<$BlogRSDUrl$>

7.3.07

A banalização da tragédia - II 

No texto prévio falámos de erros que entendemos na encenação de Graham Vick da "Die Walküre", não seria justo ficar por aí. Embora os actores (os masculinos) estejam entre o normal e o fraco, e as actrizes entre o mediano (caso de Sieglinde) e o muito bom, a caracterização dos personagens e a concepção global da encenação, responsabilidade de Vick, padece de erros objectivos, que procurarei explicar, e de erros estéticos e filosóficos sempre de cariz mais subjectivo, que terei de explicar ainda melhor. É claro que Vick tem boas ideias. Vick é um bom director de actores, sabe colocá-los em palco, as cenas têm sempre movimento, é claramente um homem de teatro, os erros vêm no meu entender da visão autocrática da posição de si próprio como encenador e artista, provêm de delírios de omnipotência que arrumam à partida muitas hipóteses de uma leitura analítica, filosófica e política, que esteve presente no Ouro do Reno e que aqui, incongruentemente para uma obra comum, desaparecem.
A partitura de Wagner é também teatro, a música está escrita bem como a acção e o que devem fazer os personagens, até os momentos de abertura e fecho da cortina são explicitados e se deve ser rápida ou normalmente. Por exemplo no momento em que Hunding e Siegmund discutem, na cabana do primeiro, Wagner escreve que Sieglinde deve aproximar-se e colocar-se entre os dois. A cena da morte de Hunding é claríssima, apenas depois do segundo "Vai" de Wotan deve o corpo do bruto cair acompanhando as notas descendentes das cordas graves.
Se as notas são sagradas porque não é o teatro? O drama wagneriano é tão forte ao nível da música como ao nível da representação, a música e o teatro do mesmo autor que concebeu a obra como um todo. Ou entendemos Wagner como um grande autor que fez obras notáveis que devem ser respeitadas e gostamos do seu teatro, ou achamos que esse mesmo teatro deve ser alterado, reescrito, destruído. Vick está claramente no segundo lado.
Vejamos a queda de Hunding, Vick mata-o ao mesmo tempo de Siegmund antes de Wotan lhe dizer que deve ir ajoelhar perante Fricka como escravo, antes de Wotan dizer que a sua lança deve corrigir a humilhação feita ao seu dono e antes de lhe dizer, "Vai" duas vezes. Quando as notas descendentes medem a queda pesada e dramática emprestando uma cenografia através da música ao gesto, criando uma tensão insuportável que contribui para a densidade trágica da obra, já Hunding está por terra há dois ou três minutos. É ridículo, ineficiente dramaturgicamente, destrutivo do texto de forma gratuita, é mesmo pateta, poderia até ser confundido com ignorância grosseira se não se soubesse que Vick até conhece bem a obra. Isto contribui para a uma espécie de teatro incongruente entre o que é dito e feito. Vick banaliza ao retirar à música o seu papel simbólico e a sua força dramática. Qual a razão de destruir uma construção tão perfeita? Incompetência ou vontade autista do encenador em subverter gratuitamente uma edifício tão perfeito?
Será apenas imprimir algo de novo, uma marca Vick espúria e sem sentido, que nem sequer funciona no gesto aparente do teatro surdo à música. Junte-se aos gémeos a preto e branco, bucha e estica, já discutidos, junte-se à cena de Wotan e Fricka que discutiremos no próximo parágrafo e caminhamos para uma banalização da tragédia, uma futilização do génio, um aburguesamento acéfalo de um texto profundamente filosófico e politizado, depois daquele Ouro do Reno esta trivialização. O que será que Vick quer dizer? Veremos se Siegfried esclarece o programa de Vick.

