27.11.07
Deus chamou-os por os amar demais
Fui assistir a um recital notável de dois dos melhores intérpretes de lied a nível planetário. Falo do recital de Michael Gees em piano e do cantor Christoph Prégardien, tenor alemão que nos deu uma Schöne Müllerin (ou uma Bela Moleira) de Franz Schubert (1797-1828) sobre poemas de Wilhelm Müller (1794-1827), um jovem poeta que, tal como Schubert, não teve tempo de envelhecer e que lhe daria os poemas dos dois ciclos que bastariam por si só para fazer de Schubert um dos maiores génios da humanidade: esta Moleira e a Winterreise (ou Viagem de Inverno). Müller, ele também moleiro (müller), como ele afirmava, escreve este ciclo na primeira pessoa. Müller foi um poeta menosprezado pela cultura exterior à Alemanha, talvez por ser aparentemente simples, talvez por procurar a alma do povo na sua poesia. A sua poesia está envolvida da alma alemã. Quanto mais viajo pela Alemanha e conheço os seus habitantes, sobretudo no Inverno, e vou fazendo amigos, mais percebo o génio de Müller, mas estas são contas de outro rosário.
A obra dada neste recital do S. Carlos no passado sábado, pelas 21h, foi escrita em 1823, este ciclo é menos elaborado (formalmente) do que as subsequentes viagens de Schubert por Müller e Heine, sem esquecer outro jovem, Relstab, que Prégardien cantou como extra: Liebesbotschaft (ou Mensagem de Amor), um canto de esperança no retorno de uma amada que, sabe-se, nunca regressará, sobre outro regato, o regato de Relstab que afinal conflui no de Müller através das torrentes de notas de Schubert que correm para o abismo a uma velocidade vertiginosa, a velocidade da criação de Schubert que espantou o próprio Beethoven nos seus últimos dias, "como tem ele tempo?", notas que correm, aparentemente calmas, nestes ribeiros e na progressão de uma doença que corrói o compositor desde o início de 1823, Sífilis, e da qual Schubert sabe com uma certeza absoluta que irá morrer, provavelmente após uma agonia penosa. Esta mensagem de amor é também o último fluxo aquático do compositor e a melodia evoca a bela moleira. Se Prégardien escolheu a Bela Moleira e pouco haveria mais a dizer, esta escolha de extra seria a única possível e lógica para fechar o ciclo. Prégardien já nos deu uma superlativa interpretação da Bela Moleira em 1992 (CD deutsche harmonia mundi- 05472 77273 2) com Andreas Steier, num piano com acção vienense cópia feita em 1981 de um Johann Fritz Wien de 1818. Prepara-se para gravar de novo o ciclo, agora com a maturidade que a só a idade pode trazer. Sem perder a beleza ímpar de uma voz puríssima, sem um toque ínfimo de vibrato que seja, cantando sempre no limite, dando tudo, desde a música, aos agudos e à emoção que lhe turva a voz, de quando em quando, ao mudar de registo. Prégardien e Gees mergulharam profundamente na alma dos autores e isso transpareceu acima de tudo.
