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16.2.07

Ciclo Médias Orquestras Mundiais 

O Ciclo das Grandes Orquestras Mundiais da Gulbenkian prossegue. No Coliseu, noite de terça feira, 13 de Fevereiro a Orquestra de SWR de Baden Baden e Freiburg, uma orquestra de categoria média apresentou-se no Coliseu. O programa anunciava as 21h como início do concerto mas inexplicavelmente e sem qualquer aviso ou pedido de desculpas a orquestra entrou em palco às 21h16m, o maestro às 21hh18m e o concerto a sério só começou às 21h20m, sem qualquer aviso ou pedido de desculpas. Indesculpável, deselegante e mal educado, muito pouco habitual numa "grande orquestra mundial" e ainda por cima alemã. Só por esse motivo o qualificativo de "grande" estaria logo à partida comprometido.

Sylvain Cambreling, um maestro habituado aos fossos de ópera, foi director em Frankfurt, modificou a ordem do programa, e parece que bem, Feu d’artifice de Igor Stravinsky é uma boa peça de abertura, ou de fecho, e não uma peça de miolo de programa, aliás muito bem construído e com base numa estética de início de século XX, entre o ultra-romantismo e a modernidade.
Uma obra cheia de vigor e energia foi lida por Cambreling, como em geral no resto do concerto, de forma superficial. Energia não é tudo, e se aquilo foi rápido também foi confuso, impreciso, cheio de erros rítmicos, falhas de coordenação entre os naipes, ataques antes e depois do tempo, é evidente que os erros não foram estrondosos, mas se os fogos de artifício fizeram muito estrondo foi sempre com cores pálidas, o pior do concerto.

Prélude à l’après-midi d’un faune de Claude Debussy é uma obra prima de um dos compositores maiores de todos os tempos, musicalmente de longe a melhor obra do programa. Infelizmente a flauta que abre com um deslumbrante solo:



confundiu o "doce e expressivo" com "vibrando como um bode", como a intérprete é alemã talvez tenha sido um erro de leitura do francês, o que é certo é que em vez de uma linha puríssima, etérea, tivemos um vibrato horrendo. Cambreling parecia deliciado, a coisa parecia que tinha descido de Grande Orquestra Mundial a orquestra do bairro de Freiburg, tipo mini orquestra de província. Felizmente a coisa continuou melhor, os outros sopros estiveram muitíssimo bem, infelizmente os violinos, primeiros e segundos, não apresentaram a sonoridade refinada das violas, violoncelos e contrabaixos, foram ao longo do concerto um naipe inseguro, pouco maduro e com diversos erros que afectaram a coesão das obras, os próprios pizzicatos saíram quase sempre harpejados. A coesão geral da orquestra nas entradas também não foi muito exacta. Cambreling tentou uma interpretação refinada em Débussy, assim parecia pela géstica, mas o resultado foi apenas mediano, uma leitura pouco intensa, pouco erótica, quer pelas sonoridades, quer pela leitura geral mais aparentada a uma costura de trechos ensaiados por blocos do que por uma fluxo contínuo saltando, imperceptível, de episódio em episódio.
Michael Zilm à frente da Metropolitana de Lisboa, pese a diferença de orquestras, foi muito superior como intérprete do que este Cambreling.
Acabou tudo em desgraça, tal como tinha começado, com o pizzicato final nas cordas graves em simultâneo com o ataque das harpas, no penúltimo compasso, a sair num horrível harpejo, simplesmente arrepiante no pior sentido.

