13.2.06
Quanta angústia - quanto tormento para uma noite de glória
Falo do concerto com Cecilia Bartoli e orquestra barroca de Freiburg, e nem sequer estou a pensar no trabalho dos músicos e da cantora.
Tudo começou quando escutei o disco Opera Proibida e algo me soou mal, sobretudo nas árias de bravura, pensei no assunto, discuti, ouvi de novo, e é sobre essas árias que me pronuncio. Nem sequer era o nasalamento da cantora nas passagens de agilidade, não era o timbre agressivo, nasalado, de cana rachada nas escalas e nos golpes de garganta numa exibição circense de arte vocal, nem sequer era essa exibição pirotécnica que desagradava e me cheirava a esturro, era algo mais profundo. Bartoli canta bem, muito bem mesmo. Disfarça a pouca potência e agudos difíceis (débeis e destimbrados) com muita inteligência, o seu registo médio é deslumbrante, os seus graves opulentos e densos. A sua musicalidade e o seu sentido dramático e de palco são notáveis, a sua capacidade de respiração em disco é impossível. Ao vivo essa capacidade é notável para uma mulher mas não irreal e, no entanto, as linhas vocais lá estão escritas de forma contínua com melismas imensos sobre a mesma sílaba, mas a cantora tem de parar e cortar as frases para respirar. Este facto dava-me uma pista, conversei mais um pouco sobre o assunto, sim realmente é impossível cantar estas árias como estão escritas por Caldara, Handel, Alessandro Scarlatti e porquê? Porque Bartoli não é um menino pobre a quem retiraram os testículos aos nove ou dez anos e se desenvolveu anormalmente, porque Bartoli não tem a caixa torácica de um castrado, porque não tem a potência vocal de um homem anormal, criado de forma desumana para o prazer dos outros. As árias de bravura e as outras foram escritas num tempo de outra ética (ao tempo a escravatura ainda era regra nas colónias) e a Igreja fomentava o costume bárbaro da castração para alimentar as capelas de cantores capazes de cantar as passagens agudas. Depois de pensar um pouco e de me afastar de um entusiasmo imediato (e geral) pela arte vocal de Bartoli percebi que as razões do meu desagrado eram sobretudo (est)éticas.
Escutamos este espectáculo hoje com imenso gozo sem nos lembrarmos da génese negra da fonte do nosso hedonismo, um circo de vaidade, árias escritas por compositores geniais para homens deformados e com problemas psicológicos, apenas para brilho da vaidade e dos sentidos, tudo valendo para prazer dos sentidos dos senhores do Ancien Régime. Escalas gratuitas sem sentido maior do que exibição circense, música de qualidade reduzida, na maior parte dos casos, para consumo imediato do burguês de hoje, 300 anos depois do seu consumo nos salões romanos. Ontem os castrados, hoje a Bartoli. Foi muito bonito de escutar a Bartoli a espremer-se e gorgolejar, sentido rítmico, capacidade vocal e alguma inteligência na abordagem das passagens mais complexas escolhendo os pontos em que cortava as frases para respirar de forma coerente e mostrando um grande "músico" em termos técnicos mas não é esse o sentido da música para mim, como espectáculo de circo estas árias foram boas...
E regressamos às árias lentas e aos recitativos, aqui Bartoli demonstrou que é realmente uma cantora notável de sentido musical e de expressividade, não é um fenómeno musical mas é uma grande cantora e fez neste concerto interpretações magistrais, a ária "Lascia la Spina... " tão aplaudida, provavelmente por a maior parte do público pensar que se tratava da pausa do intervalo..., foi um dos momentos altos do concerto.
A Orquestra Barroca de Freiburg esteve notável com a direcção da concertmeisterin Petra Müllejans cujo papel discreto deve ser realçado. É certo que face à Bartoli tudo parece pequeno, mas uma interpretação de alto nível da abertura de Santa Francesca Romana de Caldara, de "Il Trionfo del Tempo e del Disingano" de Handel, do Concerto Grosso op. 6 nº 12 de Corelli ou da Sonata de "Il Trionfo del Tempo e del Disingano", aqui com umas notas trocadas no órgão que não mancharam uma interpretação muito viva, mostraram uma orquestra barroca muito sólida e consistente faltando-lhe apenas algumas capacidade de arranque e de "fúria" italiana onde sobrou rigor e correcção estilística. Um par de oboés belíssimo, trompetes muito claros, fagote certíssimo, aliás todos os músicos do contínuo muito compenetrados e certos.
A cantora colaborou na direcção indicando o tempo em que seguia ou pedindo alterações dinâmicas dando entradas com os braços e o corpo numa coreografia divertidíssima de se observar; segundo alguém comentou: "parece que está a dirigir uma quadriga romana, só lhe falta o chicote!"...
Um concerto de altíssimo nível, a Fundação está de parabéns por conseguir trazer músicos deste calibre à sua sala principal. Valeu pelo espectáculo nas árias de bravura e pela música no resto.
Continua o ciclo "Grandes Asneiras em Notas de Programa"
Desta feita o programa está cheio de erros ortográficos e de arreliadoras gralhas que dificultam uma leitura escorreita do mesmo.
Os "Cardiais" (relativo à abertura superior do estômago?) aparecem duas vezes, o Prince (a princípio pensei que fosse o cantor rock) que depois se descobre que afinal era príncipe, que se anuncia como mecenas e virada a página se volta a anunciar como mecenas, como se já não se tivesse dito anteriormente e depois voltada de novo a página somos informados que o tal (agora) Príncipe Ruspoli era, e de novo, "porventura o mais influente mecenas". Um mecenas triplo, ao cubo. Depois lá vem o erro habitual: "púdico" e "impúdico", com acento e sem assento, não há um corrector ortográfico na Fundação Gulbenkian ou um revisor? Será que foi embora juntamente com o Ballet Gulbenkian?