A cena entre Fricka e Wotan, é representada por Judit Németh, uma excelente cantora e actriz, ele por um russo que serve para Gergiev, para Jorge Calado, para a minha amiga Ana Rocha, para quase toda a gente, mas que para mim não serve. Num alemão inenarrável, rosnando o papel sem o cantar verdadeiramente, (será que ninguém aprendeu com os arcos de Hotter?), mal vestido, Wotan enfrenta uma Fricka poderosa e motivada, bem vestida na sua simbologia divina, Németh é tão nobre que parece a mais bela das mulheres. Este Wotan não tem armas para ela, é um trapaceiro, tenta seduzi-la, mas a cena não tem a menor verosimilhança, dá umas tacadas no snooker de forma displicente, mas não tem jeito nenhum para aquilo e fazê-lo enquanto canta é desastroso, não funciona dramaturgicamente por inverosimilhança com o texto e a própria realidade que quer descrever. Wotan é tão pouco poderoso nesta Valquíria que nem sequer consegue acertar umas tacadas. Aliás o snooker marca o erro de Vick, aquilo faz o quê ali? Faz sentido Wotan dar tacadas, como não quer a coisa, enquanto discute o futuro do seu universo? Por acaso acho a metáfora do jogo interessante se bem realizada, ou seja: Wotan teria o poder de manipular as forças do universo como quem manipula habilmente as bolas de um jogo de snooker, o taco é um equivalente da lança; mas para esta ideia ser credível e funcionar o cantor/actor que faz de Wotan teria de ser um excelente jogador e surgir com a caracterização de alguém poderoso... em vez do "jogador trapaceiro" eu penso no jogador hábil, que a certa altura se começa a enredar no seu próprio jogo e a meter os pés pelas mãos, que é o que no fundo acontece com Wotan... não sei se era esta a ideia que Vick tinha em mente. Se era não era má, mas de facto a concretização foi banal. De facto o oposto é que aparece, um charlatão sem poder, que não acerta nas bolas. Mas se Wotan não tem poder qual o sentido disto tudo?
Uma cena de conflito emocional profundo, que reflectia profundamente o drama pessoal de Wagner com a sua mulher, é dramatizado por Vick como uma cena de uma série da britcom, ridículo. Vick quis trazer todos os diálogos como conflitos a dois, a ideia é boa, a Valquíria lida a todo o passo com o conflito entre opostos. Mas apenas se deve notar que este conflito não faz sentido, quem não tem poder não pode ter conflitos, está derrotado à partida. Se o actor/cantor é fraco tudo resulta inútil : o Das Ende de Wotan soa a rouco e a pouco e este Wotan está condenado à partida, até pelo mau gosto do seu trajar.

É óbvio que a Valquíria lida com o conflito, mas o porquê do conflito qual é? Nunca foi explicitado por Vick qual a força motriz por detrás do conflito: o poder e a sua demanda. Wotan é uma espécie de jogador, um burguês que bebe whisky manhoso e que tem uns esquemas, a Valquíria é uma viuva negra que não sabe bem o que fazer e que tem pena do mortal Siegmund, sem se perceber todo o conflito interno da revelação da emoção e da rejeição da imortalidade fria que busca apenas o poder eterno e que vai perdendo gradualmente. É evidente que A Valquíria é um drama de transição, é um drama de explicação, não se espera aqui a renúncia sábia do último Wotan. O supremo deus também está perdido no seu labirinto interior, talvez por isso Vick o tenha retratado como "burguês manhoso" um pouco perdido, que se evade bebendo whisky num bar/retiro de terceira categoria... Vick antecipa cedo demais a renúncia do poder. Parece claro que Vick quis enfraquecer a personagem de Wotan. Este sabe que tudo está perdido, Fricka explicita-o, Wotan já o sabia há muito, desde a profecia de Erda, e admite-o, mas é uma admissão involuntária, Wotan ainda espera recuperar o poder, ainda o utiliza na punição de Brünnhilde que ele sabe que virá a ser tomada pelo herói que há-de vir, e o tema de Siegfried ecoa por toda a orquestra e pelo canto da filha.
Magníficas as palavras finais sobre a imortalidade que Wotan enuncia no final do drama, Wotan sabe que o futuro está no homem. Vick, imagino eu, também o quer mostrar, mas esquece o lado profundamente humano de Wotan que, apesar de deus, é uma representação do homem. Wotan não é apenas um fútil e oco jogador com uns esquemas, Wotan é o símbolo último da demanda pelo poder e da sua renúncia.

Não será um herói que não teme o medo, mas um herói que não teme a lança de Wotan, que atravessará as chamas mágicas. O poder só existe através da sua representação, do respeito e do medo que inspira, o poder não existe se não se recear a lança de Wotan. A lança é o símbolo último do poder enquanto a espada é o símbolo da razão, que corta e divide, a espada é analítica, a lança é brutal. A razão cortará o poder.
E que banalização desse momento decisivo da ópera, Wotan parece um pobre desgraçado, um actor mau, mal vestido, sem os estigmas do seu poder, de lança remendada, um "farroupilha" (perdoe-se-me o neologismo) que se despede da filha, balbuciando mal um alemão de porto russo, rosnando em vez de cantar, rouco, desafinado, não tão péssimo quanto o Wotan da primeira produção mas mesmo assim claramente insuficiente.
A orquestra está reduzida a uma dimensão de trazer por casa com 16 cordas a menos sobre o exigível, a tocar horrendamente, com uns violinos em que alguns até fingem que tocam com o arco por cima das cordas sem lhes tocar, os que tocam desafinam como um bando de gatos, sem chama nem glória, nem poesia, nem alma. As tubas não conseguem cantar gloriosamente o tema de Siegfried porque estão metidas num buraco de onde o som não sai e onde estão condenadas a desafinar como bodes se cantarem a plenos pulmões por causa do tecto estar a dez centímetos dos pavilhões das mesmas. As chamas, símbolo supremo do poder de Wotan, e neste caso sobre Loge, o deus do fogo, são umas letras encarnadas que desfilam rápidas à volta de Brünnhilde.
É um erro supor que Wotan já nem sequer tem o poder de mandar no fogo, Wotan perde o poder porque deixa de ser temido na sua representação que se mantém até à lança ser quebrada pelo seu neto. Se o seu poder não fosse imponente à partida, o papel de Siegfried poderia ser desempenhado por um qualquer Sr. Hermenêutica de foice e martelo em punho, em vez da espada Notung..
As letrinhas de Loge representam um adeus antecipado ao poder de Wotan: não será demasiado fácil para Siegfried atravessar aquela barreira? Se Wotan apenas consegue aquilo porque razão teremos de suportar mais de oito horas de música para se atingir o cataclimo do fogo, também ele ordenado por Wotan no seu acto final, e servido pelo mesmo leitmotif. Será que Vick nos servirá o Crepúsculo dos Deuses com estes a tomarem um banho de sol na Caparica, de facto não estaria mal pensado. Ainda estou para ver como é que ele vai descalçar essa bota! Em rigor devia deitar o fogo ao camarote real.

