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19.7.06

Poema Final da Clepsydra 

Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas,
- Fulgurações azuis, vermelhos de hemoptyse,
Represados clarões, cromáticas vesânias -,
No limbo onde esperais a luz que vos baptize,

As pálpebras cerrai, ansiosas não veleis.

Abortos que pendeis as frontes cor de cidra,
Tão graves de cismar, nos bocais dos museus,
E escutando o correr da água na clepsydra,
Vagamente sorris, resignados e ateus,

Cessai de cogitar, o abismo não sondeis.

Gemebundo arulhar dos sonhos não sonhados,
Que toda a noite errais, doces almas penando,
E as asas lacerais na aresta dos telhados,
E no vento expirais em um queixume brando,

Adormecei. Não suspireis. Não respireis.

Camilo Pessanha

E depois deste poema, oriundo do extremo oriente, parto para o Japão amanhã de madrugada. Como em todas as viagens que se prezam o tempo da partida é a alvorada. Regresso marcado para o início de Agosto e logo a seguir Bayreuth.
Itália e Texas ficam para depois...
Se conseguir postar impressões assim farei, senão até um destes dias, algures no tempo da vindima.

17.7.06

Cézanne volta a Aix-en-Provence 

“Quando on est né là-bas, c´est foutu, rien ne vous dit plus” Paul Cézanne, Janeiro 1838-Outubro 1906



Eu não diria tanto, mas quem passar por Aix até 17 de Setembro não deve perder a excelente exposição no Musée Granet (com 130 obras vindas de toda a parte do mundo) comemorativa dos 100 anos da morte de Paul Cézanne, filho da Provence.

Sofia

11.7.06

Soube agora - O Energúmeno 

I Solidariedade

Seabra foi condenado em primeira instância no processo que Rui Rio lhe moveu por o "cronista" lhe ter chamado energúmeno.
O processo ainda não terminou, Seabra recorreu, mas devo dizer que esta condenação é mais uma vergonha para a justiça portuguesa. Tenho criticado muito Augusto Manuel Seabra, mas passados alguns meses desta putativa condenação em primeira instância, e talvez atrasado, venho afirmar aqui que Seabra é um homem corajoso que não merecia esta condenação (apenas prévia) por muitas e variadas razões, a primeira é o direito à crítica livre que Seabra não exorbitou, a segunda é que parece que Seabra provou em tribunal que Rui Rio corresponde ao epíteto numa das suas variadas significâncias: homem obcecado que provoca desacatos, exaltado, endemoninhado, desnorteado.
Creio que em crítica se pode perfeitamente afirmar que alguém perdeu o norte, é uma questão de opinião pura que se pode e deve exercer livremente no "espaço público".
Fica aqui a solidariedade da qual Seabra certamente não necessita.

II Dicção e pronúncia

Entretanto, e naturalmente, continuarei livremente a criticar o policrítico do "O Público" na medida em que a sua incapacidade de crítica musical se continuar a manifestar, e como lhe devia esta cá fica o reparo:
Se Seabra não sabe o que é um trombone no Ouro do Reno já é normal, mas ao dizer que Willi Hartmann (Loge na mesma encenação) tinha má dicção cometeu um grosseiro erro. Willi Hartmnann tem a dicção (melhor dizendo pronúncia) do alemão que a sua região natal lhe deu, certamente diferente da região de Berlim mas não menos válida. A sua dicção é aliás notável compreendendo-se tudo o que dizia no Rheingold com uma pronúncia claríssima de Colónia, inusitada é certo para ouvidos menos experientes, mas muito cracterística e sem concessões ao hochdeutsch ou standarddeutsch...
Fica aqui o reparo ao pluricrítico.


Um texto à Blog - Flauta Murcha 

Este blog é a negação de qualquer blog, textos gigantes em lugar de posts minimalistas. Muito tempo inactivo, textos de reflexão longos e desinteressantes para a maioria dos mortais.
Enfim cá vai um post à blog, porque depois do Ouro do Reno de Aix-en-Provence não tenho paciência para mais:

Uma Flauta Murcha

Em Aix lá tive de escutar mais uma Flauta Mágica do muito que se tem de ouvir para aí para se cumprir o calendário Mozart. Um encenador que não sabe nada do assunto e um maestro cheio de maneirismos estilísticos mas que não tem capacidade para dar energia e força à música de Mozart fizeram desta Flauta Mágica uma seca execrável e lentíssima. Um espectáculo mediano com cantores fracos, um Sarastro incapaz nos graves e uma Rainha da Noite com timbre entre o anasalado e o apito, e mesmo incapaz de emisão aguda no final da primeira ária. Um Tamino agradável e um Papageno aceitável compuseram a coisa.
Uma Mahler Chamber Orchestra totalmente desaproveitada com instrumentos modernos misturados com abomináveis trompas e trompetes naturais que os instrumentistas não dominavam. Uma estreia medianíssima mas muito pouco aceitável para os preços de Aix (mais de 200€) num espectáculo decepcionante. Total 12 valores.