Este ciclo divide-se claramente em duas partes e diversas subpartes, é um ciclo na verdadeira acepção da palavra e tem uma dramaturgia própria. Começa por um prólogo que termina com "Halt!", que nos traz o típico Wandern romântico alemão, o viandante é um jovem moleiro, ainda despreocupado, à procura de algo que não se pode definir com rigor. O ciclo segue no encontro com a moleira, na descoberta do regato, do moinho e do amor, que termina em Mein!, um delírio possessivo e entusiástico que prenuncia a demência que levará à morte do jovem moleiro. Os sentimentos culminam em Pause, momento central, paragem para meditação, momento culminante de um amor que se verá não ser correspondido. A disrupção surge com o caçador, o caçador que sem dó nem piedade aniquila e destrói, o caçador que irá roubar ao moleiro o amor imaginário da jovem moleira, é a partir daqui que surgem os pontos mais notáveis deste ciclo, com a Die Liebe Farbe (A cor amada ou a cor verde e como este título é ambíguo), "o meu tesouro do verde tão profundamente gosta", o verde da fita que o moleiro lhe ofereceu (mas também o verde do caçador, como se perceberá na segunda, e final, estrofe) que termina com um contraditório e surpreendente "o meu tesouro da caça tão profundamente gosta", é nesta fase que o tom menor se instala sempre à volta do desolado si menor (o mesmo si menor de Bach), esta fase termina com Die Böse Farbe, a cor maldita. O Epílogo marca o fim de um amor imaginado e nunca declarado, marca a morte, a desilusão, mas também o apaziguamento que o ribeiro e as suas águas dão amortalhando o corpo do moleiro, embalaram este amor e embalam o seu fim. O epílogo é apenas a morte, uma morte lógica, romântica, sempre com o ribeiro por pano de fundo, num fluxo interminável que passa por toda a obra. O penúltimo lied Der Müller und der Bach é talvez dos mais simples e dos mais belos escritos por Schubert, a melodia é infinitamente triste no seu sol menor, em que o regato abraça o moleiro, Prégardien neste ponto foi sublime, a beleza cristalina da sua voz e a sua inteligência recriou o poeta e o músico de uma forma comovente neste sol de Outono, e no sol menor deste lied, de 1823, ano em que Schubert criou esta obra, um sol menor que brilhou na voz do cantor. Brilhou ainda no "azul cristalino" da canção estrófica final, uma marcha fúnebre repetitiva e desolada, em que os agudos de Prégardien foram pungentes, "hinweg", mas também brilhou a tristeza e a melancolia, a poesia e a alma de dois jovens mortos quando Deus os chamou por os amar demais, o ciclo termina com o "céu é vasto"...
Dois músicos, dois poetas, dois intérpretes, fusão total. Um recital sem mais palavras, simplesmente comovente.
P.S. 1 - Notas finais: no programa ficamos a saber quem são os electricistas, os aderecistas, os vassouristas, que existe bengaleiro, que a carreira 28 passa pelo S. Carlos, sabemos quem são os administrativos e até os mais insignificantes detalhes do teatro, no entanto não figura em qualquer parte, que eu tenha conseguido descobrir, o nome do tradutor do alemão para português. Ainda procurei no capítulo: "sector dos tradutores e intérpretes" no final, mas não havia, havia apenas costureiras e afins, no entretanto fiquei a saber que o José Diogo é colaborador (com asterisco) do sector dos electricistas (este meu amigo julgava-o noutro sítio) e que no sector administrativo lá está a Patrícia Pires como colaboradora do serviço de limpeza (com asterisco)...
P.S. 2 - No programa vem a mui útil informação de que "não é permitida a entrada" de espectadores depois de iniciado o espectáculo. Bela incongruência, entraram constantemente espectadores até ao lied número sete (de um total de vinte) nos camarotes, fazendo um barulho inenarrável, também constante e brutal na violação da atmosfera altamente concentrada dos lieder de Schubert, o fluxo de entradas foi ininterrupto com abrir de portas, cliques dos ferrolhos das fechaduras, arrastar de cadeiras e murmúrios dos recém chegados mal educados que abafavam os múrmúrios ou sussuros (rauschen) do regato. Percebe-se por estas e por outras que o Teatro de S. Carlos anda sem rei nem roque, à deriva, sem uma cabeça que esteja presente e decida. Nunca assisti a tamanha pouca vergonha em qualquer teatro ou sala europeia. O director artístico em part time lá estava no início, não sei se ficou a assistir ou se tinha de apanhar o avião para Colónia...
