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14.12.07

Rigoletto no S. Carlos - o Canto 

Continuo, depois de dois dias de interregno devido a muito trabalho na universidade, a escrever sobre os cantores que passam pelo Rigoletto no S. Carlos em Lisboa, consegui agora uns minutos.
Esta é uma crítica a um estilo de canto, a uma escola e aos cantores, eles mesmos; sem esquecer que todos os defeitos a apontar surgiram com a complacência de um maestro sem qualquer categoria e que nem sequer rotineiro foi capaz de ser. O que nos trouxe todos os malefícios do canto lírico de escola italiana sem nenhuma das suas virtudes.

Todos os malefícios nenhumas virtudes
O canto lírico italiano tradicionalmente (e simplificadamente) vive entre dois pólos: a música e os compositores, que se queixam imenso dos cantores, e os cantores e o seu ego, que se queixavam dos compositores (vivos na altura e que entretanto morreram, apesar de estes lhes terem escrito música sublime) e dos maestros "puristas" (como o Abaddo) que "nunca respeitam os cantores e a sua expressão", mas que preferem fazer leituras das obras tais como os compositores as escreveram...

Uns querem fazer música, outros querem cantar e exibir os seus dotes vocais. De forma simplista eu diria que existe aqui uma tensão entre arte e circo. Quando um grande cantor reune a sobriedade para conseguir transmitir a música e se esquece dos seu ego atinge-se, no meu entender, um raro equilíbrio.

É evidente que esta tensão tem lados altamente interessantes, quando os cantores têm vozes de grande beleza, quando têm a arte da nuance, do apianando, ou da variação subtil da intensidade, quando dominam a arte da respiração, quando mudam de registo sem diferenças apreciáveis de timbre e de forma suave, quando atacam as notas agudas sem necessidade de apalpar terreno e fazer portamentos, quando conseguem dizer o teatro pelas notas da música, quando fazem belas cadências a propósito do ponto em que estas se inserem na dramaturgia, podem-se esquecer (e perdoar) certos tiques típicos do canto italiano: prolongar as notas terminais para além do razoável, dar notas na oitava acima do que está escrito para se mostrar que se é bom, inventar cadências onde não existem, etc, etc, etc...

O problema é que estes efeitos têm de ser feitos de forma lógica e sendo consequente com alguma tradição (a boa), a interpretação pretendida pelo maestro, a lógica global da obra e a encenação e direcção de actores.
Ter uma "encenação intemporal" e moderna e permitir que os cantores inventem paragens e cadências a despropósito, num estilo completamente ultrapassado e condenado pelo compositor, como no caso do Rigoletto em que Verdi deixou bem explícito que queria a obra respeitada e interpretada de acordo com a partitura tal como escrita originalmente, é um abuso, é incongruente, é despropositado, é pouco inteligente e mesmo tonto e, sobretudo, é anacrónico.

