12.6.06
Versão integral de uma entrevista passada na Antena 2
Entrevista a Emilio Pomàrico, maestro. Director musical de Rheingold de Wagner no Teatro Nacional de S. Carlos. 2/6/2006. (Lisboa)
Colocamos aqui a transcrição da versão integral da entrevista feita por nós a Emilio Pomàrico, uma vez que em rádio teve de ser significativamente reduzida por exigências de espaço. Pensamos importante deixar aqui o documento. A leitura, reinterpretação e a relativização crítica passam também, e muito, pela análise de opções e pensamentos dos criadores da acção performativa. Respondem também a dúvidas de quem reflecte e pensa, de forma crítica, nestes assuntos para além das atitudes puramente laudatórias, que não trazem nada de novo ao pensamento ontológico sobre a obra, a realização e o mundo.
Tradução do italiano
É a primeira vez que dirige o Rheingold?
Sim de facto é a primeira vez. Naturalmente.
Como enfrenta este desafio?
De uma forma extremamente activa, decidi afrontar o Ring inteiro, decisão difícil e consciente, sobretudo para um músico como eu, que durante tantos anos esteve longe da Ópera. Fiz ópera apenas no início da minha carreira de maestro. É complicado estar a assumir compromissos aos quais o intérprete deve submeter-se, como a ópera, onde as variantes são sempre tantas que, para obter o controlo do resultado final, se depende de muitas condições.
Quando me foi oferecida esta possibilidade pelo director do teatro, de participar nesta aventura, porque se trata de uma aventura, disse: deixa-me pensar um pouco. No final pensei que a minha condição de músico implicava fazer um confronto com esta obra, que, num certo consenso, divide a música; em que se estabelece uma completude do ponto de vista estético. É um momento de ruptura que se abre, decisivamente no caminho do futuro.
Como Wagner diz na carta a Uhlig?
Exactamente, não tanto como propósito programático de Wagner, mas como a forma de composição, como está composto.
É um longo recitativo?
Não só um longo recitativo, o problema é mais rico. Com efeito, quando se começa a analisar e a apreender conscientemente a forma como foi composta esta música, a engenharia é de altíssimo nível.
Explico: quando falo de engenharia, quero dizer que, seguramente, a inspiração ocupa um aspecto muito importante. Mas não é de facto, o dado mais determinante, em Wagner há um uso tão sábio e consciente do que sabia e queria, de elementos de um passado ao qual pertencia historicamente mas eram usados com enorme sabedoria e engenho para obter o resultado a que se propunha. Em Wagner assistimos pela primeira vez a uma forma de compor nova música. Por exemplo: o uso de alguns recursos que surgem ao longo de todas as suas óperas, falamos por exemplo de Leitmotif wagneriano que, de uma forma um pouco simplista define esta técnica.
Entramos num modo novo de compor, por objectos musicais, que dá logo uma estrutura à forma que não aquela que se conhecia naquele momento, isto é: um discurso musical, que obtém logo à partida um desenvolvimento do material musical, em Wagner, nas grandes óperas, no Ring sobretudo, é assim motivicamente conexo nos seus quatro capítulos. Começamos a descobrir uma utilização nova do material.
Mas o pensamento motívico não é o pensamento motivador desta música. Onde o génio wagneriano emerge verdadeiramente é no aspecto harmónico. De onde, finalmente, habilita uma relação…
Como no terceiro acto de Siegfried?
De facto, talvez seja no Ouro do Reno a ópera em que isto seja menos evidente.
Wagner terá sido demasiado dogmático, uma vez que na altura em que compunha o Ouro do Reno também escreveu "Oper und Drama", onde teoriza a ópera do futuro?
