26.2.07
Walküre a negação wagneriana
Chegou-me às mãos o Diário de Notícias de Sábado. Marko Letonja dá uma entevista sucinta mas muito bem conduzida por Bernardo Mariano. Percebi o que me estava a faltar relativamente à audição da estreia. Realmente as cordas foram drasticamente reduzidas.
O pior que soube através da entrevista, a par da lamechice e banalidade de Letonja ao dizer que a obra é patética e emotiva e o mais a quatro, é mesmo o sacrifício irresponsável da música por uma cenografia e encenação que desprezam a partitura wagneriana em toda a sua dimensão. Diz Letonja que segue o Felix Mottl e a edição da Dover, logo a que eu tenho. Se segue essa edição deveria ter constatado que as indicações que lá vêm, e assim se faz em Bayreuth (como Letonja não se cansa de repetir parece que é o seu modelo), são precisamente de 16 primeiros violinos e não de 14, de 16 segundos e não de 12, de 12 violas e violoncelos cada e não de 10 e, finalmente e o pior de tudo, de 8 contrabaixos e não de 5! O número de cordas a menos, relativamente ao indicado, é de 13 instrumentos, uma orquestra de câmara!
Sendo os naipes graves severamente sacrificados, nos divisi a quatro o desequilíbrio é manifesto e, pior, o desequilíbrio global entre sopros e cordas é tremendo. Na plateia, onde me sentei, os desgraçados dos 5 contrabaixos já nem sequer se ouvem.
A construção, de que Letonja fala, a partir dos graves é uma treta, perdoe-se a palavra: é caso para dizer que é apenas quando as tubas entram que se ouvem graves. Quando os sopros reforçam as cordas, como por exemplo os fagotes e clarinete baixo se juntam aos violoncelos, a coisa compõe-se mas não é ideal. Entretanto diz o maestro que as cordas se ouvem muito bem com três ppp. Talvez Letonja as ouça bem no pódio, mas cá atrás ouvem-se os walkie-talkies da produção e um ruído de fundo das máquinas que abafa completamente qualquer hipótese de se ouvirem os tais três ppp.
Pensar que a primeira razão desta reviravolta no palco do S. Carlos era operacional: a orquestra wagneriana não cabia no fosso do teatro!
Finalmente Letonja diz que "Depois - isto pode parecer provocação, até - mas há vários locais na partitura onde a instrumentação se assemelha muito à música de câmara." Não é provocação nenhuma, é uma verdade óbvia e uma banalidade para quem conhece a obra de Wagner. A maior parte da textura é claramente de câmara, e mais, mesmo nos grandes momentos sinfónicos a presença de estruturas camerísticas transparece. Wagner cria tensões e distensões contínuas, sendo que quase todas as distensões são obtidas por efeitos de redução instrumental e de diálogos instrumentais concisos, geralmente surpreendentes nas combinações e cores, na extraordinária simplicidade e engenho em que emprega todo o espectro orquestral ao mesmo tempo que também sabe utilizar as grandes massas e domina com maestria as grandes complexidades orquestrais, sempre doseando os grandes momentos evitando cair no monolitismo que se encontra num compositor menos dotado do que Wagner, como por exemplo Schönberg na sua fase inicial; v.g. Gurrelieder. A criação de tensão em Wagner também não escapa a estas combinações sonoras. Um dos exemplos mais notáveis é a cena da revelação da espada, em que tímbales a solo, cordas graves, trompete baixo e, finalmente, o primeiro trompete constroem um diálogo notável de revelação e descoberta que se distende a meio com uma evocação meditativa de Siegmund e que, de novo, se reacende para culminar com a entrada em anticlímax de Sieglinde que explica tudo e reduz o momento, o que já era óbvio pela música, ao universo das palavras, antes de entrar num novo ponto de grande dramatismo.
Centenas de outros exemplos podem ser apontados, o monólogo de Wotan, que tanto está "contra" toda a orquestra como em pungentes frases completamente a descoberto ou em diálogo com alguns instrumentos, sublinhado aqui e ali por pizzicati ou notas curtas dos sopros, em que a voz, o elemento da orquestra ao qual é permitido falar, estabelece um princípio condutor que transporta o ouvinte espectador a um mundo mágico de evocações, como por exemplo quando surge o tema de Erda, se anuncia o Crepúsculo, se evocam os tratados, ou se prenuncia o fim, entre tantos motivos entrelaçados ou em sucessão. Não é provocação falar de um Wagner de câmara, é uma evidência.