É evidente que esta leitura também apresenta boas ideias, as Valquírias como vampiras negras, chupando o sangue e a alma dos mortos em combate. Mas aqui esta boa ideia esbarra com o papel secundário para o drama desta cena magnífica: boa realização teatral, bons movimentos cénicos mas apenas show-off.
A cena da tempestade com a violação e o casamento forçado de Hunding com Siegliende é muito bem conseguido e funciona, apesar de Wagner não ter escrito nada disso na partitura, é aqui que o texto wagneriano pode ser enriquecido com as ideias do encenador e neste caso funcionou muitíssimo bem.
A cena das vaias a Fricka quando esta se senta no camarote real no início do terceiro acto estariam muito bem apanhadas se fossem para o maestro Letonja e a orquestra, no caso de Fricka são grosseiras e desnecessárias, a censura, a reflexão sobre o seu papel não se faz ao nível maniqueísta do bom e do mau, as vaias são redutoras, Fricka tem o seu papel no drama, é um motor. É certo que ela representa valores que os outros questionam, desprezam ou dos quais se querem libertar... talvez o próprio Wagner, mas Wagner deixa essa hermenêutica (como a palavra está na moda porque não usá-la, afinal não é exclusiva do sr. secretário) à consciência do espectador, quem não está preparado não o perceberá, não necessita de um encenador para o guiar. Os valores de Fricka são negativos ou positivos? Isso fica na consciência e no pensamento crítico do espectador, esse é um dos lados geniais de Wagner, não há personagens cem por cento certas ou erradas, não há rectidão de valores, há seres humanos. Isto apesar de alguns serem chamados de deuses. Retirar a capacidade de pensar ao espectador é mais uma vez destruir o génio de Wagner, o drama faz-se com as nossas cabeças e com as nossas emoções.
Existe uma outra interpretação: é evidente que há á uma tomada de posição do encenador mas isso também não quer dizer que o espectador a aceite; o espectador mais conservador pode até ficar do lado de Fricka... acho que a interpretação fica na mesma em aberto, mas nesse caso as vaias são desnecessárias, acessórias.
Já a presença de Fricka no primeiro acto é inteligente, a entrada de Wotan quando o amor se consuma é também inteligente. Eles são as testemunhas que debaterão depois, em conflito, o papel dos heróis, dos tratados, da essência do poder, numa discussão que é, para mim, um dos mais belos momentos da ópera wagneriana.
Os pares expostos pela sala são interessantes na aparição da Primavera, mas distraem do essencial, o dueto de amor extraordinário de Siegmund e Sieglinde. Onde estavam as harpas que não se ouviam?
Hunding, um bruto, está bem caracterizado, só falta arrotar e peidar-se, o que eu não veria com maus olhos, seria respeitar Wagner de facto: o retrato dos maridos que Wagner tão detestava.
Sieglinde também não está mal, uma mulher conformada, forçada, mas que reencontra o sonho.
As Valquírias vestidas como estão, parecem saídas de um filme do Harry Potter, mas a ideia é muito boa e funciona perfeitamente.
Siegmund é um desgraçado inverosímil: quem acredita que um homem daqueles conseguiu fugir de uma matilha de cães? Quem acredita que a arfar, a suar abundantemente e cantando de forma penosa, pelo cansaço originado pelo seu peso, tenha uma cena de amor credível?
Porque razão as mulheres dos heróis mortos em combate, estavam tão bem vestidas? Um pouco ridículo de novo se aquilo era um campo de batalha. Será para criar a tal distância crítica da qual Vick é adepto? No fundo o seu maior erro, Wagner é tudo menos Brecht, formatá-lo pelas ideias posteriores é destruir a sua mensagem. Para uns é tocar no sagrado, para outros uma leitura possível. No meu caso prefiro a magia e o transcendente em oposição à democratização tonta. Wagner democratiza pelo pensamento a que obriga e que atinge todos. Esta é uma questão estética, filosófica e política que está no cerne da paixão que Wagner suscita nos seus irredutíveis e nos seus críticos. Admito perfeitamente outras visões, trata-se de uma questão de emoções profundas, prefiro a vertente transcendente em oposição ao lado trivializante desta visão do teatro sem distância, sem transcendência, em que a música é reduzida a um papel de acompanhamento e não há segredos por revelar. Serei um conservador empedernido nesta visão?
Teatro puro, magia pura, nada de ilusões: o drama wagneriano é teatro mágico...
Falou-se bem do tronco caído, acho visualmente interessante, e bem apanhado do ponto de vista cenográfico, mas volta a ser errado deixar a árvore da vida caída e morta no chão da sala. Alguém dirá que faz sentido: tudo começou porque Wotan lhe arrancou um ramo, o primeiro atentado contra a natureza a que se seguirão muitos outros... este freixo representa o freixo primordial que sustenta o castelo dos deuses, mas estar já morto e reduzir o poder actual de Wotan ao nada é excessivo, e é afinal a mais forte mensagem de Vick.
Interessante a batalha nos destroços da sala de Wotan, finalmente uma ideia que faz sentido simbólico, aqui Wotan já admitiu o fim. Joga-se a morte do seu filho nos destroços do seu conforto burguês, gostei.
Já o sofá na cena final da montanha é acessório e sem sentido. Nem como trono de Wotan será coerente, pois Vick caracteriza-o como um trapaceiro sem poder.