Digamos que no Ouro do Reno havia a necessidade de, quer do ponto de vista poético, quer do ponto de vista musical, estabelecer uma base para este longo desenvolvimento. Sabemos todos que Wagner começou a escrever a morte de Siegfried e dali começou a perceber que não podia condensar nesta ópera todo este plano dramático, que se estava a desenvolver perante os seus olhos, e começou a andar para trás, numa espécie de palímdrome e numa aproximação filosófica, seguramente.
E depois de 1854, o encontro com a filosofia de Schopenhauer…
Sim, o encontro com a filosofia de Schopenhauer e sobretudo a sua interpretação da filosofia de Schopenhauer, isto é necessário dizer. E também o encontro com uma personagem como Nietzsche, e a crítica que Nietzsche fez publicamente de forma traumática, até o ponto de vista das relações pessoais. Não podemos esquecer que Nietzsche se afastou dramaticamente de Wagner. No momento em que compreendeu que este pessimismo, esta negatividade cósmica era sistemática, e não via nenhum outro tipo de solução do ponto de vista ético, criativo. De facto, o ponto de vista do ideal da função musical era [para Nietzsche] a Carmen de Bizet, o que não deixa de ser um pouco paradoxal. Mas que não deixa de ser significativo face à necessidade de redenção e uma possibilidade de futuro, que este conceito wagneriano auto complacente não contempla, não em termos de lamento, mas em termos de sistema e programa.
Wotan, renúncia, o ideal do último Wagner?
Sim, sim, também. No meu modo de ver, é um pessimismo, um pouco… artificioso. É preciso estar muito atento a este personagem. Wagner tinha necessidade de uma corte de admiradores. E sabia muito bem como rodear-se desta corte. Soube sempre, mesmo no período revolucionário, e sabemo-lo através das suas cartas, havia um pouco de instrumentalização que lhe era útil como homem do mundo e homem de sucesso.
É seguro que o maestro Pomàrico vai fazer todo o Ring?
É uma boa questão, nos nossos planos sim, é o que estava pensado no início, sim penso que sim, obviamente…
É necessária uma equipa, como funciona com Graham Vick?
...obviamente, do ponto de vista do estruturar-se a coisa, criámos uma situação prática completamente nova. Um teatro que é totalmente mudado na sua disposição tradicional, a ideia de base é extraordinária, esta cenografia, esta plateia que se torna palco. Obviamente que somos confrontados com problemas notáveis, de ordem prática, e acústica.
E teórica?
E até teórica, num certo sentido.
Existe uma oposição Luz/sombra S. Carlos de Vick e o Bayreuth imaginado por Wagner?
No conceito wagneriano toda a atenção deveria estar centrada, dedicada, concentrada no acontecimento, ao que acontecia em cena. Mas também faz parte do tempo, do ponto cultural em que se estava, deve-se ter isso em consideração.
O que encontro de inteligente e positivo é a resolução de uma impossibilidade técnica, acolher uma orquestra grande como o Ring requer, num fosso como o do S. Carlos, era uma impossibilidade. Aqui pode-se fazer uma ópera rossiniana, ou mozartiana. O fosso é insuficiente para conter os músicos. Quando estive cá para fazer esta magnífica produção de Neither de Morton Feldman, tive de reduzir os arcos, porque no primeiro momento em que cheguei ao fosso, percebi que não era fisicamente possível, não havia espaço, é um problema para uma cidade capital europeia como Lisboa. Que fazer? Reestruturar uma sala como a do S. Carlos? Será um problema, obviamente é um património histórico, 1755 é um ano que divide a vossa história de uma forma dramática, e o S. Carlos é um dos primeiros edifícios públicos, assim importantes, que testemunhará a civilização cultural desta cidade. Obviamente, um Teatro de ópera do século XXI, põe uma série de problemáticas, que uma cidade deverá mais cedo ou mais tarde afrontar.
Voltando à situação cenográfica actual. Esta aproximação é extremamente inteligente, o público é totalmente integrado na estrutura da representação cénica. O público faz parte. Num certo sentido o público é parte, está próximo do acontecimento,
À maneira de Brecht?