Tudo começou quando escutei o disco Opera Proibida e algo me soou mal, sobretudo nas árias de bravura, pensei no assunto, discuti, ouvi de novo, e é sobre essas árias que me pronuncio. Nem sequer era o nasalamento da cantora nas passagens de agilidade, não era o timbre agressivo, nasalado, de cana rachada nas escalas e nos golpes de garganta numa exibição circense de arte vocal, nem sequer era essa exibição pirotécnica que desagradava e me cheirava a esturro, era algo mais profundo. Bartoli canta bem, muito bem mesmo. Disfarça a pouca potência e agudos difíceis (débeis e destimbrados) com muita inteligência, o seu registo médio é deslumbrante, os seus graves opulentos e densos. A sua musicalidade e o seu sentido dramático e de palco são notáveis, a sua capacidade de respiração em disco é impossível. Ao vivo essa capacidade é notável para uma mulher mas não irreal e, no entanto, as linhas vocais lá estão escritas de forma contínua com melismas imensos sobre a mesma sílaba, mas a cantora tem de parar e cortar as frases para respirar. Este facto dava-me uma pista, conversei mais um pouco sobre o assunto, sim realmente é impossível cantar estas árias como estão escritas por Caldara, Handel, Alessandro Scarlatti e porquê? Porque Bartoli não é um menino pobre a quem retiraram os testículos aos nove ou dez anos e se desenvolveu anormalmente, porque Bartoli não tem a caixa torácica de um castrado, porque não tem a potência vocal de um homem anormal, criado de forma desumana para o prazer dos outros. As árias de bravura e as outras foram escritas num tempo de outra ética (ao tempo a escravatura ainda era regra nas colónias) e a Igreja fomentava o costume bárbaro da castração para alimentar as capelas de cantores capazes de cantar as passagens agudas. Depois de pensar um pouco e de me afastar de um entusiasmo imediato (e geral) pela arte vocal de Bartoli percebi que as razões do meu desagrado eram sobretudo (est)éticas.
Escutamos este espectáculo hoje com imenso gozo sem nos lembrarmos da génese negra da fonte do nosso hedonismo, um circo de vaidade, árias escritas por compositores geniais para homens deformados e com problemas psicológicos, apenas para brilho da vaidade e dos sentidos, tudo valendo para prazer dos sentidos dos senhores do Ancien Régime. Escalas gratuitas sem sentido maior do que exibição circense, música de qualidade reduzida, na maior parte dos casos, para consumo imediato do burguês de hoje, 300 anos depois do seu consumo nos salões romanos. Ontem os castrados, hoje a Bartoli. Foi muito bonito de escutar a Bartoli a espremer-se e gorgolejar, sentido rítmico, capacidade vocal e alguma inteligência na abordagem das passagens mais complexas escolhendo os pontos em que cortava as frases para respirar de forma coerente e mostrando um grande "músico" em termos técnicos mas não é esse o sentido da música para mim, como espectáculo de circo estas árias foram boas...
E regressamos às árias lentas e aos recitativos, aqui Bartoli demonstrou que é realmente uma cantora notável de sentido musical e de expressividade, não é um fenómeno musical mas é uma grande cantora e fez neste concerto interpretações magistrais, a ária "Lascia la Spina... " tão aplaudida, provavelmente por a maior parte do público pensar que se tratava da pausa do intervalo..., foi um dos momentos altos do concerto.
A Orquestra Barroca de Freiburg esteve notável com a direcção da concertmeisterin Petra Müllejans cujo papel discreto deve ser realçado. É certo que face à Bartoli tudo parece pequeno, mas uma interpretação de alto nível da abertura de Santa Francesca Romana de Caldara, de "Il Trionfo del Tempo e del Disingano" de Handel, do Concerto Grosso op. 6 nº 12 de Corelli ou da Sonata de "Il Trionfo del Tempo e del Disingano", aqui com umas notas trocadas no órgão que não mancharam uma interpretação muito viva, mostraram uma orquestra barroca muito sólida e consistente faltando-lhe apenas algumas capacidade de arranque e de "fúria" italiana onde sobrou rigor e correcção estilística. Um par de oboés belíssimo, trompetes muito claros, fagote certíssimo, aliás todos os músicos do contínuo muito compenetrados e certos.
A cantora colaborou na direcção indicando o tempo em que seguia ou pedindo alterações dinâmicas dando entradas com os braços e o corpo numa coreografia divertidíssima de se observar; segundo alguém comentou: "parece que está a dirigir uma quadriga romana, só lhe falta o chicote!"...
Um concerto de altíssimo nível, a Fundação está de parabéns por conseguir trazer músicos deste calibre à sua sala principal. Valeu pelo espectáculo nas árias de bravura e pela música no resto.
Continua o ciclo "Grandes Asneiras em Notas de Programa"
Desta feita o programa está cheio de erros ortográficos e de arreliadoras gralhas que dificultam uma leitura escorreita do mesmo.
Os "Cardiais" (relativo à abertura superior do estômago?) aparecem duas vezes, o Prince (a princípio pensei que fosse o cantor rock) que depois se descobre que afinal era príncipe, que se anuncia como mecenas e virada a página se volta a anunciar como mecenas, como se já não se tivesse dito anteriormente e depois voltada de novo a página somos informados que o tal (agora) Príncipe Ruspoli era, e de novo, "porventura o mais influente mecenas". Um mecenas triplo, ao cubo. Depois lá vem o erro habitual: "púdico" e "impúdico", com acento e sem assento, não há um corrector ortográfico na Fundação Gulbenkian ou um revisor? Será que foi embora juntamente com o Ballet Gulbenkian?
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