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24.3.07

Um novo modelo de crítico descoberto em Lisboa 

O Crítico Imberbe

Há quem ache que "a terra tremeu" e dê cinco estrelitas, cinco, senhoras e senhores, ao Pollini, algo que só se deveria dar a recitais ou concertos excepcionais. É evidente que se cada nota esmagada fizesse tremer a terra teria mesmo sido um terramoto na Kreisleriana.
É a banalização do "fantástico", da palma de pé, do bravo e bravíssimo a torto e a direito à espera da Bagatela como extra, Bagatela que nem se refere na crítica. Aqui este vosso servidor daria três estrelas por ser o Pollini e nos merecer um enorme respeito. Não conseguiriamos dar duas porque sabemos que Pollini já fez muitíssimo mais.
Segue a crítica tonta (não sei arranjar links com o novo sistema do "O Público") para o leitor poder apreciar de forma agradável e disfrutar da hermêutica variada (a escola é indesmentível) do crítico imberbe em processo de formação e deslumbramento. Já tivemos o policrítico, o crítico fã, o crítico sorridente, o crítico duvidoso, o crítico inseguro, o crítico céptico, o crítico confessional, o crítico que não se compromete, o crítico com pedra no sapato, o crítico que só ama o Emmannuell NNunnes, agora temos o Crítico Imberbe. Ser "crítico imberbe" não tem a ver com a idade ou as barbas, é uma espécie nova de crítico que gosta de fazer umas flores e umas figuras de estilo nos textos mas falha redondamente na apreciação do que ouviu e viu, algo que resulta elegantemente mas que nada tem a ver com a realidade objectiva dos factos, critica quase sempre pelos currículos; é uma subvariante do Crítico Acéfalo, um dos mais frequentes a nível mundial. As suas características principais são: está em tirocínio, é igual ao público que vai atrás do nome, não ouve nem julga objectivamente com o seu cérebro e as suas escassas referências e manda umas bocas de acordo com a história dos criticados e a fama dos nomes.
Segue prova


A terra tremeu

23.03.2007

"Sou afectado por tudo o que se passa no mundo", dizia Robert Schumann, por volta de 1838. Na passada quarta-feira, Maurizio Pollini deu um sentido especial a esta frase. Schumann não fazia música apenas com notas, mas com tudo o que ele considerava extraordinário na vida e com tudo o que lhe interessava verdadeiramente. A dificuldade da sua música é precisamente o facto de ela se ligar, em cada fragmento, a qualquer coisa vivida. E foi isso que Pollini fez no Grande Auditório da Gulbenkian - deu uma lição de vida.
Começou por escolher um programa de uma coerência surpreendente, pondo lado a lado duas peças para piano de Stockhausen (Klavierstücke VII e VIII) dos anos 50 do século XX, o ciclo para piano louco e sonhador que é a Kreisleriana de Schumann (1838) e uma sonata de Beethoven capaz de provocar um terramoto, a Hammerklavier, op. 106.
Depois as mãos e os pés de Pollini. Ele toca com os pés. Nunca só com cabeça, nunca só com mãos. Com o corpo todo, ele mergulhou na música para revelar os timbres escondidos, as notas decisivas, descobrir os acentos certos, as articulações precisas. Por vezes está tudo ligado, quase a embrulhar-se, mas, de súbito, um acorde que pára o mundo, ou uma pequena fractura, um brilho que revela uma coisa pequena mas essencial. Pollini foi descobrindo as feridas que a música abre.
Stockhausen deixou de ser difícil: pareciam fáceis de seguir, como melodias, as cores e os diferentes ataques e dinâmicas do piano. (Nota: Pollini repetiu uma das peças. Segundo percebi, houve um engano do rapaz que passava as páginas. Coisas que acontecem.) As Klavierstücke pareciam simples, comparadas, por exemplo, com a extraordinária Kreisleriana de Schumann, onde fervilha o amor por Clara Wieck tanto como a sua paixão pela literatura (Kreisler é uma personagem de uma obra de E.T.A. Hoffmann). Fervilham vidas, a de Pollini, a de Schumann, e a do público, que era muito (até se acrescentaram cadeiras nas partes laterais do palco, ali quase em cima de Pollini).
E depois a sonata de Beethoven, que parte o mundo em dois, como alguém disse. Sobe às estrelas e desce ao fundo da terra. Pelo caminho, toma a liberdade de pôr em causa as formas em que pega, de romper radicalmente com elas (por exemplo a fuga con alcune licenze, ou seja, como bem me apetecer porque eu sou Beethoven...). A Hammerklavier é assim. Antes de compor esta sonata, em 1817 Beethoven desesperava, não via saída: "Aprendo em cada dia, sem música, a aproximar-me do túmulo". Com a opus 106, voltou a compor e a ter esperança, mas já não era o mesmo. Pollini mostrou a ruptura de Beethoven com uma clareza tal, raivosa e lírica em cada pormenor, e ao mesmo tempo permitindo-nos ouvir a totalidade, todas (se fosse possível) as promessas e os conflitos que ressoam naquela sonata. E ressoaram mesmo, não é só metáfora. Mas essa música, de há quase 200 anos, ainda sobrevive, ainda serve para alguma coisa? - ouvi mais tarde esta pergunta. Não sei para que é que serve. Mas Maurizio Pollini provou que ela ainda faz tremer o mundo.

Pedro Boléo

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