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14.1.06

Brincar ao Lully e mais uma pérola de tradução 

Hervé Niquet esteve na Gulbenkian na passada segunda feira, 9 de Janeiro. No programa de Jean Baptiste Lully o Dies Irae, Exaudiat te Dominus e o Te Deum. Os cantores foram umas razoáveis Stéphanie Révidat (um pouco aflita nas passagens mais complexas) e Anne-Marie Jacquin, primeiro e segundo dessus (sopranos), um inacreditável haute contre (neste caso um contratenor mas depois vim a descobrir que era um... tenor lírico), sem agudos e que não sabe cantar, Emiliano Honzalez Toro um taille (tenor) aceitável e com voz bonita e um baixo, Benoît Arnould pouco encorpado nos graves, mas suficiente em termos musicais e pujante no resto da tessitura.

Um coro grande de 10 cantores (!) pasme-se e um coro pequeno, com solistas, de 5 cantores. Uma orquestra de 14 elementos onde se contou com um trompete e tímbales...

Devo dizer que este foi dos mais desencorajantes, incorrectos e desinspiradores concertos a que assisti nos últimos tempos, soou-me a fraude musical e histórica.
Se eu afirmasse que era correcto do ponto de vista musical que uma sinfonia de Mahler ou o Götterdämmerung de Wagner poderiam ser feitos com uma orquestra do tamanho do Remix ensemble ou da Orchestrutópica, com um violino por parte, e com um coro de dois cantores por parte? Certamente as pessoas pensariam que eu estaria a tentar enganar o próximo ou que estaria a brincar. No entanto a Gulbenkian paga a um ensemble como o Concert Spirituel para apresentar Lully com peças de grande envergadura para grande orquestra, para acontecimentos de grande pompa, como um baptizado real, ou a morte de uma rainha, que fogem totalmente ao ordinário diário da capela, com catorze instrumentistas e quinze cantores!
Ao que falta a Lully em subtileza e em prosódia, certamente muito inferior a Charpentier na música sacra, ganha em pompa e efeito sonoro, em tensão e contraste entre as grandes massas vocais do grand choeur e do petit choeur, em efeitos de grande massa. A escrita dirigida a grandes massas de cantores e de instrumentistas para produzir o efeito desejado nos enormes espaços em que decorreriam as cerimónias sublinhadas pela música é totalmente diversa da escrita para pequenos ensembles em dias vulgares ou quando se dispõe de poucos meios, nesse caso a inspiração de Charpentier, não me canso de o citar, é manifesta: o que não tinha em grandes conjuntos instrumentais dispunha em recursos musicais, no uso de dissonâncias utilizadas de forma magistral, uma criteriosa utilização das tonalidades, o sublinhar musicalmente de certas palavras do textos com acentuações mais expressivas, que num pequeno espaço ou com um pequeno conjunto são evidentes e se tornam ineficazes em grandes cerimónias. Cerimónias onde contaria mais a produção sonora e o contraste entre a massa, a turba e os soli.
Se um mestre de capela apresentasse apenas 14 músicos para fazer um Te Deum para Luiz XIV e dispensasse os restantes seria punido severamente pelo rei que não deveria achar graça nenhuma à brincadeira.
Se hoje uma grande orquestra sinfónica se apresentasse com um quarteto de cordas para fazer uma sinfonia de Beethoven seria um escândalo.
Então porque razão o público da Gulbenkian na segunda feira passada não se insurgiu contra um orgânico totalmente descabido relativamente ao repertório apresentado?
É música antiga, pode-se fazer o que se quiser que o público não sabe, não nota.
Um conceito totalmente errado, aliás na própria estrutura da programação, pode-se pagar uma fortuna colossal a uma cantora pimba, como Gheoghiu, mas ter um Te Deum de Lully para Luiz XIV no seu instrumental correcto, que custaria mais uns escassos milhares de euros, não pode ser que é muito caro.
Onde estão as 12 teorbas citadas pelas fontes históricas? Duas anémicas teorbas que mal se escutam e neste caso até já estamos habituados, e duas já é um pau!
Cravo? Niquet já fez este repertório com cravo, onde está o cravo para reforçar as teorbas? Não está. Onde estão as violas da gamba? Nem uma, em seu lugar um roufenho violoncelo de cinco cordas, de som campónio e rude em vez das ressonâncias mágicas das suas augustas primas, admite-se um basse de violon mas como complemento sonoro das violas da gamba e nunca como seu parco substituto. Onde se já viu um Te Deum de Lully para o Rei Luiz catorze sem violas da gamba? Inacreditável se não fosse verdade, e feio. Um órgão positivo, quando nas partes atribuídas ao grand choeur seria certamente um grande órgão a travejar toda a construção. Um trompete, pobrezinho, num instrumento com buracos, o Steve Mason da própria orquestra Gulbenkian é capaz de tocar melhor num instrumento absolutamente natural.
Onde estão as múltiplas trombetas que fariam o Te Deum de Lully? Ficam no limbo do tempo e perdeu-se a oportunidade. Seria necessário, pelo menos, o dobro do efectivo para se ter um concerto digno do repertório. Pelo menos três violinos por parte, um cravo no caso de não se conseguirem arranjar mais duas teorbas, três violas da gamba, dois trompetes. Sopros nos oboés e flautas poderiam manter-se, mas não escandalizava a sua duplcação, bem como mais um fagote. O coro grande teria de ter pelo menos 20 cantores e mesmo assim estaríamos longe dos efectivos do tempo de Lully.

O resultado foi um concerto planar, sem contraste, a música não foi escrita para um agrupamento reduzidíssimo como este e o resultado é extremamente monótono e fraco. Musicalmente Niquet esteve razoável, dentro do esquema que aceitou, e algumas passagens mais sensíveis resultaram em pleno, faltando sempre o choque com um tutti poderoso que não existia, os fortes não se escutaram e o concerto andou todo em piano.
Um concerto não estimulante, com sabor a pouco, triste, uma péssima surpresa... por má escolha de repertório. Bola preta para a Gulbenkian.

A pérola

Achei deliciosa a tradução que se faz no programa (pág. 17) de Hautes-Contre como Tenores líricos! Um homem está sempre a aprender. Quando não se sabe inventa-se e está bem, estamos em Portugal e andamos todos a brincar ao Lully.

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