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5.6.06

Duas comunicações privadas aos amigos 

Alguns amigos que receberam os emails que escrevi depois de chegar a casa na noite da estreia do Ouro do Reno (enviado no dia seguinte de manhã) e depois da terceira récita, apelaram-me para tornar públicas as reflexões sobre o assunto.
Depois da estreia acabei por ver o Ouro do Reno mais uma vez, a primeira tinha sido na bancada, a segunda num belíssimo camarote de cinco lugares, lugar desafogado para se apreciar a solo esta ópera - obrigado ao Filipe, que dispunha dos lugares e não conseguiu ir. A primeira reflexão resulta da experiência de audição de uma estreia, a segunda de uma terceira récita em melhores condições de conforto e acústicas. A parêntesis rectos estão comentários feitos posteriormente. Desnecessário será dizer que considero esta produção francamente positiva, pesando os prós e contras e avaliando a crescente prestação da orquestra e o esforço de músicos numa orquestra ainda reduzida face ao tamanho exigido por Wagner, avaliando a direcção musical e a experiência em si, apesar dos óbvios erros da encenação ao menosprezar francamente a parte estritamente musical, apesar de achar que o teatro não se pode democratizar (como dizia Ron Howell, o "coreógrafo" fetiche do encenador, na Pública, afinal o menos capaz a realizar) e que Brecht é inapropriado como forma de ver Wagner, considero a aposta ganha e atribuo 16 ao conjunto final do Ouro do Reno (14-15 para encenação), isto se passarmos uma esponja pelos defeitos óbvios e se esses defeitos se corrigirem no resto da produção lisboeta do Ring.
Uma nota francamente positiva para a componente operática de Paolo Pinamonti como director do TNSC e de gestor de Teatro de Ópera. Gestão também notável pela resolução inteligente do problema do Coro do Teatro, que saiu do vermelho graças à escolha de Andreoli como director. Infelizmente uma análise de todo o mandato até o momento terá de ter em conta a evolução da OSP, que nestes últimos anos pouco tem ganho em termos qualitativos e que nem sequer um maestro titular responsável apresenta à sua frente. A Orquestra Nacional do Porto conseguiu sair de um lugar secundário que ocupava, contemporâneo com o início do mandato de Pinamonti, e afirmar-se claramente como a melhor orquestra de cariz sinfónico em Portugal, gastando muito menos recursos do que a OSP. É evidente que Vaz de Carvalho, ajudado por um maestro estável (Marc Tardue), realizou um trabalho de valor à frente da ONP que Pinamonti não conseguiu produzir com a OSP. Tendo de dirigir um teatro de ópera, produções, coro, avaliar propostas, lidar com crises financeiras... Pinamonti não conseguiu, até ao momento, resolver os crónicos problemas da OSP. Será ainda possível? Seria óptimo que num momento de grande acalmia artística, que se atravessa, e com o apoio da tutela, que tem, enfrentasse de frente o problema e dotasse a OSP de um maestro titular competente e forte, e de um rumo estratégico de longo prazo. Seria ainda melhor se conseguisse obter uma solução para condições de trabalho da orquestra, afinal o ponto de partida básico para a necessária e futura exigência de qualidade. Mas, agora que apenas falta o apêndice nasal de Chostakovitch para acabar a temporada lírica, o balanço da direcção de Pinamonti terá de ter avaliação francamente positiva apesar dos problemas citados.


Algumas notas muito esquemáticas sobre a produção do TNSC do Ouro do Reno de Wagner. [Lisboa, 29 de Maio de 2006, 11h21m]

1 - Parece-me uma aposta ganha em termos puramente teatrais, a encenação de Graham Vick sem trazer nada de novo ao estilo roupão comprido para os deuses burgueses opressores e à velha parábola, exploradores burgueses despreocupados versus desgraçados nibelungos explorados, consegue mostrar Wagner e não o negar. A colocação do palco na habitual plateia é resultado da necessidade e não do génio. A orquestra não cabia no fosso habitual.

2- A colocação experimental da cena no local onde foi colocado tem problemas graves: a acústica não funciona, quando os cantores estão de costas perde-se totalmente a projecção vocal, e a audição depende fortemente da posição dos elementos do público face à posição dos cantores. É irregular e não privilegia a compreensão do texto, sobretudo quando os cantores estão de costas e longe, cria-se assim uma violação grave de alguns princípios wagnerianos: distância mágica (obtida em Bayreuth pelo duplo proscénio), absoluta primazia da compreensão da palavra.
Ganha-se a democratização, tão cara a Wagner? Por um lado sim, os cantores cantam muito próximo do público disposto em 360 graus, por outro lado perde-se pelo facto de cantarem maioritariamente de costas para a maioria do público, virados para onde quer que estejam, por consequência existirão sempre mais expectadores "discriminados" do que incluídos! Não existe ponto focal, facto que se consegue com o sistema grego (ou de Bayreuth), mas infelizmente o S. Carlos não tem condições para isso, acabamos com uma espécie de disposição do Globe Theater, que é tudo menos democrática...

