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2.3.06

Dezoito Bigornas e Sete Harpas 

Isto de estar com uma gripalhada das antigas faz-nos retornar às coisas boas da vida. Neste caso mergulhar numa ópera que virá a Lisboa na temporada do S. Carlos, que poderei ainda ver e ouvir em Aix-en-Provence com a Filarmónica de Berlim e ainda, bem o espero, em Bayreuth. Estou a escutar uma versãozita com Karajan na batuta à frente da Filarmónica de Berlim e com Dieskau (!?) no papel de Wotan. Toda a gente conhece o assunto, e a maior parte das pessoas conhece a gravação em causa, de modo que não me alongo nesse assunto.
Comecei a meditar no orgânico da instrumentação da obra e realmente é espantosa...
Esta obra comporta: 16 primeiros violinos, 16 segundos violinos, 12 violas, 12 violoncelos e 8 contrabaixos. Aré aqui nada de especial. Bem normal é o número de 3 flautas (a terceira às vezes também faz o piccolo) e um piccolo, 3 oboés e um corne inglês (que fará de quarto oboé em certos casos), 3 clarinetes e um clarinete baixo (em lá e em si bemos) e 3 fagotes um dos quais deve dar o lá grave. Junte a isto 8 trompas das quais 4 devem também tocar tuba wagneriana, de acordo com instruções do próprio compositor, duas são tubas tenor em si bemol, que devem ser tocadas pelos primeiros músicos das 3ª e 4ª estante e 2 são tubas baixo em fá que devem ser tocadas pelos segundos músicos das mesmas estantes. Uma tuba (normal) contrabaixo, três trompetes e um trompete baixo, três trombones tenor-baixo e um trombone contrabaixo que pode também tocar o trombone tenor-baixo, isto segundo Wagner...
Quando chegamos à percussão a coisa começa a ficar megalómana: 2 pares de tímbales, 1 triângulo, pratos, bombo e gongo. Juntam-se mais 18 bigornas e está completo o cenário.
Cuidado: 9 das bigornas são pequenas e devem afinar em fá, 6 são maiores e devem dar um fá na oitava abaixo, finalmente há 3 bigornas, provavelmente monstruosas que darão outro fá na oitava abaixo do fá anterior! Possível? Na gravação do Karajan as bigornas de baixo soam-me a bombos e não me parece ouvir uma nota harmónica capaz de se perceber. Há quem diga que as notas escritas são meramente convencionais para a bigorna, como o serão para os pratos, notados com mi. Como se irão ouvir estas 18 bigornas em S. Carlos? Uma pergunta para ser feita e respondida na altura.
Em Bayreuth espera-se um efeito estrondoso na transformação dos céus para o submundo de Nibelheim.
Entretanto a orquestração não acabou, lá estão alinhadas na partitura as seis harpas no fosso e uma harpa em palco! Total: sete. Haverá sete harpistas disponíveis em Portugal ou mesmo sete harpas para as récitas do S. Carlos.
Será que iremos escutar algo do género: "bem, no tempo do Wagner as harpas tinham menos som é que a harpa com armação de ferro ainda não tinha sido inventadas" (Taram taram! bum bum! Ah! Ah! Ah!) "perdão, perdão, ..., eeeh... enfim, a harpa com armação de ferro ainda não tinha sido difundida e as orquestras ainda não as tinham comprado" (cinquenta anos depois da invenção, em Bayreuth ainda não havia nenhuma?????) ou "na partitura apenas há duas linhas, uma para as harpas de cima e outra para as de baixo, bastam duas" ou então e já no limiar do indizível "bem, sabe, no palco do CCB seria difícil colocar seis harpas" neste caso caem por terra. Wagner nesta obra escreveu as seis linhas bem diferentes para cada uma das suas seis harpinhas.
Um argumento giro a favor das seis harpas seria: "no tempo de Wagner eram homens logo tinham mais força nos dedos e calos maiores, hoje as harpistas são apenas mulheres, logo hoje precisamos de dez harpas" ou "hoje precisamos de menos harpas porque as raparigas que as costumam tocar vão ao ginásio exercitar os dedos e conseguem tocar mais forte", ridículo? Claro que sim se pensarmos que a única razão de ter seis harpas a tocar é porque o compositor assim o pediu...
Wagner dá-se, no caso desta obra, ao trabalho de escrever música em divisi para 8 estantes diferentes de primeiros violinos, oito estantes diferentes de segundos violinos e seis estantes de violas, mesmo a pedir que não lhe diminuam a orquestra... No que respeita às seias harpas lá estão no "Mässig bewegt", construção do maravilhoso "Regenbogen" (arco-íris) que serve de ponte para a entrada dos Deuses: a duas mãos, doze pautas magníficas de sextinas de semicolcheias para seis harpas, num contraponto intrincado mas deslumbrante, cada harpa entregue ao seu trabalho de fiadeira de sons, sobre oito linhas de violinos em divisi em blocos de quatro, num total de 32 instrumentistas nos violinos.
Um total de 66 compassos em que as seis harpas tocam música diferente, cada qual a sua, mais uma secção deslumbrante de doze compasso em que entram em sucessão (de dois em dois compassos) construindo uma harmonia notável, impossível de criar com as duas anémicas harpas que temos escutado em Portugal para música deste mesmo ciclo de Wagner. Que haja respeito e se cumpra o que Wagner escreveu é o meu desejo para uma audição tranquila da obra. Nem que venham instrumentistas de fora e harpas de Espanha, para nossa suprema vergonha...
As minhas dúvidas sobre a capacidade de um teatro como o de S. Carlos possa albergar uma das maiores orquestras de ópera (mais de 120 elementos com bigornistas) dentro do seu limitado espaço físico (e ...) levam-me a obter respostas apenas no campo da trangressão, será que Graham Vick consegue a obra de génio que foi capaz no Werther? Trompas nos camarotes? Bigornas por detrás do palco e em cima deste (esta ideia nem sequer é transgressora, está indicada por Wagner), harpas na plateia, violinos no galinheiro, clarinetes nas torrinhas? Que a transgressão seja no plano da inovação superior em termos de conceitos e nunca no plano inferior, básico, da simples amputação...

Nota - Boulez não usa bigornas na sua gravação de Bayreuth, usa em seu lugar placas metálicas recangulares cortadas à medida para produzirem o efeito desejado, o que no meu humilde entender é uma fraude absoluta, se Wagner queria bigornas e exactamente 18, porque razão usar uns instrumentos ridículos e com um som infame semi-electrónico? Nas actuações ao vivo em vez de estarem no fosso e por detrás do palco estavam noutra sala e o som era transmitido por colunas. Boulez diz "as bigornas nunca caberiam no fosso". Claro que o efeito sonoro da sua gravação para a Philips é muito menos impressivo do que na gravação de Karajan para a DG (não imagino qual o instrumento usado por Karajan). Entretanto Furtwängler é demasiado arcaico nas suas gravações para se perceber o real efeito de tais bigornas... Já a Decca arranjou (1958) mesmo 18 bigornas oriundas da prática - numa escola de ferreiros(?) - exactamente dos tamanhos exigidos por Wagner para realizar a célebre gravação com Solti a segurar a batuta à frente da Wiener Philharmoniker, onde Gustav Neidlinger faz um Alberich histórico, parece que se usaram percussionistas mas também outros instrumentistas e, já agora, martelos para percutir as malditas bigornas.
Um link a ter em conta, na Tailândia usaram 7 harpas e 18 bigornas!

Ler: John Culshaw, Ring Resounding. Lond., Secker and Warburg, 1967.

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