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20.3.07

O drama de um maestro maior do que o tempo 

O tempo é o motor do amadurecimento, da razão, sem tempo nada se pode fazer, tempo é a argamassa com que um maestro molda uma obra. Uma sinfonia de Mahler como a sexta, Trágica, é feita de tempo, o tempo necessário para percorrer os grandes arcos, os espaços infinitos dos céus sobre os Alpes e do Tempo da Vida e da Morte.
As montanhas que esta sinfonia evoca sempre que a ouvimos são também as montanhas de um Tempo que já não volta, a Morte levou Mahler, as suas filhas, a sua mulher, levou as suas angústias e as suas superstições, o tempo do relógio eliminou a terceira pancada no último andamento, vítima ela também de outro Tempo, esse que Mahler queria suspender. Montanhas dos Alpes para onde partirei dentro de pouco tempo para passeios pelos degelos da Primavera, para música e para mergulhar, eu também, no Tempo que me é dado pressentir através das prquenas alucinações da Eternidade que Mahler nos deixou, como diria outro senhor do Tempo: "Eternidade, essa palavra terrível"...
Zilm é um grande maestro, ele próprio é fisicamente enorme. Zilm gosta dos grandes arcos sinfónicos: Mahler é, para ele, o elemento onde se sente em casa, e a Trágica, sinfonia mais do tempo que do espaço, uma das formas de tocar a eternidade e o sagrado, suspendendo por instantes o tal Tempo que Mahler queria suspender também na sua vida, fugindo da morte quando caminhava demasiado conscientemente na sua direcção.
Realizando uma concepção sombria, num fluxo contínuo paradoxalmente recheado das hesitações inerentes ao sofrimento, Zilm transportou-nos por uma viagem para além do tempo. Regressando sempre às origens, relendo os manuscritos e as notas originais de Mengelberg e de Walther, Zilm estuda até à exaustão a obra antes de entrar em contacto com uma orquestra.
Desta feita o encontro decorreu nos seis dias de ensaio que teve com a Orquestra Nacional do Porto, reforçada de muitos elementos para abordar Mahler na Casa da Música, Sábado passado. Eu pergunto aos programadores e aos directores: será que seis míseros dias são suficientes para preparar uma obra maior do que o Tempo?
Zilm fez o possível, fez até o impossível, a Nacional do Porto correspondeu com o possível. Seis dias para montar uma obra que é uma peça de resistência do repertório máximo de uma orquestra, provavelmente pela primeira vez, exigiriam mais da orquestra, até pela dimensão sagrada da obra que transcende um trabalho vulgar de funcionário, exigindo a dimensão máxima de um artista: o lado trágico; no fundo a dimensão máxima do que significa o Tempo para os mortais.
O resultado foi bom, poderia ter sido excelente se o tempo fosse outro. A acústica pobre e muito fria da Casa da Música, que engole as cordas da orquestra ao nível de um poço sem fundo, poderia e deveria ser muito mais trabalhada para o equilíbrio ser maior. O andamento lento, com uma das mais belas melodias de todos os tempos foi a maior vítima desse tempo escasso que fez perder o sentido do Tempo que Mahler nos queria transmitir.
Que belas ideias destruídas por falta de concentração e de categoria nos violinos distraídos nas entradas a dar notas erradas em passagens fáceis onde se notou de forma aguda o pouco tempo de ensaio da obra que, se é difícil para uma orquestra de nível mundial, será transcendente para a ONP com meia dúzia de ensaios.
O resto até foi bom, algumas vezes muito bom. Acentuações muito belas na entrada incisiva no primeiro andamento. Coerência dos metais, com um belíssimo naipe de trompas olimpicamente dirigido por um solista brilhante e empenhado. Madeiras quase perfeitas, com uma ou outra excepção e com umas poucas distracções no primeiro clarinete. Percussão magistral nos tímpanos mas golpes de martelo pífios devido ao instrumento ridículo empregue que mais parecia um martelinho de S. João do que um percutor de força telúrica que esmaga e destrói ("um som poderoso e curto de grande volume, não ressonante e não metálico"), que faz parar o coração. Chocalhos fora da sala a conferir um efeito mágico. Uma obra que quase soçobrava por um primeiro trompete desastroso que, mesmo quando não errava, era vulgar.
Notou-se que a ONP tem carisma, tem corpo, tem força para voos mais altos, mas o tempo foi o grande inimigo da obra, o mesquinho tempo do relógio que não concedeu mais ensaios e forçou Zilm a atacar apenas os pontos cruciais da obra nos ensaios, descurando obrigatoriamente as passagens mais fáceis que, paradoxalmente ou talvez não, resultaram sempre pior.
Zilm, mercê da sua géstica sóbria que é eficaz e sugestiva na sua economia de movimentos, mercê também da sua atenção ao conjunto e ao detalhe, aglutinou tudo, o que estava perfeito e o que resultava imperfeito. Zilm foi conseguindo produzir um som coerente que culminou nas passagens dos solos de trompa na belíssima cantilena do andante: que poesia, que legato, que brilho sonoro obtido pelo solista.
Um concerto que no seu momento mais trágico, o desolado final funéreo, não teve o respeito pelo tempo necessário para a meditação transcendente do silêncio final, interrompido, este também, por espúrias palmas precipitadas, fora de tempo e fora do Tempo.
Um concerto que, apesar do pouco tempo de preparação, acabou por ser um concerto fora do nosso Tempo, um concerto cheio de imperfeições mas também muito belo pela concepção sempre sombria, trágica e muito poética de Zilm. Saí a pensar: este maestro é muito maior do que o tempo que lhe deram.


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