3 - Lugar da orquestra, orquestra em segundo plano, o elemento fundamental da orquestra no drama wagneriano ficou totalmente relegado para segundo plano. Se em Bayreuth o som se insinua por entre o palco e o público, criando uma cortina sonora que as vozes têm de penetrar, por muito suavizado que o som seja pela reflexão na antepara que cobre o maestro, em S. Carlos a Orquestra está totalmente excêntrica. Se a orquestra estivesse em palco, como seria lógico num coro grego, talvez a encenação tivesse atingido o "genial", nome tão abusivamente usado para a função do encenador, genial era mesmo só um, o Wagner. Por detrás dos cantores e por baixo do chão lá está a orquestra. Distante, pálida, reflectida... No caso da OSP talvez até seja boa ideia, mas uma perspectiva de música de fundo não é o meu apelo de Wagner.

4 - Orquestra: muito fraca nas partes sinfónicas, prelúdo arruinado por trompas que pura e simplesmente falharam as suas notas de entrada no harpejo de mil bemol maior. Músicas de transformação sem alma, cordas agudas desafinadas em extremo, sobretudo em partes em divisi. Música de transformação da descida dos Deuses numa indiscritível confusão sem o menor ritmo, uma chinfrineira de pseudo bigornas todas a baterem ao calhas e sem o ritmo certo e batido exigido por Wagner, depois de ouvir Solti, Karajan, Boulez, Kna, Böhm, Sawalisch (1989) ou até Baremboim (que já é particularmente impreciso) ou mesmo a catastrófica orquestra do Ala Scala (aqui pode-se escutar uma orquestra que era boa em ópera italiana mas que era uma vergonha em Wagner) na gravação de Furtwängler (creio que em 1952) e vir escutar esta orquestra é uma tortura. Afinal trata-se de música muito simples, percussão pura...
O final da maldição de Alberich é outro desastre orquestral, a última nota cantada deve bater com a entrada em ff da orquestra, que pura e simpesmente não entrou, quando tentaram entrar caiu tudo em castelos de cartas, provavelmente com mais de metade dos instrumentos a calarem-se e numa sonoridade ridícula e num desacerto ritmico tristíssimo, um descalabro. A desafinação da banda foi uma constante durante toda a ópera. Esta orquestra não tem condições para tocar Wagner, ou será que a desculpa é que o responsável voltou a falhar com as partituras e que só foram recebidas em cima da hora? O que é certo é que a orquestra tem de se apresentar em condições na estreia e não duas ou três récitas depois. A estreia até é mais cara e o público merece um produto acabado pelo bilhete pago.

Pareceu-me escutar apenas cinco harpas apesar da fonte sonora estar longe, será que há dinheiro para os "movimentos coreográficos" disparatados de Ron Howell e não há dinheiro para respeitar a partitura de Wagner? [Isto vim a verificar tratar-se de um lapso que corrigi no email posterior, ver fim do post]

Nas partes de suporte de acompanhamento a orquestra esteve bem, nomeadamente as madeiras e os violoncelos, felizmente esta ópera tem mais sublinhado de cor [do que partes sinfónicas] e isto foi muito bem explorado por Emilio Pomàrico.
Não consegui escutar, apesar da atenção, algumas passagens onde as violas aparecem a descoberto. Os violoncelos estiveram bem, mas não me parece que tivessem o peso dos 12 exigidos por Wagner. Os metais estiveram francamente mal. Tubas (wagnerianas) a falhar notas em passagens extremamente importantes (leitmotifs em enunciado inicial), trompas mal preparadas, agudos nas trompas miseravelmente desafinadas e erradas (no final), fífias nos trompetes, trombones geralmente bem. Mas o pior de tudo foi a desafinação nos divisi das cordas.

