<$BlogRSDUrl$>

20.9.07

A vida tem destas coisas 

Estava eu muito descansado quando o Tomás Marques da VGM me veio falar de um tal Homilius. Ele sabe que eu tenho um fraco por Dresden que resulta um pouco da minha paixão por Schütz, que é para mim um dos expoentes máximos da retórica em música, talvez o maior mestre da musica poetica. Schütz é um verdadeiro profeta de todos os génios que aliaram a música à palavra, um profeta de Bach, de Schubert, de Wagner, compositores tão díspares na aparência e com semelhanças mais profundas do que a óbvia citação do Erlkönig no prelúdio da Walküre. Schütz um ilustre do seu tempo, privando com reis e nobres da mais alta estirpe, uma luz nos anos sombrios da guerra dos trinta anos, cosmopolita, intelectual. Bach, o rude mestre de capela, pouco reconhecido no seu tempo como compositor, sem estudos superiores o que lhe trouxe desconsideração e dissabores, Schubert um pobre diabo baixote e gordo de Viena, sem ocupação conhecida, aprendiz de mestre escola boémio, frequentador de prostitutas, Wagner o megalómano, execrável para os amigos, visionário e desmesurado. Todos foram expoentes maiores do verbo vertido em música, uns nas grandes formas, outros nas pequenas. Quase que apetece dizer que Schütz foi o compositor da primeira ópera alemã (perdida) e Wagner o compositor da última... se não fosse uma barbaridade seria uma frase com piada.

Dizia-me então o Tomás, vai para mais de um ano (e quem não conhece o Tomás não sabe o que perde), que o Homilius é que estava a dar! Homilius para aqui, Homilius para ali. Dizia o Tomás façanhudo e tonitruante:
- É uma estreia mundial, música sublime e ... re-béu-béu-béu...
Às vezes gosto de contrariar o Tomás por puro deleite numa boa discussão, e obviamente desdenhei:
- Homilus? Não quererás dizer homilia? Estás a precisar de uma homilia...
- E que não, que não, o Homilius é fantástico, um compositor de estaleca, de Dresden.
- Alto - senti algo a espicaçar-me - de Dresden?
- Sim, de Dresden, num disco da Carus... o maestro é o Bernius.
- Da Carus? O Bernius? De Dresden? Mostra lá isso.

Era uma colecção de Motetes, um disco de 2004, doze dos motetes eram primeiras gravações mundiais. Foi com avidez que obtive os outros dois discos, cantatas da Frauenkirch de Dresden para a qual o Kreuzcantor Gottfried August Homilius compunha enquanto a igreja da Cruz não era recuperada da destruição provocada pela guerra dos sete anos.
Homilius é uma redescoberta recente, apenas a partir de 2004 se começou a editar em disco a obra deste compositor. Estudou em Leipzig provavelmente com J.S.Bach (há quem o afirme com certeza), o estilo é naturalmente mais moderno, uma vez que Homilius nasceu em 1714, mas existem muitas pontes. Homilius também se dedicou à música de Igreja, alguém disse (E. L. Gerber) que foi o maior compositor de igreja da Alemanha. Esta edição discográfica segue de perto a edição recente da Carus da música impressa de Homilius, a maior parte nunca editada anteriormente, e cuja maior parte resta ainda por tocar. Devo notar que os preços destas edições impressas da Carus não são caros!
Seria interessante ver alguma orquestra barroca portuguesa a pegar em compositores relativamente desconhecidos que seriam descobertas surpreendentes para os ouvintes, em vez de abordarem pela enésima vez o repertório mais que batido de Handel, Vivaldi e Bach...

Foi também com prazer que descobri nesse site da Carus que o editor da Gramophone me secundou ao considerar o disco da Missa em si menor de Bach, por Frieder Bernius, como "Best B Minor Mass in years" reforçando a ideia com que fiquei ao escutar esta gravação verdadeiramente sublime.
Os discos das cantatas e motetes de Homilius revelavam uma música extraordinária, uma variedade e um domínio técnico da arte da orquestração e da escrita para vozes e coro. Entretanto sairam duas paixões em 2007: uma paixão cantata (Ein Lämmlein geht und trägt die Schuld) em que se exprimem sobretudo sentimentos sem se seguir estritamente o texto dos Evangelhos e uma oratória paixão (Johannespassion) de teor mais próximo das paixões de Bach, por exemplo. Discos que confirmam o génio de mais um grande compositor de Dresden.
A subtileza dos recitativos, nunca monótonos, a linha melódica, os pontos de clímax e de distensão, a criatividade e variedade da orquestração, o uso das vozes no desenho da emoção descrita pela ligação da palavra à música e o sentido dramático, são constantes em Homilius. É notável na paixão seg. S. João o coral (bem antigo e conhecido e tratado por Bach numa das suas obras mais conhecidas que deixo ao leitor adivinhar depois de ouvir estes CD's de Homilius, fica o fácil desafio sobretudo para o João Chambers) orquestrado de uma forma impressionante com as trompas em grande destaque em figuras ondulantes obsessivas em fortíssimo. A ária de tenor que comenta a libertação de Barrabás é outro grande momento numa obra que vale pelo seu todo.

Estes dois discos da Carus são descobertas a não perder. Sobretudo pela música e também por interpretações apaixonadas e cuidadas. Creio bem que o João Chambers no seu programa "Musica Aeterna" vai dedicar umas emissões a este Homilius... Os leitores interessados poderiam assim apreciar esta música nas tardes do"Música Aeterna".
A vida tem destas coisas, existem surpresas em cada esquina, este Homilius é uma descoberta inesperada para mim, uma descoberta maior.

Ein Lämmlein geht und trägt die Schuld
Neue Düsseldorfer Hofmusik
Direcção de Fritz Näf - Carus 83.262

Gottfried August Homilius
Johannespassion
Dresdner Barockorchester; Dresdner Kreuzchor
Direcção de Roderich Kreile - Carus 83.261


Etiquetas: , , , , , ,


Arquivos

This page is powered by Blogger. Isn't yours?