Creio que a direcção peca por não ser arrebatada ou mesmo excessiva, o excesso de paixão nunca é excessivo! Nota-se que Letonja está a jogar à defesa nesta sua primeira Walküre. A orquestra não dá grande segurança, o espaço é muito desconfortável para uma direcção precisa dos cantores, é justificável, mas esta visão também é redutora e empobrecedora. Resta pesar os muitos lados e saber no final se valeu a pena. Ainda é cedo para esse balanço, nem o projecto avançou ainda muito, nem esta Walküre atingiu a sua maturidade musical e teatral.
Letonja afirma, como se de um grande desiderato se tratasse, que não reduziu madeiras e metais! Como se o pudesse fazer, as partes são únicas, cortar nos sopros seria cortar música escrita por Wagner. Pode cortar nas cordas porque na maioria dos casos estão muitos instrumentos a tocar a mesma coisa, não acontece isso nos sopros.
Foi por isso que tivémos seis harpas no Ouro do Reno, é porque nesse drama específico a música de cada harpa está escrita, em linhas individuais, por Wagner. Cortar uma harpa seria destruir o texto musical na sua completude. Na Walküre as harpas dividem-se em dois conjuntos de três harpas, ou em conjuntos menores, mas nunca há mais de duas linhas paralelas, logo vá de cortar um par de harpas. Quando Wagner pretendia as seis, que vêm indicadas na partitura, Letonja põe quatro, apesar do Mottl, apesar de em Bayreuth se fazer com seis, e em Berlim e em Aix e em todo o lado onde se respeita a obra de Wagner. Queixa-se que teve de as mandar tocar mais piano porque estão muito próximas do local de onde dirige, mas aqui também não interessa muito o que o maestro ouve no pódio apenas porque as harpas estão muito próximo das suas orelhas, o que se pretende é um efeito sonoro junto de quem ouve, o público. Se Wagner quer seis harpas devem estar seis. Acrescento que se Letonja as ouviu bem eu não consegui ouvir bem esses instrumentos, nomeadamente na maravilhosa cena da Primavera no primeiro acto.
Fica uma certeza: fazer Wagner com uma orquestra que já não é grande coisa e ainda por cima violentamente amputada do seu efectivo ideal é negar descaradamente o compositor e a sua obra, é destruir o seu ideal sonoro. Há que ser frontal: nestas questões não pode haver compromissos, uma Walküre com uma orquestra desfalcada é uma fraude, é vender gato por lebre.
Outro lado que para mim é revoltante é o facto de em Portugal nunca se fazerem as coisas pela íntegra, há sempre certas razões, há sempre uns burocratas que acham que não se pode fazer como está escrito, por isto e mais aquilo e rebéu-béu-béu, e o espaço é pequeno, e era desconfortável, e era demasiado para as orelhas do maestro ter de ouvir tanto barulho. E não se pode contrariar o Vick que ele é que é o autor do projecto e é o encenador e mais uma série de coisas todas cinzentas e medíocres que se afirmam para justificar o injustificável. E vem um esloveno que nunca dirigiu a Walküre para nos ensinar como deve ser uma orquestra wagneriana e que assim fica muito equilibrado... o mesmo Letonja que assassinou a partitura de Medeia. Ter aspectos de câmara não significa que se faça Wagner com uma orquestra de câmara e a ouvir-se a meio gás.
Que raio de país este de miseráveis meias tintas que nem sequer um Wagner inteiro podemos escutar. Soubesse a maioria do público a que soa um Wagner inteiro e verdadeiro...
P.S. Como poderá o maestro Letonja seguir as indicações da partitura que indica "quatro primeiros contrabaixos" no início do prelúdio e uns compassos mais à frente faz entrar mais quatro, escrevendo "todos os oito contrabaixos" para voltar a retirar quatro contrabaixos mais à frente. Como pode haver uma graduação do peso dos graves se não existe qualquer hipótese de o fazer com apenas cinco instrumentos? Será que primeiro entram os quatro primeiros e depois entra o quinto? Será que ficam todos a tocar, será que entram 3 e depois mais dois? As partes de grande densidade, pathos e energia com os violoncelos e contrabaixos saem desgraçadamente pífias, lembro o tema da rebelião de Siegmund contra Wotan no final do segundo acto sobre o tema da morte: como emprestar força telúrica, drama, angústia? Com um peso orquestral nas cordas graves absolutamente ridículo. Embora tenha ficado num local de acústica muito fraca, parece-me que falta muita massa a esta orquestra enfezada e diminuída nas cordas.