5 - Personagens e intérpretes:
Wotan: Stefan Ignat, mais baixo do que barítono, onde um puro barítono pode cantar (pelo menos no Ouro do Reno), desafinado constantemente, pouco nobre vocalmente, timbre feio e boçal em termos vocais. Fraco cantor, espera-se que se mude de azimute e se tenha mais cuidado na escolha do mais importante intérprete nas próximas produções. Wotan é o personagem mais pesado da história da ópera e o cantor tem de ser um corredor de fundo e não um mero berrador de notas desafinadas e com um vibrato horrível. Não canta: ladra e berra, e já como Bernard Show catalogou este tipo de cantor não vale a pena perder mais tempo.
Loge: Will Hartmann, um tenor poderoso vocalmente mas capaz de domar a voz em finos e subtis recortes irónicos. Um grande actor. Voz rutilante nos agudos, o sol fácil sai com uma naturalidade assombrosa. A voz geralmente centrada no peito de uma elegância e uma capacidade de fraseio que fazem deste Loge um paradigma em qualquer produção no mundo. A centralidade do personagem dual de Loge, motor da acção, consciência crítica, tal como o Loki da mitologia nórdica (ou Hermes-Mercúrio na Greco-Romana) onde coexiste o lado brincalhão e iconoclasta do (semi) Deus do Fogo e da Inteligência, fogo que queima e destrói mas que também serve o Homem, exactamente como a inteligência. Como actor pulou, saltou, cantou enquanto se exprimia corporalmente, parece fácil mas é dificílimo. Simplesmente a melhor descoberta deste Ouro do Reno.
Fricka: Judith Nemeth, exepcional esta Fricka, a par de Birgite Pinter poderá ser uma escolha notável para a Walküre. Ácida q.b., digna e inflamada mas ao mesmo tempo cáustica e crítica. Voz nobre e muito bem timbrada em todos os registos, vibrato bonito, actiz não muito explorada por Vick mas cumpriu teatralmente.
Freia: Tatiana Serjan, o pouco domínio da língua alemã (canta de memória sem dominar a língua) e o sotaque tipo russo diminuem logo à partida a capacidade desta cantora. Tem uma voz bonita e facilidade nos agudos mas pareceu-me algo cansada, não me pareceu dominar com perfeição o papel. Consegue esbugalhar os olhos e dar uns gritos quando raptada. Esteve na média.
Erda: Gabriele May, destimbrada, graves fracos, seria necessário um contralto de uma vocalidade nobre e poderosa, quente e profética. Apenas se escutou grão e cansaço vocal. Voz feia. Teatralmente o papel é insignificante e não se pode avaliar da sua força como actriz.
Donner: Michael Vier, gostei da invocação final de Donner, voz nobre e poderosa, pujança vocal (apesar de ter cantado longe e de costas para mim), Vick (de forma apropriada) caracterizou-o como um bruto e Vier correspondeu.
Froh: Stefan Margita, o Deus da alegria não foi muito alegre. Puramente mediano em termos vocais e interpretativos, a voz é algo feia mas como secundário cumpriu.
Alberich: Johann Werner Prein, eu gostava de ouvir mais voz ao lado da total capacidade interpretativa e compreensão do papel que demonstrou. Notável a maldição pela raiva e pela representação. Domínio da língua permitiu-lhe exprimir Alberich em todas as inflexões de um papel complexo e evolutivo. O dual negativo de Wotan é um dos eixos de toda a Tetralogia, está encontrado um Alberich para o Siegfried e o Crepúsculo. Infelizmente a sua voz não tem a força para realizar o Wotan.
Mime: Peter Keller, um tenor rouco, está tudo dito, ou estava doente ou está acabado, não demonstrou a menor capacidade vocal para o angustiado e agudo Mime. Como actor esteve bem.
Fasolt: Keel Watson, bom cantor e actor apesar do físico pesado, falta-lhe apenas um pouco mais de potência. Contrastou muito bem com o irmão de voz mais profunda, foi lírico e construiu de forma sonhadora o seu amor por Freia. A primeira vítima (neste caso inocente) do anel. Seria um bom Wotan? Creio que mereceria uma hipótese (em segundo elenco para começar). Conduziu a empilhadora com denodo! Qualquer dia é preciso carta de pesados para representar a Tetralogia...
Fafner: Friedemann Röhlig, apesar de franzino para gigante tem uma boa voz de baixo, falta-lhe apenas um pouco de peito para explorar as ressonâncias do corpo para ressoar as notas, não dará um bom dragão em Siegfried por esse motivo. A não ser que lhe amplifiquem a voz, prática que tem ocorrido em muitos teatros e que acho completamente escandalosa...
As três ondinas Woglinde: Andrea Dankova, Wellgunde: Dora Rodrigues e Flosshilde: Cornelia Entling cumpriram bem o papel (vocal e teatralmente) e saracotearam-se (muito bem) de forma imbecil numa coreografia totalmente dispensável e acessória de Ron Howell. Sem qualquer relação com a música esta dança cansou as cantoras e distraiu-as do mais importante. A falsa sedução está na voz e na expressão corporal. Wagner detestava este tipo de bailado ridículo e escreveu-o abundantemente (ver cartas sobre versão do Tannhauser para Paris). Não o previu na partitura. O mais dispensável. A única defesa é a possibilidade prevista por Wagner de as ninfas nadarem num tanque (ou fingirem que o fazem)! De onde a crítica coeva (Hanslick?) da estreia se referir à ópera como "O tanque das Putas". A minha opinião é de que é acessório e mal realizado. Outros poderão ter opinião diversa.
6 - Cenografia e figurinos: Timothy O'Brien. As empilhadoras são um risco, podem (e foram) ser ruidosas. O género roupão e taco de basebol (devem ser ideias de Vick [implementadas pelo cenágrafo-figurinista]) está batidíssimo no Ring mas as roupas estavam bem desenhadas. Giros os arco-íris no final.
7 - Movimentos coreográficos: Ron Howell. Banal e sem ideias, acho que fica tudo dito. ...
8 - Desenho de luzes: Peter Kaczorowski. Poético, lógico, bem imaginado e realizado.
9 - Adereços dispensáveis e óbvios. O pénis de Alberich no início é uma brincadeira de mau gosto, a subtileza da música e do texto dizem tudo. Acessório e superficial. Missil no final, despropositado, mais uma vez a música, a palavra e o pensamento dispensam as baias das imposições estéticas e ideológicas do encenador. Não seria muito mais belo se nos deixasse imaginar? O impacto da mensagem de Wagner não carece de mísseis óbvios (e redutores) para nos deixar pensar. E nem sequer consegue uma erecção completa!

