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10.4.07

Festival de Páscoa - Ouro do Reno - A perfeição 

Já escrevi um pouco sobre este Ouro do Reno de Salzburg, regresso agora para relembrar a força das pequenas grandes coisas. Depois de ver Vick a esforçar-se por destruir o conteúdo Wagneriano nas trapalhadas megalómanas de Lisboa, em que o sentido último das coisas foi sempre realizado em torno do ego e ideia do encenador a violar a obra mostrando quanto isso e ele próprio são magníficos. Olhem para mim: "eu é que sou o Vick, eu passo sem orquestra, sem maestro, sem música. Basto-me a mim, sem luzes, eu e o teatro, sou um génio". Este é o paradigma do encenador moderno. Ou talvez não. Depois de ouvir e ler um coro de elogios mais ou mesmo unânime, onde se destaca o próprio Sr. Hermenêutica, que parece ter adorado o conceito, não consegui resistir e tive uma pulsão imensa para regressar à encenação de Aix en Provence, agora no Festival de Páscoa de Salzburg. Encenação de Stéphane Braunschweig, direcção de Rattle, orquestra Filarmónica de Berlim.

De novo a intensa simplicidade do drama, cenografia dada pela música, orquestra personagem e factor motriz da acção. Já aqui escrevi sobre a magnificência da encenação e da música, volto para umas breves notas.
A 31 de Março, penavam os meus compatriotas em Lisboa com a Orquestra Sinfónica Portuguesa, e depois dos dias de Aix, a Filarmónica de Berlim voltou ao fosso da ópera. Wagner e o Ouro do Reno. A orquestra neste dia estava ainda mais refinada, o som era mais puro, o risco foi assumido na plena confiança de tudo poder. Rattle alterou sobretudo a violência com que a Tuba e a percussão realizaram as passagens mais sulfúreas da obra. Sem rasgar o som, os fortíssimos da tuba (incrívelmente dentro de uma estética sonora controlada) sobrepassaram toda a orquestra num efeito inusitado e violentíssimo, muito de acordo com o dragão ou com as fornalhas dos nibelungos. Os tímpanos foram também percutidos de forma violentíssima e seca, o que deu um efeito extremamente agressivo a estes momentos. Nunca tinha ouvido nada assim no Ouro do Reno, quer em gravação quer ao vivo. Ainda estou indeciso entre a crítica do efeito espúrio ou se aquilo faz sentido: em termos meramente analíticos e racionais acho desequilibrado, em termos emocionais achei fantástico, dionisíaco... Fico à espera do Siegfried dentro de dois anos, os efeitos sonoros do mesmo tipo multiplicam-se na celebração da natureza do Siegfried e Rattle provou que também consegue seduzir pela surpresa, pela experiência.

As bigornas trapalhonas de Aix foram substituidas por um efeito consistente e ritmado, violento e credível que, associado à força telúrica da tuba, criaram a máquina sonora da revolução industrial que Braunschweig habilmente capitalizou em termos cénicos.

A nota máxima de Rattle não foi, no entanto, este experimentalismo sonoro. Rattle sublinhou os detalhes e foi altamente conseguido no sentido de levar o drama para a frente, sem bloqueios. Foi propulsivo, rítmico e metódico, ao mesmo tempo que nunca deixou de ser subtil e refinado. Conduziu o canto com atenção, sublinhou o discurso, enfatizou os temas condutores. Nunca foi grosseiro ou brutal. Transparente nos pontos mais finos, como no prelúdio e primeira cena ou no momento em que as seis harpas entram no final, e telúrico nos momentos mais carregados, produziu um Wagner impossível e de sonho.
Os cantores foram quase os mesmo de Aix, fica aqui um resumo muito breve das suas actuações:
Wotan, Sir Willard White, excelente na sua idade, superou o nível de Aix quer como actor quer como cantor. Donner, Detlef Roth, superou muito a escala de Aix tendo sido muito mais consistente e imponente na sua invocação final. Froh, Joseph Kaiser, subiu de novo e muito, esteve rutilante nos agudos e mostrou-se melhor na representação. Loge, Robert Gambill, foi ainda superior a Aix, mais irónico e refinado, com a voz mais macia e subtil, esteve ao nível máximo possível. Fasolt, Iain Paterson, uma novidade no cast, talvez um pouco inferior ao nível do Fasolt de Aix provavelmente pela tensão da estreia, foi no entanto muito sólido. Fafner, Alfred Reiter, superou Aix, sendo mais brutal e profundo. Alberich, Dale Duesing, se em Aix criticámos a sua voz pequena e elogiámos a sua capacidade de composição, agora nem a voz pequena se notou tanto, esteve excelente. Mime, Burkhard Ulrich, excelente ao nível de Aix onde já tinha sido magistral, falta-lhe apenas um pouco mais de voz. Fricka, Lilli Paasikivi, esteve muito bem de novo, mesmo nível de Aix. Freia, Annete Dasch, uma nova aquisição em Salzburg que melhorou em muito o cast de Aix, Dasch tem uma belíssima voz, fresca e subtil, sem excesso de stress vocal e de vibrato; como actriz esteve atormentada pelo rapto e acabou cúmplice de Fasolt, perfeita. Erda, Anna Larsson, como sempre igual a si própria, ela é a encarnação de Erda, linda e profunda como a terra, um pequeno grande papel ao mesmo nível de Aix. Woglinde: Sarah Fox, mesmo bom nível de Aix. Wellgunde, Victoria Simmonds, superou um pouco Aix estando agora ao nível das outras filhas do Reno. Flosshilde, Ekaterina Gubanova, mesmo nível de Aix.
Como se viu se em Aix tinha sido excelente em Salzburg aproximámos o óptimo, até por questões acústicas (em Salzburg a acústica é muito superior ao velho teatro do Arcebispado). Creio ser impossível superar um tão belo e equilibrado naipe de cantores, sem nenhuma "super estrela" incluída. Bem como será quase impossível superar esta orquestra e esta direcção e conseguir uma encenação "pós-moderna" mais equilibrada com a música e o drama.

Deixámos de pensar e analisar para ouvir e sentir, retirando um prazer ilimitado da fruição da Obra de Arte Total. Finalmente.

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