Água Fogo Ar Terra 

Ouro do Reno em Aix-en-Provence. Wagner, compositor e autor do poema. Ficha no final.

Uma encenação da ante jornada do Anel do Nibelungo, a segunda que vi este ano e mesmo antes de Bayreuth que verei em Agosto, uma encenação minimalista, com toda a gente de fato e gravata e vestido de noite, roupa actual para o drama eterno. Tudo girou em torno da luz, da cor, do vídeo projectado numa imensa sala em que se transformou o palco do teatro do antigo palácio dos Arcebispos de Aix.

Seis harpas fora do fosso, duas no palco. Harpas que se ouviram (mesmo) criando uma tessitura sonora verdadeiramente notável ao final do "Ouro" e criando um ambiente sonoro absolutamente fantástico, quase irreal. Uma orquestra completa (com um contrabaixo a menos do que pede a partitura). Wagner por ele mesmo como obra intemporal, algures num tempo sem fim e sem lugar, presente como eterno. Uma encenação em abstracção total, feita espaço, espaço preenchido pelos cantores actores, pela cor da luz e sobretudo pela música espessa, densa e mágica de Wagner.

Uma encenação que dirime os paradoxos do tempo, do espaço e do mito de forma equilibrada e subtil, utilizando a música como traço unificador, como elemento cénico absoluto. Arte total no tempo e no espaço, no canto, no teatro, na cena. Uma encenação para quem ama o teatro puro e a música até aos limites do inatingível naquele ponto de fuga onde o humano deixa a mortalidade e aspira ao divino.

O prelúdio orgânico da obra vê a água como elemento criador e motor do mundo, "o espírito de Deus pairava sobre as águas", Wotan sonha dormindo sobre três cadeiras dispostas em fila, único elemento dispersivo da encenação, e o Reno criador e matricial flui gerando as suas filhas, Alberich e o ouro, ouro luminoso feito apenas de luz. Ouro do Reno. Alberich surge do sonho criador, pesadelo mágico do Wotan adormecido. Vem do trabalho, um trabalho provavelmente frustrante, fato completo de corte duvidoso, gravata de nó puxado para baixo, barba por fazer, sobretudo desapertado.
Encontra as ninfas e o resto sabe-se, Duesing é feio, o actor que faz de Alberich poderia ser um "sem-abrigo" magro, é penoso vê-lo a esforçar-se por fugazes instantes de prazer com uma qualquer filha do Reno. Finalmente renuncia ao Amor e Abraça o Ouro, é nesse momento que arranca o capachinho que cobre os parcos cabelos e se revela, a calvície disfarçada é reveladora do seu estado de espírito. Alberich torna-se ele mesmo, ao arrancar o inútil adorno, o elemento dual e motriz de todo o Ring, afirma-se e ganha vida, evolui. Subtil efeito que diz muito das qualidades do encenador.

Lindíssima a cena de transformação, talvez o momento mais conseguido de toda o trabalho de Braunschweig. A água do Reno vai-se diluindo nas nuvens do céu de Wotan, que ainda jaz adormecido mas presente em toda a cena, a face descarnada de Duesing (que é branco), surpreendentemente bela na sua fealdade, empática na sua desgraça, surge em plano projectado no fundo do palco e, progressivamente, vemos no seu olho esquerdo algo estranho, azul profundo, a sua face transforma-se e surge a cara de sir White (Jamaicano e preto), Wotan, negativo branco de Alberich, Schwarz Alberich - Licht Alberich, como Wotan nos dirá muito mais tarde numa jornada quase definitiva, algures para 2008. Um Wotan negro (simbolicamente) transformado a meio da música de transformação num Wotan de luz (simbolicamente), o primeiro homem branco o segundo homem preto. Simbólico e deslumbrante pelo sublinhado untuoso, coeso, ambíguo em toda a sua dualidade magistral, numa sonoridade opulenta. Neste ponto as cordas atingem, sobretudo as graves, o paroxismo do ideal final da orquestra. Rattle demasiado lento na pré-estreia no domingo (2h45m), acusado por toda a crítica de demasiado elaboração na construção do som; como se quisesse responder às críticas (na Alemanha) pela sua displicente escolha de repertório e ligeireza nas escolhas musicais para aquela que se reclama de ser "a melhor orquestra do mundo"; torna-se mais solto na estreia de terça (2h38m). A orquestra com uma concentração absoluta e um entusiasmo transbordante transforma a cena de forma transparente, mas sem os excessos métricos de Boulez, palpitante mas sem excessos sonoros. Único defeito: este momento de passagem da primeira para a segunda cena é tão belo, que quase se deixa de pensar no teatro, passamos a um estado de celebração mística que nos tira da realidade.

