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14.9.07

Responsabilidade 

Fui ontem assistir a um concerto de uma jovem orquestra, a Orquestra de Câmara Portuguesa, dirigida por Pedro Carneiro.

Muitas orquestras começaram assim, uma reunião de jovens estudantes cheios de entusiasmo que desde muito cedo se reuniram para fazer música. Não conheço a orgânica da orquestra, nem o seu estatuto jurídico, mas a sua génese lembra-me a associação livre de jovens que produziu a Akademie für Alte Musik de Berlim. O Quarteto Lindsay é outro exemplo de excelência da reunião de jovens que depois prosseguiram carreiras de alto nível por longuíssimo tempo.

Tenho de dar os meus parabéns à nova orquestra, aos seus membros, ao CCB que deu esta oportunidade a estes músicos, cumprindo na plenitude o serviço público, produzindo cultura, dando condições a novos intérpretes, e servindo esse produto ao público em condições máximas de dignidade. Dou por fim ao autor da ideia, Pedro Carneiro, os parabéns, foi capaz de iniciar algo num país onde todos invejam e suspeitam dos que têm ideias e as concretizam. Bem haja ao Pedro Carneiro que fez aquilo que nem privados, nem Estado souberam fazer. Felizmente há gente que ainda acredita.

Era para mim um acto de responsabilidade assistir a este concerto. Os jovens merecem audiência, e merecem crítica. É o que farei neste espaço e posteriormente na rádio.

Será que se pode fazer crítica a uma orquestra de jovens, tal como se faz a uma formação já constituída e sedimentada pelo tempo e pela história?
Existem duas visões, a de que aos jovens tudo se deve perdoar, tudo deve servir para incentivar e, por outro lado, a visão estrita de que a partir do momento em que uma formação se apresenta em concerto público, cobrando bilhetes, num local prestigiado e a abrir uma temporada, após um excelente trabalho de divulgação e promoção, terá de ser submetida a um escrutínio rigoroso, ouvindo apenas o som como se tratasse de outra qualquer formação.

Creio que a primeira filosofia é absolutamente errada, tudo perdoar, tudo incentivar, é ser paternalista, é ser acéfalo, penso que essa visão pode contribuir para visões narcísicas de omnipotência que depois de confrontadas com a realidade nua e crua só levam à desilução e desmotivação. Não será a atitude certa e é prejudicial aos próprios jovens.

Por outro lado ser exegeta leva, por outro lado, à incapacidade de tolerar erros normais próprios de uma formação nova constituída por jovens a quem se negaram oportunidades anteriormente, cheios de entusiasmo e de dedicação, num país tão falho de iniciativa.

A responsabilidade do crítico é ser equilibrado e manter uma posição tolerante mas pedagógica. É nesse contexto que depois do concerto de ontem tenho algumas propostas críticas à orquestra.

Programa:
Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791)
Abertura “Der Schauspieldirektor“, KV 486

Franz Schubert (1797-1828)
Sinfonia n.º 6 em Dó Maior, D 589
I. Adagio - Allegro
II. Andante
III. Scherzo (Presto)
IV. Allegro Moderato

Igor Stravinski (1882-1971): “Pulcinella”, Suite de Ballet
I. Sinfonia (Abertura)
II. Serenata
III. Scherzino - Allegro - Andantino
IV. Tarantella
V. Toccata
VI. Gavotta con due Variazioni
VII. Vivo
VIII. Minuetto
IX. Finale

Gostei da abertura do "empresário" de Mozart. Estilisticamente gostaria de menos vibrato nos violinos e de mais peso nos graves, mas a interpretação cheia de entusiasmo e de musicalidade compensou largamente alguns erros de detalhe (notas erradas, pequenas desafinações, entradas disjuntas). Notou-se um trabalho muito rigoroso na construção do movimento, no gesto da arcada, penso que o contrabaixista da Gulbenkian Erlich Oliva terá tido aqui um papel importante como ensaiador das cordas. Foi um aspecto bem cuidado mas que terá de ser consolidado no futuro.