Valeu a pena? Apesar de uma encenação errada na sua concepção geral e servida por personagens centrais ocos sem saberem bem o que estavam a fazer (Wotan e Brünnhilde), eliminando a magia do teatro (factor essencial para Wagner e elemento crucial do papel da música no drama) mas também não o tornando verosímil, deixando sempre margem para a distância crítica brechtiana (o que é uma visão defendida por muitos), socializando e integrando o teatro global com o público no drama (o que poderia ser defensável e positivo à partida), subalternizando a música, banalizando a tragédia, usando figurinos horríveis, luzes anónimas, abandonando o público do palco à sua triste sorte de não ouvir nada e de ver quase sempre as costas dos cantores, de deixar sempre público de fora do teatro pela impossível utilização dos 360º que deixam sempre gente de fora, acaba por ser emocionalmente atraente este Wagner de trazer por casa. Este Wagner acaba por fazer pensar.
E se Mikhail Kit em Wotan fosse melhor actor e cantor? E se o maestro Letonja fosse mais refinado e atento aos detalhes? E se a música não fosse tão sacrificada? Talvez a coisa, creio que sobretudo pela música de Wagner e pelo palco central, teria valido os inconvenientes. Assim ficou-se pelo interessante. A minha análise desta Valquíria fica-se pela minha desilusão pessoal, de estar à espera de mais de um encenador que já fez coisas muito belas e pela sucessão de erros factuais que poderiam ter arruinado globalmente o projecto e que ainda o poderão fazer.
Os lados da acústica e da subalternização da música são para mim os mais graves defeitos desta encenação que atinge uma classificação mediana para quem a vê dos camarotes e negativa para os espectadores do palco.

Os meus comentários sobre Vick são sobretudo ao nível estético, como realizador no concreto Vick sabe do seu métier. Esta encenação tem novidades, tem valor acrescentado sobre as encenações que se vêm fazendo, acaba por dar algum prazer ver como se faz e em ter Wagner em Lisboa. Uma encenação histórica. Prefiro assim do que não se fazer, apesar das críticas que fiz.
Uma palavra para a direcção do teatro: o risco corrido resultou melhor no Ouro do Reno. Na Valquíria uma repetição da utilização do palco já não trouxe as novidades do ano passado. O cast é irregular. A música é subalternizada, acusticamente existem gravíssimas falhas. O projecto no entanto tem valor e deve ser corrigido para 2008 e 2009. Vick não pode ter o poder absoluto sendo autista relativamente a estes problemas. Não acredito que este Wotan consiga em 2009 fazer uma tetralogia completa.

O projecto deve ser continuado sem sombra de dúvidas, cortá-lo seria um acto de censura. A crítica nunca deverá ser vista como um incentivo à censura, mas uma forma de reflexão, de pensamento livre. Defender o teatro e a sua direcção contra uma tutela incompetente não é incompatível com dizer-se o que se pensa das produções em concreto.

Continua com a análise em concreto das vozes, da orquestra e da concepção do maestro.

Etiquetas: , , , , ,


Arquivos

This page is powered by Blogger. Isn't yours?