27.6.07
Exmo. Sr. Comendador
Convidei-vos ontem para um jantar. Escrevi-vos ontem uma carta para jantar anteontem. Vós, na vossa ambiguidade majestática de pedra granítica, ou será marmórea, bem não interessa agora, numa voz de pedra vinda do inferno dissesteis que irias, indiferente à causalidade temporal que não afecta os mortos ou, dito de outra forma, não atinge os espectros errantes que vagueam nas trevas. Foi um convite para jantar, uma cena calma, um simples convite para jantar. De vil enganador para uma seráfica estátua, representação de uma forma inexistente, agora que está morto o modelo, imagem imperfeita, como a de todas as estátuas, que molda a representação do espírito. Comendador maroto que te deixaste matar, matando-me a mim. Esperei-te ao jantar, a carne era fraca mas a música era boa, música de harmonia para jantar, música nas despesas do jardim, como compete a casa que se preze. Senhor comendador, que dor me fazeis ao ver que uma estátua fria não come a carne dos meus pecados, pecados que, para os quais, me estou nas tintas. Escrevi-te, amigo comendador, foi ontem, não me lembro bem, eu que também confundo os dias nesta névoa de perdição em que me lançaste. Vejo-me obrigado a convidar-te para jantar todas as semanas, iludo o tempo como posso, mas o tempo não passa aqui como quando éramos vivos. Hoje também me fizeram estátua, caro comendador. Nós os dois deixámos a carne e passámos à pedra das estátuas, umas marmóreas, outras de notas, outros de cidades, outros, ainda, de fogo. Gostava de ter uma estátua de água, não de gelo, mas de água pura e cristalina, fria água mas bem líquida, amigo comendador que me mataste. Comendador a quem espetei um ferro frio naquela noite noite de carne e sangue. Pode um homem sentir mais do que carne e sangue? Agora feito pedra, tu e eu, estamos aqui a fazer convites para jantares aos quais não poderemos comparecer. Impotentes espectros sem forma, é ao ar de que somos feitos, aos ares noturnos em que vogamos, que regressamos, ainda e sempre, como no soneto de Antero.
Etiquetas: Morte, Real, Tempo, Vida
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