P.S. 3 - A poesia do lied é extremamente importante, nem toda a gente domina o alemão ou tem vinte interpretações diferentes da "Bela Moleira" e ouviu o ciclo quinhentas vezes. Nem toda a gente leu a tradução antes e se não domina o alemão, mesmo que tenha lido, não consegue encontrar o pé no meio de um ciclo que durou uma hora e cinco minutos. É por isso lamentável que nem sistema de legendagem tenha sido usado nem, na sua falta, as luzes da sala estivessem semi acesas de forma a permitir uma leitura da poesia no programa. Uma falta de cuidado e grande desatenção pelo público naquela que foi, até agora, a pérola (a única que vislumbrei este ano) de uma programação nitidamente feita com os pés. Uma falta de atenção que resulta em mais um desrespeito pelo público.
A obra dada neste recital do S. Carlos no passado sábado, pelas 21h, foi escrita em 1823, este ciclo é menos elaborado (formalmente) do que as subsequentes viagens de Schubert por Müller e Heine, sem esquecer outro jovem, Relstab, que Prégardien cantou como extra: Liebesbotschaft (ou Mensagem de Amor), um canto de esperança no retorno de uma amada que, sabe-se, nunca regressará, sobre outro regato, o regato de Relstab que afinal conflui no de Müller através das torrentes de notas de Schubert que correm para o abismo a uma velocidade vertiginosa, a velocidade da criação de Schubert que espantou o próprio Beethoven nos seus últimos dias, "como tem ele tempo?", notas que correm, aparentemente calmas, nestes ribeiros e na progressão de uma doença que corrói o compositor desde o início de 1823, Sífilis, e da qual Schubert sabe com uma certeza absoluta que irá morrer, provavelmente após uma agonia penosa. Esta mensagem de amor é também o último fluxo aquático do compositor e a melodia evoca a bela moleira. Se Prégardien escolheu a Bela Moleira e pouco haveria mais a dizer, esta escolha de extra seria a única possível e lógica para fechar o ciclo. Prégardien já nos deu uma superlativa interpretação da Bela Moleira em 1992 (CD deutsche harmonia mundi- 05472 77273 2) com Andreas Steier, num piano com acção vienense cópia feita em 1981 de um Johann Fritz Wien de 1818. Prepara-se para gravar de novo o ciclo, agora com a maturidade que a só a idade pode trazer. Sem perder a beleza ímpar de uma voz puríssima, sem um toque ínfimo de vibrato que seja, cantando sempre no limite, dando tudo, desde a música, aos agudos e à emoção que lhe turva a voz, de quando em quando, ao mudar de registo. Prégardien e Gees mergulharam profundamente na alma dos autores e isso transpareceu acima de tudo.
Este ciclo divide-se claramente em duas partes e diversas subpartes, é um ciclo na verdadeira acepção da palavra e tem uma dramaturgia própria. Começa por um prólogo que termina com "Halt!", que nos traz o típico Wandern romântico alemão, o viandante é um jovem moleiro, ainda despreocupado, à procura de algo que não se pode definir com rigor. O ciclo segue no encontro com a moleira, na descoberta do regato, do moinho e do amor, que termina em Mein!, um delírio possessivo e entusiástico que prenuncia a demência que levará à morte do jovem moleiro. Os sentimentos culminam em Pause, momento central, paragem para meditação, momento culminante de um amor que se verá não ser correspondido. A disrupção surge com o caçador, o caçador que sem dó nem piedade aniquila e destrói, o caçador que irá roubar ao moleiro o amor imaginário da jovem moleira, é a partir daqui que surgem os pontos mais notáveis deste ciclo, com a Die Liebe Farbe (A cor amada ou a cor verde e como este título é ambíguo), "o meu tesouro do verde tão profundamente gosta", o verde da fita que o moleiro lhe ofereceu (mas também o verde do caçador, como se perceberá na segunda, e final, estrofe) que termina com um contraditório e surpreendente "o meu tesouro da caça tão profundamente gosta", é nesta fase que o tom menor se instala sempre à volta do desolado si menor (o mesmo si menor de Bach), esta fase termina com Die Böse Farbe, a cor maldita. O Epílogo marca o fim de um amor imaginado e nunca declarado, marca a morte, a desilusão, mas também o apaziguamento que o ribeiro e as suas águas dão amortalhando o corpo do moleiro, embalaram este amor e embalam o seu fim. O epílogo é apenas a morte, uma morte lógica, romântica, sempre com o ribeiro por pano de fundo, num fluxo interminável que passa por toda a obra. O penúltimo lied Der Müller und der Bach é talvez dos mais simples e dos mais belos escritos por Schubert, a melodia é infinitamente triste no seu sol menor, em que o regato abraça o moleiro, Prégardien neste ponto foi sublime, a beleza cristalina da sua voz e a sua inteligência recriou o poeta e o músico de uma forma comovente neste sol de Outono, e no sol menor deste lied, de 1823, ano em que Schubert criou esta obra, um sol menor que brilhou na voz do cantor. Brilhou ainda no "azul cristalino" da canção estrófica final, uma marcha fúnebre repetitiva e desolada, em que os agudos de Prégardien foram pungentes, "hinweg", mas também brilhou a tristeza e a melancolia, a poesia e a alma de dois jovens mortos quando Deus os chamou por os amar demais, o ciclo termina com o "céu é vasto"...