Dagmar Peckova é um meio soprano com voz desigual, não tem potência igual em todos os registos e a sua voz não tem o poder para encher o coliseu, felizmente conseguiu com inteligência adaptar-se ao discurso de Alexander Zemlinsky nas Seis melodias sobre poemas de Maurice Maeterlinck, op.13. Música injustamente esquecida e de grande qualidade. O discurso poético foi sublinhado com invulgar inteligência pela cantora, a leitura poética com a ênfase nos pontos chave, o fluxo do seu legato, a sua respiração, a construção das frases de forma a atingir o clímax nos pontos de tensão fizeram deste momento o melhor do concerto. O maestro, bom acompanhador, habituado à ópera, conseguiu neste ponto do programa esquecer-se de tentar ser "um grande maestro mundial", e mais solto e descontraído no pódio, entregou-se a um domínio superior da orquestra que conseguiu encantar com a sua densa sonoridade e pelo recorte da harmonia luxuriante e erótica de Zemlinsky. Apesar de um vibrato demasiado pesado nos finais de frase das notas mais graves de Peckova, que sendo fabricado e não natural, acaba por ser de mau gosto, gostámos muito desta obra que acabou por salvar o concerto.
Peckova além disso tem graves impressionantes, densos e escuros que encantam escutar quando não resolve aplicar o vibrato no final das notas.

Pelléas et Mélisande de Arnold Schönberg é um obra injustamente classificada como magnífica, subtil, brilhante, obra prima e o mais a sete. É, para mim, uma obra mal conseguida, repetitiva, excessivamente carregada de contraponto que a torna pesadíssima, um fruto tardio do ultra romantismo serôdio. Tenta explorar as ideias do motivo condutor de Wagner, mas sem a energia, a subtileza, o saber dar e tirar no ponto certo do génio alemão, repetindo até à exaustão e ao cansaço os mesmos temas sem capacidade de renovação, recorrendo ao cromatismo mas sem abandonar a tonalidade. Tenta a efervescência orquestral de Richard Strauss mas sem o engenho orquestrador do austríaco. É uma coisa híbrida, maciça, com uma orquestra sobre dimensionada para as capacidades de orquestrador de Schönberg, 18 metais, 17 madeiras, 4 harpas e mais 6 percussões. Um tema em ré menor que se repete centenas de vezes, uma obra mastodôntica. É evidente que tem belíssimos momentos orquestrais, que o compositor consegue criar massas e texturas aqui e ali a romper a monotonia, mas a impressão geral é de massa informe de contraponto sem finalidade, uma obra de juventude, longe da precedente Noite Transfigurada, essa sim uma obra de altíssima inspiração. O final quase salva a obra com a meditação sobre a morte de Melisande, em que finalmente Schönberg mostra do que é capaz, e veio a fazer no futuro.
No que seria o prato de resistência Cambreling deu tudo o que tinha, mas não conseguiu inventar o que não tinha, nem em recursos orquestrais, nem na partitura, nem em si próprio. A interpretação soou de novo a uma colagem de momentos, é certo que a orquestra trabalhou bem nos pontos mais solísticos, os clarinetes estiveram brilhantes, o naipe das trompas foi simplesmente genial, oboés e fagotes em altíssimo plano, flautas um pouco abaixo, o primeiro viola foi poético, com uma sonoridade de grande nível, os naipes de cordas graves estiveram soberbos, mas os trombones se estiveram bem na produção do som, falharam claramente na precisão dos ataques. Faltou também equilíbrio geral de sonoridades, as cordas foram muitas vezes suplantadas pelos sopros, penso que seria necessário reforçar o escasso naipe de 15 primeiros violinos e 14 segundos para equilibrar um pouco os números dos sopros, mas um bom conjunto de violinos poderia dar maior coesão ao conjunto, o que não aconteceu na terça feira.
A interpretação de uma obra destas é sempre muito complexa, creio que apesar dos defeitos apontados o maestro conseguiu trazer para fora do poema sinfónico de Shönberg alguns aspectos interessantes, sobretudo nos efeitos sonoros, e percebeu melhor esta obra do que o Debussy da primeira parte.

Um concerto médio de uma média orquestra mundial.

