<$BlogRSDUrl$>

12.4.08

Jorge Calado e os Contos de Hoffmann 

Saiu no "O Expresso" a crítica de Jorge Calado aos "Contos de Hoffmann", o mais experiente e conhecedor crítico português em ópera arrasa a nova produção do S. Carlos: "Miséria no S. Carlos" é a chamada no caderno "Actual", o título da peça crítica é "A desafinação Continua" e o subtítulo é "A nova produção do S. Carlos é uma trapalhada mal cantada".

Recomendo uma leitura ao "O Expresso" para se ter um maior alcance do desastre desta direcção artística do Teatro Nacional de S. Carlos, pago com o dinheiro dos nossos impostos e dos bilhetes de um público cada vez mais aldrabado.

Segundo um crítico estrangeiro meu amigo: "não há maus cantores hoje, há falta de sentido de responsabilidade, muita preguiça e péssimos directores de casting."

Segundo um agente estrangeiro: "se o S. Carlos negociar bem, os melhores cantores vêm a Lisboa quase por nada, são umas férias excepcionais, um mês e meio em Lisboa é algo que não se esquece, o S. Carlos não contrata melhor porque não sabe ou não quer".

O que se passa hoje em S. Carlos é incompetência pura. Calado praticamente já pede a cabeça de Dammann mas eu creio que, apesar da virulência da sua crítica, é demasiado prudente ao exigir apenas o conhecimento público das condições contratuais desta equipa alemã "euro-trash". Christoph Dammann já provou que não percebe nada disto, apesar de claques e cliques de apoiantes e de críticos acéfalos e, provavelmente, surdos que, irresponsavelmente, passeiam a sua ignorância e falta de sentido crítico por jornais importantes da nossa praça, descredibilizando os jornais e a si próprios com opiniões infundamentadas, estouvadas e tontas, por um lado, ou tentando branquear uma gestão vergonhosa do anterior secretário de Estado, por outro, sabe-se lá porque razões.

Este director do S. Carlos é mau, é pior que mau, é péssimo. Sabe-se que Pinamonti, com alguns defeitos (que apontei aqui e ao próprio com toda a frontalidade) e muito poucos recursos, credibilizou o teatro de S. Carlos e lhe deu visibilidade internacional, com inteligência e sentido prático e, sobretudo, com muito bom senso. Eu apelaria a um regresso de Pinamonti, se isso fosse possível e se esse aceitasse, o que não me parece provável...
Uma ideia interessante seria a de Jorge Calado para director do Teatro. Está jubilado da Universidade e é quem mais sabe do assunto em Portugal. Fica a ideia...

Segue texto da crítica de Jorge Calado, com a devida vénia:

A desafinação continua

A nova produção de «Les Contes d’Hoffmann» no São Carlos é uma trapalhada mal cantada

Programar Les Contes d’Hoffmann é sempre um exercício arriscado. Fazê-lo à última hora (quer dizer, a menos de um ano de distância) - como fez a actual direcção do São Carlos, sabe o diabo a pedido de quem - é suicídio. Não é só o problema da edição da partitura, dos recitativos vs. diálogos, etc.; é também a escolha do elenco e do encenador. É fácil atribuir os papéis dos servos a um único cantor e fazer o mesmo com os quatro Vilões. Mas como resolver a unidade na diversidade da amada - Stella, Olympia, Antonia e Giulietta são uma e a mesma -, que, tal como a Violetta de La Traviata, requer três vozes? (Stella, a diva de ópera, não canta.) Houve uma boa notícia - a substituição do inenarrável tenor inicialmente anunciado -, mas a partir daí foi sempre a descer.

A complexidade dramática e musical de Les Contes d’Hoffmann é das coisas mais fascinantes da história da ópera. E.T.A. Hoffmann e Jacques Offenbach formam uma combinação irresistível sob a sombra tutelar de Mozart. Recorde-se que Hoffmann, essa figura cimeira do romantismo alemão, escritor-jurista-compositor-poeta-músico-caricaturista-crítico-pintor-maestro, interpolou a inicial A (de Amadeus) no seu nome em homenagem a Mozart. A ópera de Offenbach desenrola-se durante uma representação do Don Giovanni (na qual Stella canta a Donna Anna). O Hoffmann de Offenbach e dos libretistas Jules Barbier e Michel Carré é um Dom João desafortunado que bebe para esquecer os desastres amorosos (tal como o Hoffmann real). Don Giovanni, pelo contrário, bebe para celebrar e lubrificar as suas conquistas sexuais (como se ouve no «Fin ch’han dal vino»).

Hoje já não há grandes dúvidas no que respeita à versão que Offenbach deixou praticamente pronta, e em ensaios na Opéra-Comique, à hora da morte (em grande parte graças às descobertas de António de Almeida, o maestro português e grande especialista de Offenbach que dirigiu várias vezes em São Carlos.) Sabe-se que o compositor construíra um drama lírico híbrido, composto de números musicais ligados por recitativos, melodramas e diálogo falado; que as várias incarnações da heroína deviam ser cantadas pela mesma cantora; que a ordem correcta dos contos começa com o autómato Olympia (o sexo mecânico da juventude), continua com Antonia (a paixão romântica) e acaba, para quem já não acredita no amor, com o deboche da cortesã Giulietta. Sabe-se que Offenbach orquestrou praticamente tudo (incluindo quase todo o acto veneziano) e que não seria difícil orquestrar o que ele deixou em esboços ou partitura para piano (a técnica dum compositor que criou mais de cem obras teatrais é sobejamente conhecida). O problema é decidir o que cortar para não termos um espectáculo de mais de cinco horas. (É pena que os textos de Paula Gomes Ribeiro para o programa de sala também pouco ajudem, na sua enorme confusão.)