A crítica internacional atacou muito o despojamento cénico de Braunschweig, o homem de Estrasburgo fez do fogo - fogo, da água - água, piscina cavada no palco para o Reno, nuvens nos deuses, farda de comissário do ar para Donner, Loge o Semi-Deus dual entra em palco num vestido de noite, rouge e baton: a inteligência e o poder destrutivo, o calor e a destruição, homem-mulher, malvado e ingénuo, Loge... enfim.

Se esquecermos toda a ganga prévia, a encenação é antes de tudo a compreensão absoluta da obra e uma declaração de amor, sem esquecer o sentido crítico, à capacidade cénica da música de Wagner, sem adereços, sem efeitos especiais, actores em cena (e que direcção de actores), imagens fortes. Sem nunca impor visões sobre o texto, que tudo diz, ou sem subalternizar a música, que ainda diz mais. Fogo no fogo, luz na luz, água na água, ar no ar, terra na terra; ainda hoje e nas duas jornadas seguintes.

Os deuses acordam, Fricka chama Wotan à realidade, Freia está em risco. Wagner fala por Fricka "se fossem as mulheres a organizar o mundo" nada de intrigas, de trapaças sujas, nada de hipotecas vis, nada de reféns amados e sacrificados ao poder, a ganância dos homens pelo poder... ah! como tudo seria bom se deixassem as mulheres tomar as decisões!
Entram dois gigantes de sobretudo com bom corte, nem seriam empreiteiros da construção civil mas antes administradores de uma grande corporação internacional que dirigiu a empreitada do castelo dos Deuses: reclamam o pagamento, levam Freia como penhor, enquanto não ganham nada de melhor...
Loge e Wotan descem aos abismos de fogo e treva onde Alberich, com um dólman de ditador militar, algures entre Hitler e uma farda da América Latina, escravizou os gnomos de Zurique: Nibelungos de gravata e boné, guardas privados de um banco com colete à prova de bala. A serpente é representada pela projecção de uma gigantesca boa no grande plano da sua pele em convulsão. As transformações musicais para a terceira e quarta cenas são pautadas pelo único senão desta realização: anémicas, descoordenadas, amplificadas, sem credibilidade; as bigornas são uma pálida imagem das fornalhas escaldantes e das oficinas subterrâneas dos nibelungos ferreiros...

A maldição de Alberich surpreende pela sua carga feroz e pelo infinito desengano. Pequena a voz, de Duesing, cresce pela sua capacidade de interpretar o papel, pela sua presença em palco e o próprio Wagner mostra aqui toda a sua maestria ao nunca cobrir as vozes e a inteligibilidade do texto, mesmo nos pontos mais inflamados, a orquestra arranca brutal exactamente no tempo certo para o Apocalipse final.

Wotan tem olho de vidro e um longo pau na mão. Mais ninguém exibe símbolos, o martelo de Donner é apenas simbólico e invisível.

Erda surge mágica e o tempo pára, a cantora sueca Anna Larsson é muito bela, altíssima, descalça é mais alta que o poderoso Wotan de sir White. Credivelmente percebe-se o amor entre o Supremo e a Terra, terra na terra e nas cores terrosas que engendrarão a Valquíria de Wotan e Erda entre esta e a jornada seguinte. O Crepúsculo é anunciado, clímax suspensivo na sua contradição dual e dialéctica. O mundo está em ruptura, a máquina do tempo não pára, a Natureza violada pelo acto inicial e criador de Wotan, que arrancou o ramo do Freixo do Mundo e perdeu o olho esquerdo para beber na Fonte da Sabedoria, Homem vivendo e interferindo com o seu mundo, destrutivo na sua afirmação de poder e correndo para a sua perdição inelutável. Um momento mágico para somar a esta jornada inexcedível.

