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23.4.08

Livros que não lemos e recomendamos 

Não, não é mais um artigo sobre leituras recomendadas neste dia do livro. Também não me estou a virar para a crítica literária, pelo menos ainda não; é que o mundo da literatura é muito menos civilizado e muito mais canino que o mundo da música, se esquecermos, claro está, as discussões espúrias sobre ópera e os atributos vocais de uma qualquer cantora, directamente proporcionais, como sempre, aos agudos que a dita emite. Estou-me nas tintas para o dia do livro, aliás recomendo, como não podia deixar de ser hoje, um livro que é um apelo à não leitura: Como Falar dos Livros que Não Lemos? de Pierre Bayard. Trata-se de um livro que não comprei, que não li e que pousa suavemente na minha secretária apinhada de outras coisas, como cerca de quarenta CD's não ouvidos, um livro que é aliás um libelo e será uma bíblia, não lida, bem claro está de ver, de famosos e não famosos não leitores, nuns destaco Marcelo Rebelo de Sousa e Francisco José Viegas e noutros destaco-me a mim próprio e ao sr. Manuel das Iscas, antigo carregador da Bulhosa, o que aliás delimita bem a diferença entre um não leitor activo e culto, sem complexos e que discorre sobre o que não leu com naturalidade e alguém que é um verdadeiro não leitor passivo. O não leitor activo, como eu, tem na sua posse milhares de livros, compra-os, assina e recebe avidamente o Magazine Littéraire (que religiosamente não lê), vê os índices com avidez e compara edições lendo todas as críticas às mesmas. O não leitor passivo limita-se a ignorar os livros. Poderia deixar ao meu (não) leitor a classificação de Marcelo e de Viegas, mas evidentemente que o primeiro é um não leitor passivo e o segundo será um activo; nunca vi tantos lançamentos de livros apresentados por Viegas sem nunca ter lido uma linha que fosse do autor apresentado, que sua geralmente de forma abundante, enquanto o não leitor activo Viegas lá vai abrindo o livro ao calhas e lendo passagens previamente marcadas com postit's amarelos como se tratasse realmente de uma não leitura percorrida, ou mesmo folheada...

Trata-se de um livro que se recomenda, este do psicólogo, crítico literário, professor de literatura, escritor e não leitor Bayard, e aborda de forma reflexiva e até inteligente, creio eu, que ler não o li, a não leitura. Não, não é uma crítica social, não... não é um apelo disfarçado à leitura. Já li, ou melhor não li, mas imagino que se tem escrito e publicado, posso mesmo dizer que tenho percorrido sem ler, ou tenho ouvido dizer, que muitos "intelectuais" têm disfarçado e assobiado para o ar tentando não ler, lendo, nesse livro aquilo que ele não tem, o que aliás é mais um acto não assumido de uma não leitura. Algo que respeito é a não leitura mas condeno a falsificação de uma mensagem não escrita. E quem sou eu para criticar aqueles que falam do livro, tendo pensado que o leram, se eu próprio não o li? Tenho uma vantagem clara, a não leitura assumida do livro como acto de vontade plena é um acto de distanciação crítica. Ao embrenharem-se neste livro, os imaginários, porque não os li e podem apenas ser fruto da minha imaginação (mas não o é tudo?), críticos do livro acabam a não ler o que Bayard não escreveu, distorcendo através de cérebros pouco dotados o que Bayard pensa que escreveu sem o ter feito. Parafraseando Oscar Wilde, que eu não li, bem entendido, quem são esses leitores para pensarem que leram um livro que não foi escrito pelo autor? Um livro é algo obscuro, nebuloso, fruto de memórias e do espírito de quem o leu, o livro é todo um contexto social, começa no acto da escrita e precipita-se, cristaliza, no acto da leitura; melhor seria dizer: não leitura. Para não ler um livro prefiro fazê-lo de uma forma activa, ignorando-o pura e simplesmente, evito assim a maçada de o folhear, de cabecear sobre o mesmo, ou mesmo de ter de ler, não lendo, extensos e incrivelmente maçadores parágrafos, escritos geralmente por alguém que não sabe escrever (como o Saramago) e quase sempre pessimamente traduzidos (como o Saramago). Tal como existe o não leitor activo também existe o não ouvinte passivo e a este respeito dou como exemplo Pedro Boléo, do jornal "O Público", um claríssimo não ouvinte passivo, o que aliás louvo: é notável como o crítico deste jornal pode criar um objecto literário e (não) crítico independente do que quer que tenha, ou não, ouvido. Simplesmente genial! Algo que no meu caso seria muito complexo é a criação desta distância crítica altamente imaginativa (mas que vou procurar cultivar no futuro). Exemplo: (não) crítica dos Contos de Hoffmann, que poderia ser escrita independentemente de qualquer audição da obra e da interpretação em concreto. Mas não falemos mais de um não ouvinte passivo, afinal o mais banal dos casos de não ouvinte, a situação do não ouvinte activo é muito mais interessante: aquele que realmente (não) ouve mas que finge a audição que realmente sente, ou seja: que (não) ouve com um cérebro.