Esse é o credo dramático de Vick, e o público torna-se parte activa, isto importa se talvez não uma dispersão mas, no entanto, pontos focais que variam e dependem até da forma como o público se dispõe na sala. Do ponto de vista da estrutura palco/orquestra isto põe problemas enormes.
Comunicação?
Sim! De comunicação, seguramente a parte musical é aquela onde se fazem compromissos maiores. E encontro condições de tal modo limite, para se poder exprimir um conceito interpretativo coerente, que me vejo submetido a necessidades logísticas, que não são coerentes com a minha ideia interpretativa. Obviamente o Rheingold é apenas um primeiro capítulo. O que poderemos fazer para procurar um maior equilíbrio, imanente ao conceito estético da ópera wagneriana, não o podemos esquecer, no futuro? Temos de encontrar uma condição dialéctica, entre o palco e a orquestra, que me possa permitir trabalhar. Neste caso eu compreendi logo no final do primeiro ensaio cénico que se não tivesse de fazer tremendas concessões seria muito difícil dar uma coerência orgânica ao todo.
A performance da orquestra tem subido de forma ao longo das récitas, como justifica isso, não teve tempo suficiente antes da estreia?
Uma das razões porque aceitei fazer o Ring aqui em Lisboa, e não é uma razão secundária, é a relação que tenho podido estabelecer com esta orquestra. Uma simples constatação: eu penso sempre que uma boa relação entre maestro e orquestra resulta sempre numa melhoria da qualidade. O tempo de preparação foi problemático, não nos preparámos para defrontar tantas dificuldades de conjunto, e tão grandes, por causa das condições acústicas. Segundo penso, existem ainda alterações que se devem fazer no palco, existe uma parte da orquestra que ainda está coberta. Praticamente está a orquestra toda coberta e apenas os arcos estão numa zona aberta e soam directamente na sala, e isto, de facto, não funciona. Sobretudo pelas madeiras que não se ouvem. E sobretudo tudo o que deveriam soar piano ou pianíssimo, delicado, tudo está completamente alterado porque não basta. É um problema muito grande, obviamente, quando no início da entrevista eu disse que resolvi aceitar múltiplos compromissos do ponto de vista da coerência interpretativa, um destes compromissos é mesmo esse, por exemplo durante os ensaios um dos assistentes aparecia e dizia: há ali um ponto onde não se consegue escutar nada, eu dizia: não é possível, eu aqui ouço tudo, chega-me uma quantidade de som ao pódio que é enorme, todo o som sai em direcção a mim, e obviamente não atinge a sala, esta enorme massa de som.
Em suma, os problemas, do ponto de vista da acústica, transformam-se em problemas de carácter interpretativo, [eu] diria que se deveriam fazer ajustamentos, um desenvolvimento necessário é seguramente esse.
Uma orquestra em palco no TNSC poderia corrigir estes problemas?
Provavelmente, não sei, não acredito, surgiriam problemas de outra natureza. Coordenar uma entidade imóvel como a orquestra com a acção cénica?
Assim como está o fosso, está bem, mas deverá ser melhorada a acústica para que a orquestra possa soar mais. Outra razão é obter uma força de arcos que não é a prevista em Wagner. Temos 12 primeiros e 12 segundos violinos em vez de 16 mais 16, e ainda 14 violas, 12 violoncelos e 8 contrabaixos. Tentei reforçar o registo médio grave que dramaticamente tem o papel principal, mantive 10 violas, 10 violoncelos e 6 contrabaixos.
Como trabalhar os divisi? Há muitos divisi nesta obra.
