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2.2.06

40 

Assisti na quarta feira passada a um recital de canto e piano apenas com lied de Schubert, com Ian Bostridge e Julius Drake em que notei um crescimento da voz do tenor inglês em extensão e em força.
É certo que a interpretação de Bostridge é muito elaborada, que o requinte que tenta imprimir ao texto acaba demasiadas vezes em maneirismos vocais excessivos, que a leitura é demasiado entrecortada para que se consiga perceber um legato imenso em arcos majestosos, que desafinou excessivamente nos graves que talvez até venha a ter no futuro mas que não dominou no recital de quarta. Na primeira parte toda a descida ao registo grave acabou por ser uma descida aos infernos que fazia sofrer o cantor de forma atroz e a quem o escutava soava como uma tortura. A primeira parte foi comprometida por essa falta de segurança aliada a uma interpretação demasiado pensada, rugosa em excesso, soluçada num um estilo que se pode talvez assacar a Dieskau mas neste último alicerçada numa naturalidade dramática e numa voz tão consistente que se tornava lógica e inultrapassável. De qualquer modo a minha referência em lied de Schubert bifurca entre Dieskau e Hotter, sendo este último um mestre dos grandes arcos vocais.
Julius Drake talvez sentindo a insegurança de Bostridge esteve muito firme no ritmo mas sem plasticidade ou grande subtileza.
Na segunda parte houve uma transformação notável, num recital construído em torno de pólos temáticos, natureza e amor, natureza e sofrimento, água - amor e sofrimento, transfiguração, ganhou uma força enorme logo nos lieder sobre poesia de Rückers, em meu entender o clímax do recital, o Sei Mir Gegrüsst foi de uma beleza ímpar.
Qual a razão para esta alteração? Creio que uma razão técnica foi evidente, os lieder da segunda parte não descem a uma tessitura tão grave, o cantor soltou-se pela naturalidade da emoção e não tentou fabricar essa emoção. Quando um cantor do nível de Bostridge, com a sua voz muito bela e a sua inteligência, canta de forma natural não é preciso quase mais nada para chegar ao Parnaso. Foi também necessária para esta subida de nível o pianista Julius Drake que, também na segunda parte, foi mais intenso e mais plástico no acompanhamento, sempre solidíssimo. Houve mais empatia entre os dois na segunda parte.
É possível cantar Schubert de forma intimista, sem ter um vozeirão, sem usar vibrato, tendo uma caixa de ar reduzida (e notou-se em alguns ligeiros problemas de respiração que Bostridge disfarçou com indesmentível inteligência) que impede grandes arcos em legato, apenas com uma voz de timbre belo e inteligência.
Creio ainda que Bostridge tem um campo de evolução notável pela frente, apesar de já ser um cantor extraordinário. Terá muito a ganhar se se deixasse de tanta pose e maneirismo vocal e cantasse de forma mais expontânea.

Entretanto fiz quarenta anos, é mais que hora de acabar com birras de tempos da faculdade. Já aqui expliquei porque razão deixei de assistir, durante 18 anos, a recitais e concertos com Sequeira Costa. É tempo de mudar, o tempo dos arremedos olímpicos já passou, seriam apenas manifestações de intolerância nesta idade um pouco mais madura. Sequeira Costa é um dos grandes pianistas do nosso tempo, aluno de Vianna da Motta, aproxima-se dos oitenta anos. É tempo de voltar a escutar o mestre e, mesmo que dê mais notas erradas do que as escritas na partitura, ouvir e aprender com prazer e tolerância quem fez muito mais e melhor do que nós. Teremos cada vez menos oportunidades de o fazer. Espero não ter de lamentar os anos em que, por embirração, deixei de escutar Sequeira Costa.
Hoje e amanhã na Gulbenkian.


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