A produção foi anunciada como a grande aposta do director artístico do teatro, Christoph Dammann. Os resultados, porém, foram lamentáveis. Christian von Götz, apresentado como aclamado encenador do Capriccio, de Richard Strauss, no Festival de Edimburgo de 2007 (não deve ter lido a chusma de críticas negativas), permitiu-se, outra vez, reescrever a ópera. Em Capriccio enviara a Condessa para um campo de concentração sob escolta nazi. Aqui resolveu matar Hoffmann (em vez de Giulietta) e enxertar textos alheios, incluindo excertos de O Livro do Desassossego, de Pessoa. Percebe-se a piscadela de olho, mas é tempo de deixar o nosso poeta em paz! Hoffmann chega e sobra. Há 30 anos, a ideia de situar a ópera num asilo de loucos ainda podia funcionar. Hoje, depois do Marat-Sade (1963) dos Peter Weiss e Brook e do One Flew Over the Cuckoo’s Nest (1975) é apenas mais um cliché. Ainda por cima o pretexto não é seguido consistentemente. É conforme lhe dá, uma pós-modernice qualquer. O trabalho de Von Götz é o exemplo típico do chamado «euro-trash» - neste caso, alemão - que explicita traumas próprios (políticos ou sexuais) para os infligir a terceiros. A obra já tem simetrias suficientes para que seja necessário adicionar mais algumas. Só um alemão se lembraria de identificar a vítima com o carrasco - como ele faz transformando Hoffmann num sósia dos quatro Vilões. Ou de distorcer o episódio de Antonia pondo o Dr. Miracle a violá-la. No fim do espectáculo, mascarado de artista (num elegante fato preto e de barbicha), Götz recebeu alegremente os apupos juntamente com os aplausos da claque de apaniguados do regime instalado.

Quanto à direcção de actores, nem vestígios. Infelizmente, quase todos os cantores representavam razoavelmente mal, não sabiam para onde se mover, atropelavam-se no palco ou - literalmente - batiam com a cabeça na parede. À partida, a aposta estava perdida com a entrega dos quatro Vilões a Johannes von Duisburg, um cantor de afinação problemática, que tinha provado mal na Nona de Beethoven e que parece cantar tudo numa nota só (ainda por cima, feia). Porquê insistir? Götz fez dele uma espécie de pirata da perna de pau, óculos e cara de mau, com direito a extra: «Scintille diamant», a ária composta em 1904 por André Bloch. Olympia é a mais marcante das três heroínas. (O autómato e a marioneta desempenham um papel fulcral na cultura europeia, de Descartes a Kleist, não esquecendo a mona em tamanho natural de Kokoschka.) Chelsey Schill foi escolar e estridente. (Que saudades de Elizette Bayan.) Antonia é suposta ser tísica, mas Maria Fontosh - a melhor voz em cena - berra, salta para cima do piano e desabotoa-se, como se estivesse a cantar a Tosca. Momento baixo da encenação foi a materialização do espírito da Mãe de Antonia (Maria Luísa de Freitas), qual espanhola de mão na anca e perna à mostra. Por outro lado, falta a Riki Guy a sedução vocal ou teatral para fazer uma Giulietta convincente. Muito correcto o Crespel de Dieter Schweikart. Stephanie Houtzeel, bem ajudada - sem as momices e a embriaguez forçada -, poderia ter sido uma Musa/Nicklausse atraente. Os portugueses cumpriram na generalidade, com destaque para Carlos Guilherme. Resta o protagonista: Sergei Khomov faz batota nalguns agudos, não se ouve quando procura ser subtil e poético. O coro, vestido à Maluquinha de Arroios, não teve uma das suas melhores noites (nem a orquestra, tepidamente dirigida por Gregor Bühl). É já audível o desânimo que perpassa pelo teatro. O barulho mecânico que interrompeu a representação no último acto era talvez o fantasma de Offenbach a protestar...

Uma vez mais, o pior Hoffmann dos últimos 50 anos. Temo que se chegue ao fim desta temporada sem ter visto e ouvido um único cantor - já não digo de 1.ª ou 2.ª linha, mas ao menos de 3.ª ou 4.ª - a representar no palco do São Carlos! Dammann já provou que ou não percebe de vozes ou está a impingir-nos o rebotalho de Colónia. Corre por aí que a mulher é professora de canto; acho inverosímil. (O descalabro com o tenor residente, Richard Bauer, é apenas um sintoma; espero que se arranje nova «doença» antes da Tosca.) As suas opções quanto a encenadores também deixam a desejar. Há um ano, o teatro tinha um director universalmente respeitado, as produções eram no mínimo interessantes (e várias eram obras-primas) e ouvíamos algumas estrelas de hoje e de amanhã. Mas os senhores da Ajuda resolveram destruir tudo para instalar estes cavalheiros. Por uma questão de higiene, no mínimo exige-se saber as condições em que esta gente foi contratada (e é paga com o dinheiro de todos nós).

Texto de Jorge Calado

Etiquetas: , ,


Arquivos

This page is powered by Blogger. Isn't yours?