É muito difícil, tornou-se muito difícil, e os divisi estavam já reforçados, e fui reforçando, de acordo com a necessidade do momento, mas há aspectos que são irresolúveis neste ponto de vista. Faz parte do compromisso. Se em Lisboa existisse um Teatro como Bayreuth, não existiriam estes problemas. Mas para haver o Ring em Lisboa no Teatro S. Carlos, estes são aspectos com que se tem de contar. Mas, e reforço, e isto é muito importante: deve ser tudo pensado em termos de um work in progress , um trabalho em progresso, e se a ideia é dar a Lisboa uma coisa que muito poucas cidades têm tido - as quatro jornadas em conjunto - eu creio que se chegará a um nível grande de experiência, porque uma boa parte destes problemas serão superados e resolvidos. Esta é uma primeira aproximação. Fizemos até agora quatro récitas, nesta quarta récita temos finalmente um som estabilizado. Todos nós que conhecem os defeitos da acústica estamos a reagir a estes defeitos, de forma a garantir o máximo da coerência, e parece que estamos a conseguir. Pela primeira vez, e com grande satisfação de todos quantos participaram neste projecto, estou confiante que o progresso do trabalho será melhor.
Qual é para si o personagem mais importante do Ring?
Em minha opinião o mais importante personagem não é um personagem singular, é a correcta relação dramático musical entre vários personagens, saber individualizar sempre coerentemente no interior de cada simples ópera, quais são as relações entre os vários personagens, e saber gerir estas relações, mas ter o máximo de coerência do ponto de vista da estrutura musical. Em alguns momentos, há um quê de tautológico nas óperas de Wagner, a música descreve o texto mas o texto já está, num certo sentido, em redundância com a música, a música na maior parte desta ópera assume uma função cenográfica. A música é já cenografia, a música é já visualização do drama! Naturalmente o que isto implica e vimo-lo em tantas realizações cenográficas no decorrer final do século XX, e no início deste nosso século XXI, que frequentemente esta estreita relação dialéctica é desequilibrada a favor de um dos dois componentes. Eu penso sempre que a qualidade do contraponto do tecido musical não pode deixar de ser tido em conta quando se propõe uma acção cénica. É nesta desigualdade entre as duas componentes que se está a desgastar a justeza desta relação e a coerência dramática da obra. E a coerência dramática que, segundo penso, é o personagem principal da Tetralogia, e não só da Tetralogia. Em virtude do posicionamento histórico de hoje, em que se é livre de interpretar, a metáfora é quase obrigatória numa mise en scène de uma obra como o Ring. Eu constato que, muito frequentemente, a metáfora é uma coisa que acaba por diminuir a qualidade, não tanto da música, mas a relação dramática entre acção, texto e a música que a exprime. Sublinho a importância que há na música. O que Wagner compôs musicalmente é um dado cenográfico altamente significativo. Que não pode deixar de ser tomado em conta. Toda a nova encenação deve ter em conta esta dialéctica, que sendo dialéctica implica compromissos construtivos, é necessário encontrar a possibilidade de conjugar o tudo e torná-lo coerente, algumas vezes diminuir a importância da música, outras vezes o sacrifício recai sobre a cena. Em todos os casos é tal a riqueza que a colectividade pode esperar, ao vivo, de uma coisa deste género que penso que estes compromissos não podem ser outros.
Sou extremamente crítico quando se faz uma exaltação da coerência interpretativa de uma realização discográfica em detrimento da execução ao vivo com a cena. Não se pode comparar.
Os cantores são os elementos da orquestra que têm autorização para falar (Wagner)?
Obviamente, e podem exprimir-se, porque no interior de uma estrutura compositivamente assim organizada que lhes permite aparecer, surgir, exprimir os dados poéticos através do verbo. Eu sublinho que esta é uma crítica a todos os críticos que nos seus textos dizem: "Ah, sim, mas a interpretação vocal não era focalizada". Eu aceito estas críticas, obviamente. Mas convido estes senhores, na sua consciência, a terem em conta que se trata de um evento teatral, e não um evento puramente musical. Para um músico, para um director de orquestra o óptimo não é a cena, o óptimo é a execução em concerto, onde a coerência entre canto e parte instrumental pode ser levada ao extremo limite da perfeição, quem não se dá conta deste facto incorre num empobrecimento de conceito.