O programa foi exigente, a sinfonia no. 6 de Schubert foi escrita contra o estilo do compositor e claramente inspirada em Rossini. Contém em si detalhes muito complexos de execução de conjunto. A obra é desigual. Creio que faltou dar a esta obra uma visão de conjunto (que requere uma leitura musical muito profunda apesar da sua aparente simplicidade) e, sobretudo, notou-se falta de convicção no último andamento, demasiado arrastado, o moderado do allegro final, foi mais arrastado do que moderato. Allegro moderato não significa andante ou mesmo allegretto, significa que não se deve exagerar na velocidade do Allegro. Ao tocar de forma arrastada e empastelada este andamento Pedro Carneiro perdeu, no meu entender, a substância orgânica da sinfonia. Erros menores em entradas no Scherzo não retiraram brilho a estas páginas cheia de vigor, no entanto o trio pecou por demasiado constratante em termos de tempo, ganharia brilho e cor se fosse tocado apenas um pouco mais lento do que o início do scherzo. Faltou, no meu entender, uma visão de conjunto.
Pedro Carneiro como maestro esteve tecnicamente em cima do assunto, demonstrou que conhecia as partituras, provou ser músico.
Creio que ainda lhe falta técnica de direcção e isso foi óbvio na utilização do braço esquerdo, demasiado parado e contraído nas instruções que dava.
Apreciei de forma muito significativa a sonoridade expressiva do primeiro clarinete e o entusiasmo dos músicos, concentrados e profissionais.

A suite de Stravinsky é muito delicada no balanço orquestral, aqui a nova OCP esteve de novo, e numa apreciação global, bem. Os solos foram executados com técnica e poesia, destaco: violoncelo, viola, violino, flauta, oboé, fagote, trombone, contrabaixo de cordas, trompete. As trompas podem ainda crescer, o instrumento é de grande dificuldade e creio que tanto em termos de sonoridade como em termos técnicos subirão de forma com o tempo.
A suite é uma obra mais complexa e delicada no jogo orquestral do que a sinfonia de Schubert, mas acaba por ser mais simples de interpretar na sua sequência de quadros de dança que exigem sobretudo sentido de humor, capacidade de tocar em conjunto e alguma expressividade. Apenas no minuetto notei algum arrastamento excessivo. A sonoridade da orquestra é coerente e nota-se um profundo trabalho de ensaio. Pedro Carneiro esteve mais à vontade como director, deu entradas na medida certa, marcou o ritmo de forma rigorosa mas continuei a notar uma certa tendência para deixar amolecer a obra. A suite de bailado Pulcinella necessita de muita incisão e de propulsão, foi neste ponto que este concerto me deixa mais insatisfeito.

O balanço é francamente bom, mas antes de Pedro Carneiro querer dirigir muitas mais vezes "a sua" orquestra, seria extremamente produtivo, pois o material de base é muito sensível a ideias novas e capaz de uma progressão muito rápida, convidar alguns directores de alto nível internacional para moldar o som da orquestra, para trabalhar com os jovens músicos como se cada concerto fosse uma nova etapa de progressão e de evolução em direcção à excelência, isto será também extremamente útil para Pedro Carneiro, pois poderá ter oportunidade de trabalhar com maestros de alto nível. Não me parece particularmente útil para estes jovens terem sempre à sua frente um jovem e inexperiente maestro, mesmo tendo em conta a sua musicalidade inata. É evidente que seguir uma política deste tipo acarreta custos de investimento que não serão exagerados tendo em conta os possíveis benefícios.

Pedro Carneiro por outro lado deve optar claramente pela via que quer seguir: ser um solista de alto nível na percussão ou ser um director de orquestra a tempo inteiro. Penso que tem qualidades para ambas as coisas e já demonstrou ser um persussionista de qualidade, mas é acima de tudo um bom músico e isso é o fundamental, mas é bom fazer as coisas com os pés bem assentes. Como maestro tem ainda um longo caminho a percorrer e não me convenceu ainda da sua maturidade neste domínio.

Desejo um longo futuro a esta orquestra e ao seu director, algo que me parece bem possível.

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