Henrique Silveira - Crítico
Continuam as peripécias do folhetim Paolo Pinamonti. Este homem ubíquo não se sabe bem que funções desempenha em Portugal, agora será talvez (ex) putativo consultor artístico do Teatro Nacional de S. Carlos, que, aliás, é uma figura inexistente no quadro legal da instituição, em negociações para continuar a exercer funções, de que apresentou demissão, de uma forma “contratual” ou “extra-contratual”.
Sabemos, no entanto, que em Espanha é director do teatro da Zarzuela de Madrid e que neste país contratou 1.003, ou talvez um pouco menos, cantores a uma particular agência artística de Madrid. O leitor ficou confuso? É razão para isso. A embrulhada arranjada pelo actual titular da pasta de cultura deu origem a uma espécie de folhetim manhoso que não parece ter fim à vista.
Vamos tentar explicar o que se passou no mundo atribulado do S. Carlos desde o início desta história. Paolo Pinamonti foi director artístico do S. Carlos desde 2001 até ser despedido em 2007 por Mário Vieira de Carvalho das funções que começou por exercer de forma titubeante mas que terminou com algum sucesso relativo, facto apreciado pelo autor destas linhas que até ajudou a organizar um jantar de despedida e desagravo num espaço privado da sociedade comercial Theotónio Pereira, juntando críticos e jornalistas culturais portugueses, alguns desavindos há muito tempo mas unidos, finalmente, numa causa comum. Pinamonti fez a sua travessia do deserto, foi director do festival da Coruña e do Festival Terras sem Sombra, no Alentejo, finalmente foi convidado para dirigir o teatro da Zarzuela de Madrid como director artístico.
Depois da saída de Martin André, último director artístico do S. Carlos, houve um hiato de alguns meses em que Portugal percebeu que existia conhecimento e capacidade em Lisboa, nomeadamente no conselho de Administração do OPART, órgão que tutela o S. Carlos, que conseguiu ir montando algumas óperas, produção a produção, sem temporada definida a longo prazo, com escassíssimos recursos e valendo-se do excelente naipe de cantores nacionais existentes e cada vez melhor preparados.
Finalmente, Barreto Xavier resolveu ter a ideia peregrina de contratar um funcionário dos Filipes de Espanha para ser “consultor artístico” do teatro de S. Carlos. Era Paolo Pinamonti que era repescado, reciclado e desagravado daquilo que o PS lhe tinha feito e, numa versão recauchutada e em part-time, passaria a dirigir, do seu gabinete junto do palácio real de Madrid, o teatro de S. Carlos.
Era uma solução péssima. Pinamonti, que mal tem tempo para dirigir um teatro madrileno em actividade plena, teria de montar uma temporada de ópera completa em Lisboa, escolhia títulos, cantores, maestros com toda a componente artística da temporada, juntando a programação de concertos sinfónicos, de actividade de música de câmara e ainda o Festival ao Largo.
Uma ideia peregrina de Barreto Xavier, que bem demonstra a insignificância do personagem e a subserviência cultural relativamente a Espanha. Barreto Xavier viu o S. Carlos como uma espécie de apêndice menor do teatro da Zarzuela, afinal o orçamento que lhe deu era ridículo e até em part-time se poderia montar a insignificante temporada lisboeta.
E se o próprio secretário de Estado via a programação como algo que pudesse ser feito nos intervalos do despacho de Madrid, como poderia Pinamonti pensar e agir de outra forma?
Os resultados foram, naturalmente, desastrosos, a temporada lisboeta passou a incluir “espanholadas”, zarzuelas incluídas, veio uma armada de cantores espanhóis de péssima qualidade, os maestros espanhóis ignorantes e boçais sucederam-se, os cantores portugueses, de qualidade muito superior foram afastados ou relegados para papéis de sorvete.
Todos os cantores estrangeiros passaram a ser agenciados pela mesma agência de Madrid, onde parece que Pinamonti tem conta corrente. Apenas uma reposição de um Werther feito muitos anos antes pelo mesmo Pinamonti, uma espécie de ovo de Colombo, teve algum sucesso relativo entre os títulos programados pelo italiano.
Acrescente-se a isto a eliminação total de qualquer referencial cultural português: não foi programado um único título de compositores portugueses ao contrário dos títulos espanhóis de qualidade miserável e com cantores piores dos que usados em Madrid, uma espécie de segunda divisão, que tivemos de suportar por mérito de Pinamonti ver Lisboa como uma espécie de colónia de Madrid.
Pinamonti apresentou a demissão porque o contrato entretanto assinado a 5 de Novembro, depois de inúmeras trapalhadas em que se incluía uma dívida de 14.000 euros à nossa segurança social, não regularizada pelo próprio, era incompatível com o lugar da Zarzuela.
O patrão espanhol, Filipe VI em última instância, não gostava que o Sr. Pinamonti perdesse nem cinco minutos por dia a pensar no S. Carlos. O Senhor Secretário de Estado entrou em fúria e exigiu a cabeça do OPART, como se a ideia do Pinamonti não fosse uma teimosia sua, isso ou a (re)contratação de Pinamonti agora noutra forma legal qualquer que deixasse de ser incompatível.
A 21 de Dezembro era este o ponto da situação, Pinamonti aceitava conversar com o OPART, a ordens do senhor Barreto Xavier, para “poder ficar em Lisboa”, algo que para o italiano poderá ter uma componente fortemente lucrativa, mas que é ineficaz, artisticamente irrelevante e humilhante para quem pensa que Portugal é um Estado soberano com gente competente que se sabe dirigir, sem a necessidade de um Messias de segunda ordem em part-time.
Nestas questões Deus tem escrito direito com linhas tortas e espera-se que Madrid não deixe que a situação se arraste por muito tempo, porque nestas questões os espanhóis têm mais pundonor do que aquele que existe no governo de Portugal com as suas bandeirinhas na lapela.