Colocamos aqui a transcrição da versão integral da entrevista feita por nós a Emilio Pomàrico, uma vez que em rádio teve de ser significativamente reduzida por exigências de espaço. Pensamos importante deixar aqui o documento. A leitura, reinterpretação e a relativização crítica passam também, e muito, pela análise de opções e pensamentos dos criadores da acção performativa. Respondem também a dúvidas de quem reflecte e pensa, de forma crítica, nestes assuntos para além das atitudes puramente laudatórias, que não trazem nada de novo ao pensamento ontológico sobre a obra, a realização e o mundo.
Tradução do italiano
É a primeira vez que dirige o Rheingold?
Sim de facto é a primeira vez. Naturalmente.
Como enfrenta este desafio?
De uma forma extremamente activa, decidi afrontar o Ring inteiro, decisão difícil e consciente, sobretudo para um músico como eu, que durante tantos anos esteve longe da Ópera. Fiz ópera apenas no início da minha carreira de maestro. É complicado estar a assumir compromissos aos quais o intérprete deve submeter-se, como a ópera, onde as variantes são sempre tantas que, para obter o controlo do resultado final, se depende de muitas condições.
Quando me foi oferecida esta possibilidade pelo director do teatro, de participar nesta aventura, porque se trata de uma aventura, disse: deixa-me pensar um pouco. No final pensei que a minha condição de músico implicava fazer um confronto com esta obra, que, num certo consenso, divide a música; em que se estabelece uma completude do ponto de vista estético. É um momento de ruptura que se abre, decisivamente no caminho do futuro.
Como Wagner diz na carta a Uhlig?
Exactamente, não tanto como propósito programático de Wagner, mas como a forma de composição, como está composto.
É um longo recitativo?
Não só um longo recitativo, o problema é mais rico. Com efeito, quando se começa a analisar e a apreender conscientemente a forma como foi composta esta música, a engenharia é de altíssimo nível.
Explico: quando falo de engenharia, quero dizer que, seguramente, a inspiração ocupa um aspecto muito importante. Mas não é de facto, o dado mais determinante, em Wagner há um uso tão sábio e consciente do que sabia e queria, de elementos de um passado ao qual pertencia historicamente mas eram usados com enorme sabedoria e engenho para obter o resultado a que se propunha. Em Wagner assistimos pela primeira vez a uma forma de compor nova música. Por exemplo: o uso de alguns recursos que surgem ao longo de todas as suas óperas, falamos por exemplo de Leitmotif wagneriano que, de uma forma um pouco simplista define esta técnica.
Entramos num modo novo de compor, por objectos musicais, que dá logo uma estrutura à forma que não aquela que se conhecia naquele momento, isto é: um discurso musical, que obtém logo à partida um desenvolvimento do material musical, em Wagner, nas grandes óperas, no Ring sobretudo, é assim motivicamente conexo nos seus quatro capítulos. Começamos a descobrir uma utilização nova do material.
Mas o pensamento motívico não é o pensamento motivador desta música. Onde o génio wagneriano emerge verdadeiramente é no aspecto harmónico. De onde, finalmente, habilita uma relação…
Como no terceiro acto de Siegfried?
De facto, talvez seja no Ouro do Reno a ópera em que isto seja menos evidente.
Wagner terá sido demasiado dogmático, uma vez que na altura em que compunha o Ouro do Reno também escreveu "Oper und Drama", onde teoriza a ópera do futuro?
Digamos que no Ouro do Reno havia a necessidade de, quer do ponto de vista poético, quer do ponto de vista musical, estabelecer uma base para este longo desenvolvimento. Sabemos todos que Wagner começou a escrever a morte de Siegfried e dali começou a perceber que não podia condensar nesta ópera todo este plano dramático, que se estava a desenvolver perante os seus olhos, e começou a andar para trás, numa espécie de palímdrome e numa aproximação filosófica, seguramente.
