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24.1.07

Caro Rui Cerdeira Branco, pedes-me para ler um acordão de tribunal, um texto de má qualidade literária onde eu iria perder o meu precioso tempo a dissecar num cadáver putrefacto de formalismos jurídicos. Iria ceder àquilo que considero um dos problemas maiores da nossa sociedade e da nossa justiça: a capacidade de elocubrar sem juízo ético, sobre pressupostos formais afastados da realidade concreta e do mundo. Uma gigantesca masturbação épica que vai destruindo o nosso país num onanismo universal de egos e vontades sem ilusões, auto-centradas, sem destino que não o da discussão estéril de pesporrências escritas e orais.
O problema aqui é a realidade, a ilusão, a memória, a invenção e o tempo. Valores éticos, condenações, juízos de valor. Mas, de facto, tudo totalmente errado. Condena-se alguém (Luís Carmelo) que "inventou um facto para supostamente promover um livro". Esse facto não é real, afirma-se.
As minhas questões centram-se sobre o conceito de real. A partir do momento em que o facto se torna aparente, e é recriado/imaginado por nós na nossa mente, passa a ser real. O mundo, tal como existe, é apenas uma representação proveniente da nossa consciência desse mundo, quer ele exista ou não na realidade, coisa que não interessa muito afinal, o que interessa é ontologia. Será o mundo real? Interessa essa questão? Indivíduos como somos, utilizamos a realidade em nosso proveito, inventamos a realidade.
Noutro caso concreto em apreço, considera-se como factor negativo da oportunidade de se "inventar" um facto de "sequestro" de um jornalista a situação do pretenso sequestro de uma criança de cinco anos, isto admitindo que existe na consciência de uma maioria de indivíduos em Portugal que se aperceberam da notícia. Neste caso os formalistas condenam um pai adoptivo com base em juízos abstractos. Serão esses princípios, que formam a base do juízo, reais? A Lei é real? Será uma representação de um ideal? Ou uma aproximação muito falível desse ideal? Ou nem sequer se aproxima desse ideal se acreditarmos que o mundo como tal é apenas uma ilusão? Por outro lado se acreditarmos que o ser humano é intrinsecamente mau, como o nosso pessimista de serviço, Schopenhauer, tão bem o colocou, uma Lei emanada do homem (no sentido de humanidade mas sempre com h minúsculo) será sempre intrinsecamente má, longe dos reais valores éticos, da abnegação, da renúncia, da arte de atingir o nonumenal que passa pela arte de esquecer a Lei dos homens (ou apenas de esquecer, como louvava Nietzsche), uma Lei sempre errada, sempre conducente ao primitivismo, ao egoísmo, à maldade. Uma lei humana defenderá eternamente o mesquinho e vil egoísmo, enquanto o homem for homem.

Voltamos então ao ponto do comentário pedido: como comentar algo que é apenas virtual? Porque razão a invenção de uma realidade paralela é eticamente errada? Será errado promover um livro à custa da indignação alheia? Não acho. Tão egoísta é o burlador como o burlado caro Rui. Além disso que belas reflexões essa invenção de um real paralelo não suscitou?

Sentir-me-ei enganado? Claro que não, a realidade, sob que forma for, nunca nos pode enganar. Podemos mudar de ideia ao mudar a nossa representação, mas o engano como acto ético valorativamente errado nunca poderá estar presente numa representação do mundo, válida como outra qualquer.

E voltemos à criança, que no fundo é a única realidade que ainda está em contacto com a natureza íntima das coisas, próxima do estado natural, recém saída do uno criacional. Interessa-te Rui a felicidade de uma criança? A mim interessa e muito. É nessa felicidade que reside a esperança de um homem que pode vir a conhecer o caminho da eterna renúncia, longe da mesquinhez e do egoismo de ti, do Carmelo e de mim. Sem nos apercebermos...

E volto ao Nonnumenal depois desta digressão pelo "real", volto à música, que nos aproxima do infinito, a música e o amor como dizia o nosso pessimista de serviço. Faz-nos regressar à inocência criacional.

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