigmunde e Sieglinde, num erro de casting grosseiríssimo que eu diria até gratuitamente provocatório, pelo menos poderiam ser parecidos nos maneirismos, na forma de andar, na expressão vocal, nos gestos. Mas nada menos convincente, do que este "par" ridículo de gémeos. É evidente que não se trata de uma questão racial, poderiam até ser convincentes se os corpos se se aparentassem, se a caracterização apontasse nessa direcção. Esta redução do teatro wagneriano ao teatro do absurdo e da negação do texto choca-me profundamente. A encenação pode ser subversiva e respeitar o texto, pode ser radical e entender o autor recriando-o, Vick aqui foi apenas grosseiro. É caso para dizer: com Vick o gang de motoqueiros bebe Sagres de litro no casamento forçado de Sieglinde com o seu líder enquanto Wotan, o deus supremo, bebe Grants de supermercado.

Mas serão estes erros o pior desta produção, não, nem por sombras, o pior ainda está para vir... e o melhor também. É evidente que ficam ideias muito interessantes, que Vick sabe colocar os actores em palco, que 360º são desafiantes e ao mesmo tempo problemáticos, mas o pior é mesmo a caracterização dos personagens, facto que debaterei no próximo texto.

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