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25.1.07

Al Ayre Español e Collegium Vocale de Ghent na Gulbenkian 

Segunda feira, 19h, Fundação Gulbenkian. Direcção Eduardo López Banzo.
Tenho assistido ao Al Ayre Español em diversas ocasiões e tenho vários discos do agrupamento. Em ópera barroca, nomeadamente Handel, o agrupamento sob a direcção de Banzo demonstrou uma extraordinária qualidade, uma produção de som verdadeiramente notável, com pathos, incisão e beleza. Em Bocherini, no último disco, Banzo e o seu agrupamento foram surpreendentes na forma como renovaram a música interpretando-a com a vivacidade e o vigor que merece. Ao vivo têm sido sempre de alto nível, tenho-os escutado em Espanha, nomeadamente em Salamanca, escutei-os pela última vez no Festival do Estoril no Mosteiro dos Jerónimos. Banzo gosta de ensaiar muito, e prepara os cantores com rigor, exigindo o máximo destes.
Foi portanto com as mais altas expectativas que me preparei para o concerto de segunda-feira passada.
Para começar mal Núria Rial, a primeiro soprano prevista cancelou por ter uma forte gripe, infelizmente não é a primeira vez que cancela com este grupo, e outros. Penso que confiar em artistas que passam a vida a cancelar participações em concertos não é viável para um agrupamento deste nível. Embora Núria Rial seja um bom soprano é também muito inflaccionada por certa crítica, tem agilidade mas os agudos são pobres e às vezes tem dificuldades de afinação. Foi substituída por cantoras do Collegium Vocale de Ghent.
O concerto começa com o célebre Dixit Dominus de Handel, Banzo inicia a obra a uma velocidade vertiginosa, naquilo que considero um erro que dificulta a respiração do ritmo musical e põe problemas complexos aos cantores do coro e aos solistas, Banzo afirmou que aquela velocidade tinha a ver com o ritmo frenético que um jovem cheio de génio e força de vida quereria mostrar, numa capacidade de virtuosismo que deixaria impressionada Roma, onde Handel acabava de chegar. O que é certo é que se a coisa correu menos mal na orquestra, a velocidade exagerada acabou com a clareza necessária a páginas tão ritmadas e deixou o coro em situações aflitivas de respiração. O pior foi a entrada de Carlos Mena que arruinou uma passagem inteira, toda ao lado acabando por deixar de se ouvir a meio na sua primeira intervenção nos soli que pautuam este coro inicial, perdendo a linha vocal. Percebeu-se também que o naipe de cantores não era excepcional.
Na sua primeira intervenção a solo na ária de contralto Mena, com o baixo contínuo a marcar o ritmo em regime TGV, aliás excelentemente e com um pathos e vigor incríveis nos instrumentos presentes, o cantor voltou a mostrar falta de clareza e dificuldades vocais nos momentos de maior agilidade, demonstrando algum cansaço, fugindo até a colocação, nada habitual em Mena. Creio que Banzo poderia ter sido mais sensível e flexível às dificuldades do cantor reduzindo um pouco a vivacidade, mas o próprio Banzo afirma que se um cantor mostra dificuldades é porque deveria ter estudado mais. Mena é um cantor que deu provas mais que muitas e seria perfeitamente capaz em dias normais de fazer aquela ária de forma perfeita, mas depois de uma longa série de concertos o maestro poderia ter demonstrado mais sensibilidade às limitações humanas do instrumento voz. Um excelente conceito de Banzo no papel, aqui com a orquestra a corresponder sempre com altíssimo nível, mas que não resultou por dificuldade do cantor. No resto Mena foi perfeito.
A cantora Isabel Monar demonstrou ser apenas mediana, com dificuldades de afinação e um timbre feio nos agudos, leu as passagens confiadas com pouca classe.
Os restantes solistas: Malcolm Bennet (tenor) e Josep Miquel Ramón (barítono) foram cumprindo com qualidade os trechos confiados.
O coro de Ghent foi excelente nas passagens de conjunto subsequentes, coeso, de vozes bonitas, conseguiu dar grande plasticidade aos números do Dixit Dominus de Handel.
As cantoras que saíram do coro para substituir Núria Rial, cumpriram o seu ingrato papel, mas não são solistas de nível internacional e tiveram o mérito de serem ambas superiores a Monar.
As peças das Vésperas de Nebra mostraram alguma irregularidade de composição, trata-se de uma obra a oito vozes, com oposição entre o coro grande e o coro de solistas, com uma orquestra ricamente composta, com trompa, oboés, flautas e um baixo contínuo muito consistente, com fagote (que tinha também dado uma bela cor ao Dixit Dominus de Handel), dois violoncelos, violone, tiorba e órgão.
Se o Dixit Dominus foi algo banal, com uma construção demasiado elaborada e tentar mostrar competência mas caindo num certo artificialismo, já as peças finais, o Ave Maria Stella, de grande beleza interior e o Magnificat, obra de afirmação cheia de carácter, são, para mim, obras de grande qualidade e invenção. Nebra demonstra métier e engenho.
Na segunda parte, Banzo esteve brilhante na direcção, dando vida e cor a obras que requerem uma interpretação muito cuidada para se afirmarem na sua plenitude, o balanço entre os vários elementos em jogo, os dois cori afastados, a orquestra com o seu baixo contínuo muito afirmativo, tiveram um balanço muito equilibrado e criaram momentos de grande riqueza sonora. Os solistas, menos solicitados que em Handel, pela própria essência da música, cumpriram aqui com mais rigor o exigível, acabando por ser melhores em conjunto do que antes tinham sido em solo.

Nota sobre a crítica do jornal "O Público". O texto parece escrito por um marciano que nunca escutou música antiga. Música essa que conta com uma convivência recente de mais de cinquenta anos com os ouvintes.
Além do texto ser basbaque e salivante fala-se de ornamentação atribuindo-se a esta um carácter eminentemente profano. Se recuarmos a Trento, quase duzentos anos antes, talvez a afirmação tenha algum nexo. A ornamentação era uma constante da música sacra italiana e de toda a música do barroco no início do século XVIII. O facto de Handel exigir ornamentação é natural, toda a música sacra da época está imbuída do espírito do tempo que também transpira exuberância. A música religiosa recorre aos códigos do profano e vice-versa, os intérpretes eram geralmente, ou muitas vezes, os mesmos no registo sagrado e na ópera e a igreja utiliza elementos mais exuberantes para chegar mais facilmente aos devotos, é muito complexo destrinçar-se com rigor o que vem de um universo e de outro e talvez nem faça sentido. Agora escarrapachar num texto uma frase destas, desgarrada e sem mais explicações, é um erro grosseiro.
Basta ir a uma igreja italiana do período para observar na arte essa mesma ornamentação.

Em resumo: Uma belíssima orquestra, belo som, entusiasmo, um coro refinado de grande qualidade. Um bom concerto, mais pela segunda parte mas com as reservas apontadas.

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