O pior que soube através da entrevista, a par da lamechice e banalidade de Letonja ao dizer que a obra é patética e emotiva e o mais a quatro, é mesmo o sacrifício irresponsável da música por uma cenografia e encenação que desprezam a partitura wagneriana em toda a sua dimensão. Diz Letonja que segue o Felix Mottl e a edição da Dover, logo a que eu tenho. Se segue essa edição deveria ter constatado que as indicações que lá vêm, e assim se faz em Bayreuth (como Letonja não se cansa de repetir parece que é o seu modelo), são precisamente de 16 primeiros violinos e não de 14, de 16 segundos e não de 12, de 12 violas e violoncelos cada e não de 10 e, finalmente e o pior de tudo, de 8 contrabaixos e não de 5! O número de cordas a menos, relativamente ao indicado, é de 13 instrumentos, uma orquestra de câmara!
Sendo os naipes graves severamente sacrificados, nos divisi a quatro o desequilíbrio é manifesto e, pior, o desequilíbrio global entre sopros e cordas é tremendo. Na plateia, onde me sentei, os desgraçados dos 5 contrabaixos já nem sequer se ouvem.
A construção, de que Letonja fala, a partir dos graves é uma treta, perdoe-se a palavra: é caso para dizer que é apenas quando as tubas entram que se ouvem graves. Quando os sopros reforçam as cordas, como por exemplo os fagotes e clarinete baixo se juntam aos violoncelos, a coisa compõe-se mas não é ideal. Entretanto diz o maestro que as cordas se ouvem muito bem com três ppp. Talvez Letonja as ouça bem no pódio, mas cá atrás ouvem-se os walkie-talkies da produção e um ruído de fundo das máquinas que abafa completamente qualquer hipótese de se ouvirem os tais três ppp.
Pensar que a primeira razão desta reviravolta no palco do S. Carlos era operacional: a orquestra wagneriana não cabia no fosso do teatro!
Finalmente Letonja diz que "Depois - isto pode parecer provocação, até - mas há vários locais na partitura onde a instrumentação se assemelha muito à música de câmara." Não é provocação nenhuma, é uma verdade óbvia e uma banalidade para quem conhece a obra de Wagner. A maior parte da textura é claramente de câmara, e mais, mesmo nos grandes momentos sinfónicos a presença de estruturas camerísticas transparece. Wagner cria tensões e distensões contínuas, sendo que quase todas as distensões são obtidas por efeitos de redução instrumental e de diálogos instrumentais concisos, geralmente surpreendentes nas combinações e cores, na extraordinária simplicidade e engenho em que emprega todo o espectro orquestral ao mesmo tempo que também sabe utilizar as grandes massas e domina com maestria as grandes complexidades orquestrais, sempre doseando os grandes momentos evitando cair no monolitismo que se encontra num compositor menos dotado do que Wagner, como por exemplo Schönberg na sua fase inicial; v.g. Gurrelieder. A criação de tensão em Wagner também não escapa a estas combinações sonoras. Um dos exemplos mais notáveis é a cena da revelação da espada, em que tímbales a solo, cordas graves, trompete baixo e, finalmente, o primeiro trompete constroem um diálogo notável de revelação e descoberta que se distende a meio com uma evocação meditativa de Siegmund e que, de novo, se reacende para culminar com a entrada em anticlímax de Sieglinde que explica tudo e reduz o momento, o que já era óbvio pela música, ao universo das palavras, antes de entrar num novo ponto de grande dramatismo.
Centenas de outros exemplos podem ser apontados, o monólogo de Wotan, que tanto está "contra" toda a orquestra como em pungentes frases completamente a descoberto ou em diálogo com alguns instrumentos, sublinhado aqui e ali por pizzicati ou notas curtas dos sopros, em que a voz, o elemento da orquestra ao qual é permitido falar, estabelece um princípio condutor que transporta o ouvinte espectador a um mundo mágico de evocações, como por exemplo quando surge o tema de Erda, se anuncia o Crepúsculo, se evocam os tratados, ou se prenuncia o fim, entre tantos motivos entrelaçados ou em sucessão. Não é provocação falar de um Wagner de câmara, é uma evidência.