E depois de 1854, o encontro com a filosofia de Schopenhauer…
Sim, o encontro com a filosofia de Schopenhauer e sobretudo a sua interpretação da filosofia de Schopenhauer, isto é necessário dizer. E também o encontro com uma personagem como Nietzsche, e a crítica que Nietzsche fez publicamente de forma traumática, até o ponto de vista das relações pessoais. Não podemos esquecer que Nietzsche se afastou dramaticamente de Wagner. No momento em que compreendeu que este pessimismo, esta negatividade cósmica era sistemática, e não via nenhum outro tipo de solução do ponto de vista ético, criativo. De facto, o ponto de vista do ideal da função musical era [para Nietzsche] a Carmen de Bizet, o que não deixa de ser um pouco paradoxal. Mas que não deixa de ser significativo face à necessidade de redenção e uma possibilidade de futuro, que este conceito wagneriano auto complacente não contempla, não em termos de lamento, mas em termos de sistema e programa.
Wotan, renúncia, o ideal do último Wagner?
Sim, sim, também. No meu modo de ver, é um pessimismo, um pouco… artificioso. É preciso estar muito atento a este personagem. Wagner tinha necessidade de uma corte de admiradores. E sabia muito bem como rodear-se desta corte. Soube sempre, mesmo no período revolucionário, e sabemo-lo através das suas cartas, havia um pouco de instrumentalização que lhe era útil como homem do mundo e homem de sucesso.
É seguro que o maestro Pomàrico vai fazer todo o Ring?
É uma boa questão, nos nossos planos sim, é o que estava pensado no início, sim penso que sim, obviamente…
É necessária uma equipa, como funciona com Graham Vick?
...obviamente, do ponto de vista do estruturar-se a coisa, criámos uma situação prática completamente nova. Um teatro que é totalmente mudado na sua disposição tradicional, a ideia de base é extraordinária, esta cenografia, esta plateia que se torna palco. Obviamente que somos confrontados com problemas notáveis, de ordem prática, e acústica.
E teórica?
E até teórica, num certo sentido.
Existe uma oposição Luz/sombra S. Carlos de Vick e o Bayreuth imaginado por Wagner?
No conceito wagneriano toda a atenção deveria estar centrada, dedicada, concentrada no acontecimento, ao que acontecia em cena. Mas também faz parte do tempo, do ponto cultural em que se estava, deve-se ter isso em consideração.
O que encontro de inteligente e positivo é a resolução de uma impossibilidade técnica, acolher uma orquestra grande como o Ring requer, num fosso como o do S. Carlos, era uma impossibilidade. Aqui pode-se fazer uma ópera rossiniana, ou mozartiana. O fosso é insuficiente para conter os músicos. Quando estive cá para fazer esta magnífica produção de Neither de Morton Feldman, tive de reduzir os arcos, porque no primeiro momento em que cheguei ao fosso, percebi que não era fisicamente possível, não havia espaço, é um problema para uma cidade capital europeia como Lisboa. Que fazer? Reestruturar uma sala como a do S. Carlos? Será um problema, obviamente é um património histórico, 1755 é um ano que divide a vossa história de uma forma dramática, e o S. Carlos é um dos primeiros edifícios públicos, assim importantes, que testemunhará a civilização cultural desta cidade. Obviamente, um Teatro de ópera do século XXI, põe uma série de problemáticas, que uma cidade deverá mais cedo ou mais tarde afrontar.
Voltando à situação cenográfica actual. Esta aproximação é extremamente inteligente, o público é totalmente integrado na estrutura da representação cénica. O público faz parte. Num certo sentido o público é parte, está próximo do acontecimento,
À maneira de Brecht?