É o que aconteceu neste Rigoletto no S. Carlos. Não existe qualquer força motriz, não existe um devir torrencial para um desfecho fatal, aos cantores tudo é permitido, parar, arrastar a música, os tenores usam e abusam de cadências não escritas, e nem vale a pena dar exemplos, usam-nas em todos os pontos onde uma "tradição" anquilosada e desfazada do real sentido dramatúrgico colocou pontos "apropriados" à paragem: todas as notas sustentadas, notas acima do sol, notas a solo em que a orquestra deixa o cantor só mas onde o tempo não devia ser interrompido. Onde, por exemplo, em Wagner a partitura é sagrada, em Verdi todo o assassinato é permitido. Deixamos de ouvir o compositor e ouvimos umas cadências medíocres escritas e cantadas por cantores de segunda e terceira categoria. No "La donna..." do terceiro acto assiste-se geralmente a uma arrepiante sucessão de cadências não escritas e de notas dadas uma oitava acima apenas para brilho da vaidade de cantores de categoria duvidosa. Um brilho fátuo, nesta interpretação em apreço, pois os cantores que cantaram o Rigoletto em Lisboa não têm sequer capacidade para brilhar nestes artifícios que celebrizaram um Caruso. O mesmo Caruso que repetia a tal ária cinco (e mesmo mais) vezes e se tornou uma imagem de marca de um certo estilo de canto.
Felizmente parece que Caruso, ao contrário da maioria, conseguia brilhar no malabarismo vocal. Entretanto temos miúdos de vinte e tal anos como Saimir Pirgu e Richard Bauer (um pouco mais velho) tenores que apenas nos fazem dar gargalhadas pelo ridículo em que se metem. Cantando sem nuances, sem composição teatral, sem estilo, esfarrapados para dar as notas, estes tenores acabam como caricaturas de tudo o que o canto italiano nos trouxe de mau ao longo de anos e anos. Infelizmente não trazem nada do lado positivo, não têm o sentido cénico, não têm matizados: Pirgu canta tudo em fortíssimo do princípio ao fim, Bauer nem consegue cantar no agudo sem a voz se partir e nunca conseguiu manter a afinação. O exagero leva ao descontrolo vocal e Pirgu, embora tenha uma voz interessante do ponto de vista tímbrico, acaba a dar fífias no si agudo com a voz a partir-se, Bauer nem sequer consegue dar as notas, embora tente (eu diria que é tão mau que nem sequer tem qualidade para atingir a fífia...). A respiração dos cantores é deficiente, arfejam nos pontos errados por necessidade e não por inteligência, arrastam os tempos, prolongam as notas desnecessariamente, acabando a massacrar os ouvintes com exageros de mau gosto e da mais pura e vã exibição de vaidade sem conteúdo. A direcção musical de Polianitchko, complacente e incompetente, não põe ordem, não traz directivas, tudo permite, não realiza trabalho, não produz. Nem o lado belo do canto se afirma, nem a música anda para a frente.
Quando escrevo sobre os tenores poderia dizer o mesmo sobre os sopranos, as Gildas de Chelsey Schill e de Carla Caramujo. A primeira é um erro de casting, a sua voz não tem cor para Gilda, é um soprano ligeiro (muito verde) que se perde muito nos recitativos, também por inépcia do maestro e que apenas quando canta em forte no registo médio consegue mostrar algum encanto. A segunda, Carla Caramujo, foi, no dia a que assisti, uma jovem muito nervosa. A falta de direcção pode causar catástrofes mas a Carla Caramujo conseguiu, felizmente, ir dominando o nervoso de uma estreia no papel perante o público do S. Carlos e mostrou dotes vocais e personalidade que fazem dela uma voz natural para o papel. Teve a força de não se deixar perder na total ausência de direcção musical de Polianitchko. Ambas cairam também no mesmo erro de anacronismo dos tenores, em menor escala, apostando em cantar notas não escritas pelo compositor.

O Rigoletto de Agache foi péssimo: rouco e sem voz, com vibrato entre o caprino e o bovino, sem domínio da respiração, foi um homem cansado sem chama nem cor, teatralmente desastroso. A sua cena ao descobrir Gilda no saco foi de uma insensibilidade desastrosa. Só faltou dizer que depois ia beber um copo para esquecer... A cena magistral escrita por Verdi para o segundo acto foi vandalizada por uma articulação indiferente do lá ri lá lá... Bola preta.
Já Leo An mostrou uma voz muito mais bela e melhor presença cénica mas também pouco convincente. A sua interpretação musical do papel principal foi, mais uma vez, indiferente, limitando-se a enunciar as notas e não a cantá-las com alma e linha.
Malgorzata Walewska foi uma Maddalena em que apenas se ouviam os graves, e roufenhos.

O momento mais belo da ópera, o quarteto do último acto, foi desastrosas nos dois elencos. Cada um para seu lado, sem linha, sem se escutarem uns aos outros e sob uma batuta incompetente e sem noção do tempo, foi uma cacofonia irritante e um verdadeiro anti-clímax.
Vadim Lynkovskiy realizou um Sparafucile indiferente e sem graves.
Marullo de Michael Vier foi convincente e poderoso, gostei francamente.
O Monterone de Luís Rodrigues foi feito aos gritos e sem nuance ou composição.
Os restantes cantores cumpriram de forma mais ou menos indiferente em papéis pequenos em que se notou sobretudo a ausência de trabalho musical e de direcção do maestro.
O coro esteve desastroso nos dois dias a que assisti, no primeiro pior, no segundo esteve infernal na cena da tempestade, feio, desafinado e sem nexo. No primeiro dia a cena do baile no primeiro acto parecia um coro de bêbedos uivantes, tal o desconcerto. No segundo dia a coisa melhorou um pouco, mas a impressão que fica é de um todo muito mal ligado e muito pouco consistente.

Todos os malefícios do canto italiano, nenhuma das suas qualidades, falta de sentido de linha e da frase musical, falta de progressão dramática, interpretações indiferentes, respiração sem nexo, paragens e cadências despropositadas, ausência de beleza vocal. Nunca se atingiu o bom nível, o melhor foi atingido em algumas partes sofríveis de Caramujo (que pode fazer muito melhor) e de Schill (que não tem voz para mais).

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