1.3.07
Asneiras Wagnerianas III
Agora qualquer palerma que saiba fazer uma redacção da terceira classe escreve sobre Wagner.
Na "crítica" que saiu no jornal "O Público" sobre a Walküre, lá vem o habitual comentário imbecil de que Wagner é misógino e trata mal os personagens femininos. Não há pachorra para tanto disparate junto. Wagner nunca detestou as mulheres, Wagner amava profundamente as mulheres, ao contrário de Schopenhauer; talvez odiasse um pouco os maridos dessas mesmas mulheres, apesar de ser amigo da maioria deles e de lhes pedir dinheiro empretado, mas daí a ser misógino...
Os personagens são o que são, Senta e Isolde são diferentes de Brünnhilde ou de Sieglinde, Brünnhilde é capaz de ódio e de amor, de cólera e de despeito e ao mesmo tempo de uma dignidade triunfante na sua tragédia final, é um personagem de uma densidade e riqueza incríveis, uma representação do Homem.
Os personagens masculinos também são tratados de igual modo: Wotan é claramente um espelho de Wagner.
Alberich é um dual negativo e velhaco de Wotan. Para o crítico de trazer por casa isso deve ser porque Wagner era anti-semita e Alberich deve ser uma espécie de judeu (bem como Mime). Obviamente que Siegfried, um cretino jovem que não conhece o medo, e Parsifal, um perfeito e puro idiota, devem ser assim porque Wagner gostava de representar críticos primários, e Beckmesser, esse sabe-se bem, seria um crítico secundário.
Como se pode afirmar que Wagner trata melhor os homens do que as mulheres?
Não há pachora para tanto disparate junto.
Segue a redacção da terceira classe (e estou a ser muito generoso), para quem não leu, mas eu nem sequer tenho paciência para dissecar mais o assunto.
O título poderia e deveria ser:
A Valquíria frágil e resistente - blurp
A Valquíria frágil e resistente
26.02.2007
Wagner é um osso duro de roer. Não tanto pela longa duração dos seus dramas, mas sobretudo pelas contradições que as suas obras encerram e pelas diferentes leituras que possibilitam. A encenação de Graham Vick, estreada neste sábado no Teatro de São Carlos, mostra bem isso. Vick fez uma leitura não linear e plural de A Valquíria, mas escolheu o seu campo de acção, urdindo uma espécie de tragédia grega contemporânea a partir de uma interpretação profundamente humanista deste episódio da Tetralogia. É um facto que Wagner tem nesta parte da sua obra monumental uma relação especialmente ambígua com o que é humano. Por um lado, todos são corruptos e vendidos, as famílias são decadentes, as convenções não prestam, os seus contratos são sujos e impedem a liberdade. Mas por outro lado só no humano está uma hipótese de redenção. A valquíria Brünhilde, a filha de Wotan, o maior dos deuses (ela é metade dele, da sua consciência e da sua vontade), é a personagem que carrega essa possibilidade. Torna--se humana por ter desobedecido ao seu pai e descobre a compaixão e o amor, o seu e o dos outros. Susan Bullock, soprano, construiu o papel mais difícil, mais dinâmico e mais ambíguo da ópera de Wagner: e foi uma Brünhilde que, a pouco e pouco, cresceu no palco, revelando uma verdadeira actriz. Bullock teve grandes momentos, quando a sua voz e os seus gestos passam, com muita sobriedade, da rispidez de deusa para a sensibilidade humana. Graham Vick puxou por isso, evidentemente. Porque lhe interessava descobrir nos mitos o homem comum - a mulher comum, nesse caso - e as suas obsessões, mais do que passar ideais grandiosos em doses cavalares (também há muito disso em Wagner).
A orquestra sinfónica portuguesa teve força nos momentos essenciais, mas Marko Letonja podia ter ido mais longe na "visão" musical de Wagner - pôr realmente a música na cena e estar ainda mais atento aos cantores, que têm difíceis partes vocais e complicadas movimentações, em vez de exigir apenas que eles sigam a orquestra.
O elenco, no conjunto, é de qualidade elevada. As valquírias tiveram uma grande energia e um empenho enorme. E são excelentes vozes. Mikhail Kit foi um Wotan apenas muito bom - cumpriu bem o papel, mas não foi o deus dos deuses que poderia ser. Anna-
-Katharina Behnke (Sieglinde) tem uma grande voz. Foi mais dramática quando não teve medo do excessivo (no terceiro acto, por exemplo) do que nas partes mais contidas e líricas. Ronald Samm esteve muito bem na generalidade, mas foi-se um pouco abaixo vocalmente na parte final. É que este Siegmund exige algum esforço. Maxim Mikhailov foi um bom mau da fita (Hunding), com o seu lado de motard rufião. Fricka foi uma mulher de Wotan bastante convincente, graças a Judith Németh que levou a água ao seu moinho, tal como Fricka o faz na discussão conjugal dos deuses no segundo acto.
As mulheres em Wagner - deusas incluídas - não se pode dizer que sejam muito bem tratadas. Mulher é quase um insulto. A encenação de Vick, freudiana, psicanalítica, mas aberta e até com algum sentido de humor, deu a volta à misoginia de Wagner de uma forma bastante interessante. Mas foi acima de tudo Susan Bullock, com garra de actriz, que mostrou uma personagem feminina dinâmica e complexa. Frágil e resistente ao mesmo tempo.