Assim o exercício discursivo é muito mais flexível, imaginativo e eficaz, uma vez que não se leu o livro em causa, ou não se escutou a obra em particular mesmo tendo-a escutado, ou não tendo ouvido (tendo-a ouvido) a interpretação que se critica. Pode-se discorrer sobre as mesmas por ouvir dizer, ou até por imaginar o seu conteúdo a partir do texto e do índice, ou das notas de programa e do currículo dos intérpretes ou compositores, ou, suprema ironia, a partir da própria (não) audição da obra em concreto. É um exercício de não-leitura ou não-audição imaginativa de grande fôlego criativo. E, tal como nos diz Bayard, esse professor de literatura na Sorbonne, se bem não li, no capítulo final, o livro é um apelo sincero, apaixonado da não leitura criativa, um apelo maior da escrita. Pois do discurso sobre o não lido (não ouvido, não provado, não visto, não tocado, não cheirado) pode nascer uma obra bem melhor, a nossa própria obra. Mal escrita e logo não lida, esquecida pelo autor e pelos leitores após penosos momentos de falsa não leitura. Como é bela a não leitura e que belíssimos momentos me tem proporcionado em oposição a penosas leituras dos meus tempos de juventude que nada me trouxeram...
A criação de objectos assim motiva os críticos, é toda uma teoria crítica da não existência do objecto criticado, a rarefação da obra em si. Críticos eles próprios não leitores empedernidos, não ouvintes convitos: afinal a actividade da crítica, como outra actividade artística e criativa é ela mesma um exercício de não leitura, de não audição... no meu caso, de despojamento referencial, de desnudamento do objecto da crítica, infinitésimal e menor perante o acto crítico, já o dizia o citado Oscar Wilde, citado sem ser lido - não me canso de repetir - "quem se julgam os criticados ser senão meros pretextos para o acto genuinamente criativo que é a crítica como acto de produção artística?" Acham que o crítico se importa com a obra a criticar? Acham que o crítico se importa com a interpretação da obra? Algo fundamentalmente menor face à criação, algo meramente reprodutivo e, essencialmente, não criativo. Evidentemente que não! O crítico não lê, não ouve!
O artista maior é o crítico que não lê, que não vê, que não ouve, que não palpa, que não cheira e que não prova. Chamam muitas vezes ao crítico "artista frustrado", esse crítico existe, é um artista não conseguido, um crítico esforçado, que lê e relê, que sofre com o criticado, que ouve à exaustão, que prova o vinho até beber a pipa, tal como disseca o livro até não sobrar mais do que um punhado de caracteres, que cheira a comida, que chega mesmo a degustá~la (supremo horror), que toca na escultura e apalpa a cor; esse crítico está condenado, o verdadeiro e grande artista é o crítico que imagina a obra e faz da crítica a sua peça de arte, a leitura, a audição, o real, o desgraçado do artista a criticar, o repasto, o copo de tinto, são um mesquinho pretexto para a magistral arte da criação crítica, alguém lê o Adorno por causa do Schönberg? Alguém lê o Parker, como eu não o leio, para saber se um vinho de cinquenta mil euros é bom ou mau? Eu não, eu leio (ou melhor: não leio) por causa do génio crítico, pela beleza das suas construções lógicas e pela imaginação que a sua não leitura me proporciona.

Recomendo pois neste dia da não leitura e do não livro a criação de um livro, o nosso livro, a nossa obra de arte, a nossa flor, o nosso verso, o nosso pensamento crítico, a nossa crítica sobre o mundo, seja sobre um insignificante artista que se debate por um olhar do seu senhor, seja do artista consagrado que nunca lerá qualquer crítica porque já se está nas tintas. O senhor do mundo é o crítico que não vê, não ouve, não toca, não cheira e não prova, mas que critica e cria.

P.S. E se descobrir erros neste post escusa de me maçar com comentários ou emails, eu não li ou reli o texto, como tal não o revi e não faço tenção de ler o seu email.

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