Não há efeitos especiais, Donner invoca uma explosão de luz mas nenhuma ponte física, o arco íris são sete degraus que sobem num azul pálido e desmaiado que percorreu toda a encenação. Loge sai em fogo e abandona o convívio dos Deuses. A encenação, luz, vídeo e cenografia estão sempre a par da música, coordenação perfeita! As ondinas excluídas do comércio divino, sem ouro mergulhadas nas trevas, surgem espreitando pela janela que está agora virada para o exterior.
Os deuses sobem os sete degraus do palácio, paráfrase do arco íris, em quadrados mágicos. A música é quadrada na sua solenidade final. Os Deuses já entraram no Walhala, acabam encostados ao fundo do palco, não são mais do que espectros, ficam congelados até o Crepúsculo, fantoches de uma acção demasiado transcendente para a sua compreensão. Wotan e Fricka, únicos elementos destacados no imobilismo final, as filhas do Reno emprestam o contraponto musical que dá o toque de génio à música e ao símbolo: a pompa dos soberanos é feita sempre sobre o sofrimento de alguém...

Encenação de contenção notável, simples, sem querer distorcer e dar mais significado ao que existe. Equilíbrio entre teatro e música sem concessões num palco de grandes dificuldades técnicas (sem profundidade, sem maquinismos, num teatro ao ar livre). Não atingindo o plano mágico e irreal, talvez anacrónico no seu conceito romântico, do sonho teatral de Wagner mas, também, não o esquecendo. Fazendo pensar. Deuses e homens, socialismos e capitalismos, explorados e exploradores, todas as leituras são possíveis mas a grande leitura ultrapassa todas estas: o Homem encaixa em toda a sua plenitude na obra de Wagner. É talvez o maior feito do génio de Leipzig: toda a interpretação é possível pela abrangência criativa. O Homem caminha para a sua destruição pela sua própria vontade de poder, atravessando todas as ideologias, todas as filosofias. O Homem de Schopenhauer vai nascendo a pouco e pouco ao longo do Ring e no final apenas a renúncia traz a paz perdida e representa o verdadeiro retorno à natureza, ao inominável, ao nonumenal. Todos os conflitos são efémeros, apenas as águas do Reno poderão lavar e repor o mundo nos seus eixos, mas isso vem longe.

Orquestra Filarmónica de Berlin (20), Simon Rattle (17) director musical, Stéphane Braunschweig (18) encenador e autor do vídeo (19).
Thibault Vancraenenbroeck, figurinos (17) e colaboração vídeo.
Luz: Marion Hewlett e Patrice Lechevallier (19)

Wotan: Sir Willard White, 18
Donner: Detlef Roth, 15
Froh: Joseph Kaiser, 14
Loge: Robert Gambill, 18
Fasolt: Evgeny Nikitin, 18
Fafner: Alfred Reiter, 16
Alberich: Dale Duesing, 17
Mime: Burkhard Ulrich, 18
Fricka: Lilli Paasikivi, 18
Freia: Mireille Delunsch, 15
Erda: Anna Larsson, 18
Woglinde: Sarah Fox, 16
Wellgunde: Victoria Simmonds, 15
Flosshilde: Ekaterina Gubanova, 16


5.7.06

Aix 

Em Aix-en-Provence, no meio de um bosque calmo, com ópera pela noite. Uma Fauta Mágica decepcionante em face do que se esperava, mas mediana em termos puramente artísticos e um Ouro do Reno verdadeiramente mágico. Este sim, até aos limites da música e do teatro, com Stéphane Braunschweig como encenador e Rattle como maestro e uma Filarmónica de Berlim simplesmente irreal no sublinhado das frases dos cantores e na pura música de Wagner. Cantores de alto nível com Gambill e White à cabeça, fazendo esquecer as charangas que andamos a ouvir há dezenas de anos...
UMA ENCENAÇÃO NOTÁVEL PELA COMPREENSÃO E PELA EXTENSÃO DO CONCEITO DE OBRA DE ARTE TOTAL. Sem megalomanias, num Wagner humano e à nossa medida, numa calma aparente, deixando respirar a obra até aos limites do suportável, até aos limites do génio que a música já encerra dentro de si, sem necessidade de excessos, sem berraria nos metais, num veludo envolvente, onde oito harpas (!!) se escutavam para lá de todas as suposições e adivinhas, lá estavam, presentes e ouviam-se, fora do palco ou dentro do fosso. Apenas as bigornas soaram a falso mas aceita-se face ao resto...
Sem procurar a dimensão puramente mágica, sem se esquecer de mostrar que estávamos em frente de teatro, Braunschweig e Rattle atingem um estadio completo de equilíbrio dinâmico, sem concessões...
Simplesmente perfeito até nas imperfeições de um Alberich com voz pequena...
O resto fica para Lisboa quando regressar, que hoje volta a Filarmónica de Berlim em Mahler de novo com Rattle, algures no alto de uma montanha. A Montanha Mágica de Cézanne, Ste. Victoire.
E fica a memória de Cézanne morto há cem anos aqui em Aix.



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