Dois músicos, dois poetas, dois intérpretes, fusão total. Um recital sem mais palavras, simplesmente comovente.
P.S. 1 - Notas finais: no programa ficamos a saber quem são os electricistas, os aderecistas, os vassouristas, que existe bengaleiro, que a carreira 28 passa pelo S. Carlos, sabemos quem são os administrativos e até os mais insignificantes detalhes do teatro, no entanto não figura em qualquer parte, que eu tenha conseguido descobrir, o nome do tradutor do alemão para português. Ainda procurei no capítulo: "sector dos tradutores e intérpretes" no final, mas não havia, havia apenas costureiras e afins, no entretanto fiquei a saber que o José Diogo é colaborador (com asterisco) do sector dos electricistas (este meu amigo julgava-o noutro sítio) e que no sector administrativo lá está a Patrícia Pires como colaboradora do serviço de limpeza (com asterisco)...
P.S. 2 - No programa vem a mui útil informação de que "não é permitida a entrada" de espectadores depois de iniciado o espectáculo. Bela incongruência, entraram constantemente espectadores até ao lied número sete (de um total de vinte) nos camarotes, fazendo um barulho inenarrável, também constante e brutal na violação da atmosfera altamente concentrada dos lieder de Schubert, o fluxo de entradas foi ininterrupto com abrir de portas, cliques dos ferrolhos das fechaduras, arrastar de cadeiras e murmúrios dos recém chegados mal educados que abafavam os múrmúrios ou sussuros (rauschen) do regato. Percebe-se por estas e por outras que o Teatro de S. Carlos anda sem rei nem roque, à deriva, sem uma cabeça que esteja presente e decida. Nunca assisti a tamanha pouca vergonha em qualquer teatro ou sala europeia. O director artístico em part time lá estava no início, não sei se ficou a assistir ou se tinha de apanhar o avião para Colónia...
P.S. 3 - A poesia do lied é extremamente importante, nem toda a gente domina o alemão ou tem vinte interpretações diferentes da "Bela Moleira" e ouviu o ciclo quinhentas vezes. Nem toda a gente leu a tradução antes e se não domina o alemão, mesmo que tenha lido, não consegue encontrar o pé no meio de um ciclo que durou uma hora e cinco minutos. É por isso lamentável que nem sistema de legendagem tenha sido usado nem, na sua falta, as luzes da sala estivessem semi acesas de forma a permitir uma leitura da poesia no programa. Uma falta de cuidado e grande desatenção pelo público naquela que foi, até agora, a pérola (a única que vislumbrei este ano) de uma programação nitidamente feita com os pés. Uma falta de atenção que resulta em mais um desrespeito pelo público.
Etiquetas: Crítica de Recitais, Die Schöne Müllerin, S. Carlos, Schubert, Wilhelm Müller
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