Pedro Boléo
Na "crítica" que saiu no jornal "O Público" sobre a Walküre, lá vem o habitual comentário imbecil de que Wagner é misógino e trata mal os personagens femininos. Não há pachorra para tanto disparate junto. Wagner nunca detestou as mulheres, Wagner amava profundamente as mulheres, ao contrário de Schopenhauer; talvez odiasse um pouco os maridos dessas mesmas mulheres, apesar de ser amigo da maioria deles e de lhes pedir dinheiro empretado, mas daí a ser misógino...
Os personagens são o que são, Senta e Isolde são diferentes de Brünnhilde ou de Sieglinde, Brünnhilde é capaz de ódio e de amor, de cólera e de despeito e ao mesmo tempo de uma dignidade triunfante na sua tragédia final, é um personagem de uma densidade e riqueza incríveis, uma representação do Homem.
Os personagens masculinos também são tratados de igual modo: Wotan é claramente um espelho de Wagner.
Alberich é um dual negativo e velhaco de Wotan. Para o crítico de trazer por casa isso deve ser porque Wagner era anti-semita e Alberich deve ser uma espécie de judeu (bem como Mime). Obviamente que Siegfried, um cretino jovem que não conhece o medo, e Parsifal, um perfeito e puro idiota, devem ser assim porque Wagner gostava de representar críticos primários, e Beckmesser, esse sabe-se bem, seria um crítico secundário.
Como se pode afirmar que Wagner trata melhor os homens do que as mulheres?
Não há pachora para tanto disparate junto.
Segue a redacção da terceira classe (e estou a ser muito generoso), para quem não leu, mas eu nem sequer tenho paciência para dissecar mais o assunto.
O título poderia e deveria ser:
A Valquíria frágil e resistente - blurp
A Valquíria frágil e resistente
26.02.2007
Wagner é um osso duro de roer. Não tanto pela longa duração dos seus dramas, mas sobretudo pelas contradições que as suas obras encerram e pelas diferentes leituras que possibilitam. A encenação de Graham Vick, estreada neste sábado no Teatro de São Carlos, mostra bem isso. Vick fez uma leitura não linear e plural de A Valquíria, mas escolheu o seu campo de acção, urdindo uma espécie de tragédia grega contemporânea a partir de uma interpretação profundamente humanista deste episódio da Tetralogia. É um facto que Wagner tem nesta parte da sua obra monumental uma relação especialmente ambígua com o que é humano. Por um lado, todos são corruptos e vendidos, as famílias são decadentes, as convenções não prestam, os seus contratos são sujos e impedem a liberdade. Mas por outro lado só no humano está uma hipótese de redenção. A valquíria Brünhilde, a filha de Wotan, o maior dos deuses (ela é metade dele, da sua consciência e da sua vontade), é a personagem que carrega essa possibilidade. Torna--se humana por ter desobedecido ao seu pai e descobre a compaixão e o amor, o seu e o dos outros. Susan Bullock, soprano, construiu o papel mais difícil, mais dinâmico e mais ambíguo da ópera de Wagner: e foi uma Brünhilde que, a pouco e pouco, cresceu no palco, revelando uma verdadeira actriz. Bullock teve grandes momentos, quando a sua voz e os seus gestos passam, com muita sobriedade, da rispidez de deusa para a sensibilidade humana. Graham Vick puxou por isso, evidentemente. Porque lhe interessava descobrir nos mitos o homem comum - a mulher comum, nesse caso - e as suas obsessões, mais do que passar ideais grandiosos em doses cavalares (também há muito disso em Wagner).
A orquestra sinfónica portuguesa teve força nos momentos essenciais, mas Marko Letonja podia ter ido mais longe na "visão" musical de Wagner - pôr realmente a música na cena e estar ainda mais atento aos cantores, que têm difíceis partes vocais e complicadas movimentações, em vez de exigir apenas que eles sigam a orquestra.
O elenco, no conjunto, é de qualidade elevada. As valquírias tiveram uma grande energia e um empenho enorme. E são excelentes vozes. Mikhail Kit foi um Wotan apenas muito bom - cumpriu bem o papel, mas não foi o deus dos deuses que poderia ser. Anna-
-Katharina Behnke (Sieglinde) tem uma grande voz. Foi mais dramática quando não teve medo do excessivo (no terceiro acto, por exemplo) do que nas partes mais contidas e líricas. Ronald Samm esteve muito bem na generalidade, mas foi-se um pouco abaixo vocalmente na parte final. É que este Siegmund exige algum esforço. Maxim Mikhailov foi um bom mau da fita (Hunding), com o seu lado de motard rufião. Fricka foi uma mulher de Wotan bastante convincente, graças a Judith Németh que levou a água ao seu moinho, tal como Fricka o faz na discussão conjugal dos deuses no segundo acto.
As mulheres em Wagner - deusas incluídas - não se pode dizer que sejam muito bem tratadas. Mulher é quase um insulto. A encenação de Vick, freudiana, psicanalítica, mas aberta e até com algum sentido de humor, deu a volta à misoginia de Wagner de uma forma bastante interessante. Mas foi acima de tudo Susan Bullock, com garra de actriz, que mostrou uma personagem feminina dinâmica e complexa. Frágil e resistente ao mesmo tempo.
Pedro Boléo
Etiquetas: Bárbara Reis, Brünnhilde, Crítica aos críticos, Humor, Imbecis, Irritações, ópera, S. Carlos, Valquíria, Wagner, Walküre, Wotan
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