P.S. Li no Público uma crítica tão ao lado do que aconteceu no concerto que a única coisa que me ocorre é sugerir ao jornal que pague ao jovem crítico, embasbacado com uma orquestra melhor do que a sinfónica portuguesa, uma viagem de estudo para ouvir umas orquestras, qualquer cidade alemã serve, mas Dresden e Leipzig seriam bons pontos de partida, até Bamberg seria bom, e nem falo de Berlim.
No caso da Berliner sugiro mesmo uma voltinha ao próximo festival de Páscoa de Salzburg, pode aí ouvir a Berliner em mais um Ouro do Reno, faltam seis semanas. Segue o texto do Público para se perceber a diferença de perspectiva. Já agora: o novo formato on-line do Público é miserável, tal como miserável é a orientação das páginas de cultura do mesmo jornal, em papel e on-line. O artigo de página inteira sobre o "Pior Português de Sempre" foi rasteiro: um arrazoado repetitivo sem assunto que se arrasta por uns dez mil caracteres, uma vergonha jornalística. Um tema que trabalhado de forma mais irónica e inteligente teria dado uma boa peça de jornalismo.



O mundo numa grande orquestra, límpida, rigorosa e profundamente inspirada
15.02.2007

Uma alteração ao programa fez o Feu d"artifice de Stravinsky passar para primeiro lugar. E que fogo de artifício! A peça não chega a cinco minutos, e o maestro Sylvain Cambreling também não se pôs com cerimónias. "Despachou" Stravinsky com a pujança que uma obra destas exige - uma música em que a justaposição de elementos díspares, mais do que desenvolver ideias, nos atira aos ouvidos uma fúria de sons e cores, aparentemente incoerentes, mas com um grande impacto. A peça, contemporânea do cubismo na pintura, vive de um efeito de choque e de surpresa. Foi boa opção passá-la para o princípio do concerto, mas terá passado um pouco despercebida, porque o público ainda estava a aquecer as cadeiras.
Seguiu-se o efeito contrário - da surpresa e do choque passou-se para o reconhecimento, mais confortável, do famosíssimo e justamente aclamado Prélude à l"après-midi d"un faune de Debussy, uma obra inebriante e envolvente que a orquestra da SWR revelou de forma muito segura e competente, mostrando uma secção de cordas especialmente certeiras e com um som de conjunto que encheu o Coliseu.
Entrou de seguida Dagmar Peckova, meio-soprano checa, com uma voz onde se centraram quase todas as atenções. Quase, porque as Seis melodias sobre poemas de Maeterlinck, de Alexander von Zemlinsky, são peças em que a orquestra tem um papel muito importante, que não se confina a acompanhar o canto. Pelo contrário, a grande dificuldade de cantar estas Seis melodias resulta precisamente da voz ter de emergir de um mar de sonoridades que carregam tantos sentidos como as palavras que a voz nos traz. Peckova consegue passar por uma variedade de timbres e tem um inegável sentido dramático, que valorizou muito a obra de Zemlinsky e disfarçou uma certa tendência da cantora para alguns agudos excessivamente metálicos. Mas esta obra é um desafio infinito para qualquer meio-soprano, e Peckova esteve, no cômputo geral, muito bem, porque muito próxima da orquestra (o que era fundamental) e com belos timbres escuros e graves.
Muitos espectadores estiveram irrequietos, mas não chegaram a prejudicar a música. Ao intervalo puderam tomar o seu café ou dar dois dedos de conversa. E depois desse momento indispensável em qualquer evento social que se preze veio uma arrasadora confirmação de que estávamos perante uma grande orquestra, como promete este ciclo organizado pela Gulbenkian (e co-financiado pelo mecenato de um banco). É que a Orquestra de Baden-Baden tocou fabulosamente o Pelléas e Melisande de Schönberg, uma espécie de poema dramático sem palavras, mostrando de uma forma límpida, rigorosa e profundamente inspirada todas as subtilezas desta magnífica obra sinfónica. Todos os músicos estiveram embrenhados na excepcional música de Schönberg, até ao âmago. É assim mesmo, uma grande orquestra.

Pedro Boléo

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