Esse é o credo dramático de Vick, e o público torna-se parte activa, isto importa se talvez não uma dispersão mas, no entanto, pontos focais que variam e dependem até da forma como o público se dispõe na sala. Do ponto de vista da estrutura palco/orquestra isto põe problemas enormes.
Comunicação?
Sim! De comunicação, seguramente a parte musical é aquela onde se fazem compromissos maiores. E encontro condições de tal modo limite, para se poder exprimir um conceito interpretativo coerente, que me vejo submetido a necessidades logísticas, que não são coerentes com a minha ideia interpretativa. Obviamente o Rheingold é apenas um primeiro capítulo. O que poderemos fazer para procurar um maior equilíbrio, imanente ao conceito estético da ópera wagneriana, não o podemos esquecer, no futuro? Temos de encontrar uma condição dialéctica, entre o palco e a orquestra, que me possa permitir trabalhar. Neste caso eu compreendi logo no final do primeiro ensaio cénico que se não tivesse de fazer tremendas concessões seria muito difícil dar uma coerência orgânica ao todo.
A performance da orquestra tem subido de forma ao longo das récitas, como justifica isso, não teve tempo suficiente antes da estreia?
Uma das razões porque aceitei fazer o Ring aqui em Lisboa, e não é uma razão secundária, é a relação que tenho podido estabelecer com esta orquestra. Uma simples constatação: eu penso sempre que uma boa relação entre maestro e orquestra resulta sempre numa melhoria da qualidade. O tempo de preparação foi problemático, não nos preparámos para defrontar tantas dificuldades de conjunto, e tão grandes, por causa das condições acústicas. Segundo penso, existem ainda alterações que se devem fazer no palco, existe uma parte da orquestra que ainda está coberta. Praticamente está a orquestra toda coberta e apenas os arcos estão numa zona aberta e soam directamente na sala, e isto, de facto, não funciona. Sobretudo pelas madeiras que não se ouvem. E sobretudo tudo o que deveriam soar piano ou pianíssimo, delicado, tudo está completamente alterado porque não basta. É um problema muito grande, obviamente, quando no início da entrevista eu disse que resolvi aceitar múltiplos compromissos do ponto de vista da coerência interpretativa, um destes compromissos é mesmo esse, por exemplo durante os ensaios um dos assistentes aparecia e dizia: há ali um ponto onde não se consegue escutar nada, eu dizia: não é possível, eu aqui ouço tudo, chega-me uma quantidade de som ao pódio que é enorme, todo o som sai em direcção a mim, e obviamente não atinge a sala, esta enorme massa de som.
Em suma, os problemas, do ponto de vista da acústica, transformam-se em problemas de carácter interpretativo, [eu] diria que se deveriam fazer ajustamentos, um desenvolvimento necessário é seguramente esse.
Uma orquestra em palco no TNSC poderia corrigir estes problemas?
Provavelmente, não sei, não acredito, surgiriam problemas de outra natureza. Coordenar uma entidade imóvel como a orquestra com a acção cénica?
Assim como está o fosso, está bem, mas deverá ser melhorada a acústica para que a orquestra possa soar mais. Outra razão é obter uma força de arcos que não é a prevista em Wagner. Temos 12 primeiros e 12 segundos violinos em vez de 16 mais 16, e ainda 14 violas, 12 violoncelos e 8 contrabaixos. Tentei reforçar o registo médio grave que dramaticamente tem o papel principal, mantive 10 violas, 10 violoncelos e 6 contrabaixos.
Como trabalhar os divisi? Há muitos divisi nesta obra.
