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19.2.06

O belo e o monstro no S. Carlos 

Ontem assisti a um concerto memorável no S. Carlos, como aliás referi aqui, Kristian Bezuidenhout um pianista excelente. Uma orquestra do século XVIII extraordinária em termos musicais, de uma plasticidade incrível, de uma beleza sonora sem par, provando alta capacidade também depois de desdobrada em formações de câmara: ontem um sexteto com dois oboés, duas trompas e dois fagotes, hoje um quinteto para piano e sopros, oboé, clarinete, trompa e fagote k. 452.
O pianista ontem nos concertos 17 e 24 e hoje no quinteto mostrou uma enorme capacidade de transmissão de emoções quer com o público quer com os seus colegas músicos. Foi capaz da arte da superação dos obstáculos musicais do próprio instrumento, meio de expressão apropriado ao universo musical mozartiano mas parco de recursos técnicos e com uma sonoridade muito débil.
É num jogo imenso de fragilidades, de recortes e transparências, de obscuridades e jogos de som, ora tapando ora destapando que a música de Mozart faz todo o sentido. A compreensão do seu génio de homem frágil, franzino, um fio de vida destruído precocemente pela doença, agarrado a um tempo sem fim onde a sua única força é a alegria da música e o turbilhão das emoções que transmite, passa pela recepção das obras dentro do seu contexto original. É neste quadro de instrumentos também imperfeitos, frágeis, rudes nalguns casos - trompas, agrestes noutros - oboés, roufenhos ainda - fagotes, inusitadamente precisos e sonoros - tímpanos, poéticos - flautas (que me pareceram a parte mais fraca desta orquestra) e clarinetes, aveludados mas de afinação difícil - cordas, que o franzino pianoforte entra como imagem do Mozart. Objecto à imagem do compositor que, com os mesmos meios dos seus contemporâneos, consegue tocar a eternidade onde os outros apenas agarraram a poeira dos dias que já não voltam.
Com os intérpretes passa-se o mesmo, Cristian Bezuidenhout é um jovem, cheio de música e comunicabilidade, de força endiabrada, de emoção, de entrega, o seu virtuosismo tem limites mas a sua musicalidade não. Ontem nos concertos 17 e 24, sobretudo neste último que no primeiro entrou tudo muito a frio, e hoje no quinteto. Ou seja: como solista director e como músico de câmara; mas sempre como líder e, ao mesmo tempo, como parte integrante do conjunto conseguiu mostrar um Mozart frágil mas perfeito na sua fragilidade quase mágica, num equilíbrio notável entre forma e conteúdo. Um Mozart com articulações muito marcadas e com muito stacatto, fruto também da natural percussão efémera dos martelos no pianoforte (réplica de um instrumento do tempo de Mozart), articulações que se mantiveram de forma coerente na orquestra e com acentuações muito subtis mas ao mesmo tempo muito eficazes no sublinhar de cada frase..

Entretanto esta tarde tivemos outro pianista, supostamente a dirigir a orquestra do século XVIII, e a tocar os concertos nº12 e nº23. De seu nome Stanley Hoogland.
Algo que poderia ser quase perfeito, como com o seu colega Cristian, tornou-se numa aberração musical. O mesmo instrumento que serviu para Bezuidenhout criar poesia serviu a Hoogland para assassinar totalmente as partituras mozartianas. Gélido, inexpressivo musicalmente, tecnicamente defeituoso: escalas inacabadas, passagens com notas em falta, notas esmagadas com fartura, notas erradas para todos os gosto e passagens, uma cadência do primeiro andamento do concerto 23 aldrabada escabrosamente, um terceiro andamento do mesmo concerto onde nem sequer conseguiu enunciar o tema e o andamento lento, um dos trechos mais belos da história da música, miseravelmente assassinado por um instrumentista sem a menor sensibilidade. Se já era triste ter de escutar a melodia tocada de forma pequena, mal entoada, sem paleta dinâmica, formatada e espartilhada o pior eram ainda os acordes falhados e a despropósito logo de entrada neste segundo andamento que arruinariam qualquer hipótese de coerência artística no decorrer do mesmo.
Onde antes havia sublinhar do fraseado por articulações cuidadas e acentuações criteriosas no pianoforte, existia agora uma pastelada uniforme afectada por tremendas dificuldades técnicas que pareciam de principiante.
Mau demais para ser verdade, a orquestra lá se aguentou como conseguiu com este suposto pianista-director de tal forma que o concertino, para a coisa correr menos mal, teve de dirigir com a mão direita no rondò, sobretudo os sopros, para se acertarem as entradas. O pianista era tão mau que tive de sair a correr para não ter de patear e gritar BUUU depois da carnificina. A orquestra conseguiu esquecer o pianista e tocar muito bem no segundo andamento do concerto 23, o que compensou de alguma forma o massacre que se dava no pianoforte... Academismo sem música no seu pior.
Ambos os concertos (12 e 23) com interpretação muito fraca mas se o concerto nº12 foi mau, por inexpressivo, uniforme em termos dinâmicos e por erros técnicos, o nº23 foi péssimo.

Uma nota ainda para os sopros no quinteto, deliciosa a trompa, muito bonito o som do clarinete, fagote muito certo e sonoro, poético, e oboé um pouco menos seguro mas também a cumprir a sua parte com musicalidade.

Um público de cossacos bêbedos talvez fizesse menos barulho do que o mal educado público desta tarde em S. Carlos. A tosse omnipresente já é um mal menor face a telemóveis, a pessoas a entrar e sair dos camarotes, a levantarem-se e a sentarem-se nos mesmos camarotes e a conversarem (a frisa 14 na primeira parte foi um exemplo assaz incomodativo mas não único), entretanto no quinteto, parte melhor do concerto de hoje, foi um telemóvel e um ruído infernal de sacos plásticos ruidosos para além da rapaziada dos camarotes a bater o compasso com os pés e as mãos. Se os próximos concertos do S. Carlos se fizessem na aldeia dos macacos do jardim zoológico provavelmente seriam mais aprazíveis...
Nota negativa para a frente de sala que não fez sentir às pessoas que estavam no bar que o intervalo estava a acabar. Fomos informados que mais de uma dúzia de pessoas não entrou no início da segunda parte porque ficaram no bar sem saber que o intervalo tinha terminado, nem campainha se ouviu nem ninguém foi informar os presentes da situação, um aspecto a corrigir.

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