Creio que a direcção peca por não ser arrebatada ou mesmo excessiva, o excesso de paixão nunca é excessivo! Nota-se que Letonja está a jogar à defesa nesta sua primeira Walküre. A orquestra não dá grande segurança, o espaço é muito desconfortável para uma direcção precisa dos cantores, é justificável, mas esta visão também é redutora e empobrecedora. Resta pesar os muitos lados e saber no final se valeu a pena. Ainda é cedo para esse balanço, nem o projecto avançou ainda muito, nem esta Walküre atingiu a sua maturidade musical e teatral.
Letonja afirma, como se de um grande desiderato se tratasse, que não reduziu madeiras e metais! Como se o pudesse fazer, as partes são únicas, cortar nos sopros seria cortar música escrita por Wagner. Pode cortar nas cordas porque na maioria dos casos estão muitos instrumentos a tocar a mesma coisa, não acontece isso nos sopros.
Foi por isso que tivémos seis harpas no Ouro do Reno, é porque nesse drama específico a música de cada harpa está escrita, em linhas individuais, por Wagner. Cortar uma harpa seria destruir o texto musical na sua completude. Na Walküre as harpas dividem-se em dois conjuntos de três harpas, ou em conjuntos menores, mas nunca há mais de duas linhas paralelas, logo vá de cortar um par de harpas. Quando Wagner pretendia as seis, que vêm indicadas na partitura, Letonja põe quatro, apesar do Mottl, apesar de em Bayreuth se fazer com seis, e em Berlim e em Aix e em todo o lado onde se respeita a obra de Wagner. Queixa-se que teve de as mandar tocar mais piano porque estão muito próximas do local de onde dirige, mas aqui também não interessa muito o que o maestro ouve no pódio apenas porque as harpas estão muito próximo das suas orelhas, o que se pretende é um efeito sonoro junto de quem ouve, o público. Se Wagner quer seis harpas devem estar seis. Acrescento que se Letonja as ouviu bem eu não consegui ouvir bem esses instrumentos, nomeadamente na maravilhosa cena da Primavera no primeiro acto.
Fica uma certeza: fazer Wagner com uma orquestra que já não é grande coisa e ainda por cima violentamente amputada do seu efectivo ideal é negar descaradamente o compositor e a sua obra, é destruir o seu ideal sonoro. Há que ser frontal: nestas questões não pode haver compromissos, uma Walküre com uma orquestra desfalcada é uma fraude, é vender gato por lebre.
Outro lado que para mim é revoltante é o facto de em Portugal nunca se fazerem as coisas pela íntegra, há sempre certas razões, há sempre uns burocratas que acham que não se pode fazer como está escrito, por isto e mais aquilo e rebéu-béu-béu, e o espaço é pequeno, e era desconfortável, e era demasiado para as orelhas do maestro ter de ouvir tanto barulho. E não se pode contrariar o Vick que ele é que é o autor do projecto e é o encenador e mais uma série de coisas todas cinzentas e medíocres que se afirmam para justificar o injustificável. E vem um esloveno que nunca dirigiu a Walküre para nos ensinar como deve ser uma orquestra wagneriana e que assim fica muito equilibrado... o mesmo Letonja que assassinou a partitura de Medeia. Ter aspectos de câmara não significa que se faça Wagner com uma orquestra de câmara e a ouvir-se a meio gás.
Que raio de país este de miseráveis meias tintas que nem sequer um Wagner inteiro podemos escutar. Soubesse a maioria do público a que soa um Wagner inteiro e verdadeiro...
P.S. Como poderá o maestro Letonja seguir as indicações da partitura que indica "quatro primeiros contrabaixos" no início do prelúdio e uns compassos mais à frente faz entrar mais quatro, escrevendo "todos os oito contrabaixos" para voltar a retirar quatro contrabaixos mais à frente. Como pode haver uma graduação do peso dos graves se não existe qualquer hipótese de o fazer com apenas cinco instrumentos? Será que primeiro entram os quatro primeiros e depois entra o quinto? Será que ficam todos a tocar, será que entram 3 e depois mais dois? As partes de grande densidade, pathos e energia com os violoncelos e contrabaixos saem desgraçadamente pífias, lembro o tema da rebelião de Siegmund contra Wotan no final do segundo acto sobre o tema da morte: como emprestar força telúrica, drama, angústia? Com um peso orquestral nas cordas graves absolutamente ridículo. Embora tenha ficado num local de acústica muito fraca, parece-me que falta muita massa a esta orquestra enfezada e diminuída nas cordas.
Etiquetas: Crítica de Ópera, Irritações, Letonja, S. Carlos, Valquíria, Wagner, Walküre
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