É muito difícil, tornou-se muito difícil, e os divisi estavam já reforçados, e fui reforçando, de acordo com a necessidade do momento, mas há aspectos que são irresolúveis neste ponto de vista. Faz parte do compromisso. Se em Lisboa existisse um Teatro como Bayreuth, não existiriam estes problemas. Mas para haver o Ring em Lisboa no Teatro S. Carlos, estes são aspectos com que se tem de contar. Mas, e reforço, e isto é muito importante: deve ser tudo pensado em termos de um work in progress , um trabalho em progresso, e se a ideia é dar a Lisboa uma coisa que muito poucas cidades têm tido - as quatro jornadas em conjunto - eu creio que se chegará a um nível grande de experiência, porque uma boa parte destes problemas serão superados e resolvidos. Esta é uma primeira aproximação. Fizemos até agora quatro récitas, nesta quarta récita temos finalmente um som estabilizado. Todos nós que conhecem os defeitos da acústica estamos a reagir a estes defeitos, de forma a garantir o máximo da coerência, e parece que estamos a conseguir. Pela primeira vez, e com grande satisfação de todos quantos participaram neste projecto, estou confiante que o progresso do trabalho será melhor.
Qual é para si o personagem mais importante do Ring?
Em minha opinião o mais importante personagem não é um personagem singular, é a correcta relação dramático musical entre vários personagens, saber individualizar sempre coerentemente no interior de cada simples ópera, quais são as relações entre os vários personagens, e saber gerir estas relações, mas ter o máximo de coerência do ponto de vista da estrutura musical. Em alguns momentos, há um quê de tautológico nas óperas de Wagner, a música descreve o texto mas o texto já está, num certo sentido, em redundância com a música, a música na maior parte desta ópera assume uma função cenográfica. A música é já cenografia, a música é já visualização do drama! Naturalmente o que isto implica e vimo-lo em tantas realizações cenográficas no decorrer final do século XX, e no início deste nosso século XXI, que frequentemente esta estreita relação dialéctica é desequilibrada a favor de um dos dois componentes. Eu penso sempre que a qualidade do contraponto do tecido musical não pode deixar de ser tido em conta quando se propõe uma acção cénica. É nesta desigualdade entre as duas componentes que se está a desgastar a justeza desta relação e a coerência dramática da obra. E a coerência dramática que, segundo penso, é o personagem principal da Tetralogia, e não só da Tetralogia. Em virtude do posicionamento histórico de hoje, em que se é livre de interpretar, a metáfora é quase obrigatória numa mise en scène de uma obra como o Ring. Eu constato que, muito frequentemente, a metáfora é uma coisa que acaba por diminuir a qualidade, não tanto da música, mas a relação dramática entre acção, texto e a música que a exprime. Sublinho a importância que há na música. O que Wagner compôs musicalmente é um dado cenográfico altamente significativo. Que não pode deixar de ser tomado em conta. Toda a nova encenação deve ter em conta esta dialéctica, que sendo dialéctica implica compromissos construtivos, é necessário encontrar a possibilidade de conjugar o tudo e torná-lo coerente, algumas vezes diminuir a importância da música, outras vezes o sacrifício recai sobre a cena. Em todos os casos é tal a riqueza que a colectividade pode esperar, ao vivo, de uma coisa deste género que penso que estes compromissos não podem ser outros.
Sou extremamente crítico quando se faz uma exaltação da coerência interpretativa de uma realização discográfica em detrimento da execução ao vivo com a cena. Não se pode comparar.
Os cantores são os elementos da orquestra que têm autorização para falar (Wagner)?
Obviamente, e podem exprimir-se, porque no interior de uma estrutura compositivamente assim organizada que lhes permite aparecer, surgir, exprimir os dados poéticos através do verbo. Eu sublinho que esta é uma crítica a todos os críticos que nos seus textos dizem: "Ah, sim, mas a interpretação vocal não era focalizada". Eu aceito estas críticas, obviamente. Mas convido estes senhores, na sua consciência, a terem em conta que se trata de um evento teatral, e não um evento puramente musical. Para um músico, para um director de orquestra o óptimo não é a cena, o óptimo é a execução em concerto, onde a coerência entre canto e parte instrumental pode ser levada ao extremo limite da perfeição, quem não se dá conta deste facto incorre num empobrecimento de conceito.
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