Henrique Silveira

Comunicação privada aos amigos - Ouro do Reno - Aditamento. [Lisboa, 30/6/2006 23h45m]

Depois de escutar hoje, em terceira récita, devo dizer que achei a produção mais consistente e mais amadurecida. A orquestra respondeu melhor. É uma pena que a preparação para a estreia no S. Carlos nunca seja a ideal. Tem a ver com a fraca qualidade da orquestra mas, se isso é sabido, também deveria ser necessário fazer mais ensaios com mais tempo. Os cantores estão na mesma, o Wotan não passa daquilo... continuo a achar a coreografia de Howell imbecil: de mau gosto e sexualmente explicita.

Cometi um erro de apreciação: estão mesmo seis harpas por detrás de Emilio Pómarico, o maestro, peço desculpa pela má observação. No local onde estava hoje pude constatar a sua presença quer visualmente quer em termos sonoros o que me leva para a próxima reflexão.
Pena é que estas experiências não se façam com estudos detalhados e bem realizados, a orquestra ouve-se muito melhor dos camarotes do que na plateia que mudou para o local habitual do palco. Não recomendo a ninguém a audição desta produção na suposta plateia se se puder ir para um camarote, vê-se muito melhor e escuta-se com muito mais qualidade. Curiosamente parece-me que na plateia os bilhetes são mais caros, é a democratização...

Continua a achar que este tipo de encenação nasce de vários equívocos do encenador, trazer a ópera wagneriana para o público nunca foi o desejo de Wagner, a democratização fazia-se pela compreensão da obra e pela igualdade na distribuição do público. Todos com a mesma acústica e a mesma visibilidade para o palco, lugar mágico por excelência que deveria flutuar como num sonho, na obscuridade total o espectador não vê orquestra, vê a uma distância razoável um palco muito separado do anfiteatro, separado por uma antepara de razoável altura e por um fosso com uma abertura enorme, invisível por causa da mesma antepara fosso ladeado por um proscénio. duplo. Um ideal totalmente distinto de Graham Vick que traz a ópera para dentro do teatro. Existem lugares de acústica muito fraca e nos camarotes (como sempre) vê-se melhor e escuta-se muito melhor. Creio que, apesar da experiência de grande interesse, esta encenação acaba num logro, o logro do qual Loge é digno. Vick é o nosso Loge. Acaba por não estar mal.
Por outro lado a leitura linear do passado revolucionário de Wagner é demasiado ideológica e pouco filosófica. O mal de termos uma Tetralogia às postas. Antes de vermos o Crepúsculo todas as interpretações da encenação são provisórias...

H.S.

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