17.12.05
Tempestividade de um rapto em Lisboa e a "elite" da ópera
Com uma encenação mítica de Giorgio Strehler, falecido em 1997 como garante imediato de uma qualidade indiscutível já demonstrada ao longo de três décadas, e como está actual esta encenação, o Rapto do Serralho de Mozart no S. Carlos precisava de cuidar intrinsecamente dos aspectos musicais.
Um naipe de cantores de nível médio alto foi contratado. Uma maestrina, Julia Jones, substituiu o anquilosado (musicalmente) antigo director musical, Peskó, em boa hora. Será que Peskó já não é titular honorário? Parece que o título de titular honorário é uma titulação efémera e titubeante...
A Orquestra Sinfónica Portuguesa reduzida a um efectivo mínimo para Mozart e o coro do Teatro asseguravam o suporte musical.
Nota prévia a propósito de uma discussão sobre a questão da tempestividade e oportunidade do Rapto no Teatro Nacional de Ópera.
A ópera não é das obras que mais prefiro em Mozart, quando temos uma Flauta Mágica também em alemão ou umas Bodas de Fígaro (em italiano) e olhamos para a música do Rapto compreendemos o desnível. No entanto a música de Mozart é quase sempre genial e o Rapto não é excepção. A obra teatral é fraquinha, tendo por base um texto moralista e positivo, toda a trama serve apenas para nos apresentar o final surpreendente numa sucessão de eventos mais ou menos divertidos. Esta ópera foi feita obviamente para divertimento (e não foram quase todas?), para de forma bem disposta e alegre fazer rir o público.
O Rapto não será a melhor ópera do mundo, mas está no melhor possível no seu género simples (ou nem tanto assim, existem mensagens bem longe de triviais no texto e na música). Não entender o lado puramente hedonístico é não entender este Mozart, bem longe do D. Giovanni, que no entanto encarna também muitos dos elementos do Rapto como o aspecto moralista da cena final metida um pouco a martelo em cima da versão original de Praga e as peripécias divertidas ao longo de toda a trama. Evidentemente suportadas por uma qualidade literária muito superior...
Pode-se questionar este tipo de ópera num Teatro Nacional? É obvio que não, o Rapto é da melhor música de todos os tempos, apesar de Mozart ter feito muito melhor posteriormente. O libreto é divertido e diverte? Evidentemente, é assim a ópera do tempo, a ópera era um espectáculo popular e fundamental no equilíbrio social da cidade e do mundo barroco e do iluminismo. E por ser feita para divertir deve ser rejeitada? O Rapto do Serralho? Ainda por cima com uma encenação que realça o mundo maravilhoso, que nos aumenta a perspectiva recriando uma atmosfera da época sem ser anacrónica. Dispensáveis as buchas em português nos diálogos? Creio que até neste ponto se pode desculpar a reposição da encenação, a ópera era em alemão para público que falava alemão e para divertir esse público, para ser acessível, as buchas em português cumprem muito bem esse papel e reportam-nos, sem artificialismo, mas pela veia dionisíaca, natural, ao acesso e recepção como no tempo de Mozart.
A ópera nunca se pagou, como disse Pinamonti numa entrevista que me deu recentemente. O Teatro Nacional de Ópera é um serviço público e um repositório de competência que extravasa o Teatro e entra na sociedade. Se o meu leitor reparar bem pode verificar quantos, artistas, músicos e cantores do S. Carlos aparecem em multiplas e variadas actividades no exterior do Teatro. Produzindo música barroca, de câmara, contemporânea, espectáculos operáticos, entrando em projectos educativos, cedendo reforços à Gulbenkian (!), dando aulas nas mais diversas instituições, aparecendo na televisão em programas mais ligeiros (e aqui começo a torcer o nariz...) mas intervindo sempre. Directores de cena, cenógrafos, técnicos dos mais variados tipos têm sido formados na escola da ópera nacional e muito mais poderia ser feito.
Sobre o público uma única nota. O público é mau? Por acaso é fraquinho, como em todo o mundo, mas é o espelho da elite e da sociedade que temos, uma elite que enche os mil lugares do teatro em cinco récitas, cerca de 5000 pessoas. Admitindo que a ópera não devia ser subsidiada como sempre foi, algum desse público terá dinheiro para pagar a ópera ao seu justo valor, mas os jovens que já pagam o bilhete com esforço, pessoas que trabalham a dar 700€ por bilhetes de ópera? Significava apenas o fim da ópera em Portugal, quem tem dinheiro e gosta de ópera vai ao estrangeiro onde paga quase o mesmo (onde a ópera é subsidiada a sério) e não fica aqui a escutar a OSP, o coro do S. Carlos e os cantores medianos que cá passam. O dinheiro gasto é apenas uma fracção do que o Estado perde com o futebol todos os anos em fuga ao fisco, em dinheiros para federações ou em eventos megalómanos num país pobre. Pensar que há 5000 endinheirados para ver o Rapto do Serralho em Portugal? É para rir, os mais ricos na sociedade portuguesa não vão ao S. Carlos, não vão a lado nenhum na sua esmagadora maioria. Se fossem talvez houvesse mais mecenas. Quem vai à ópera é a classe média. Acabar com a ópera em Portugal? Porque o Rapto do Serralho é divertido? Já bastou a inquisição e a PIDE, Portugal é um país onde é proibido rir ainda hoje e continua a ter medo de existir... Entre os cinquenta mil que vão à bola e os cinco mil que vão ao S. Carlos prefiro os últimos, apesar das tosses e das palmas a despropósito, mesmo com falta de sentido crítico e o cheiro a naftalina no intervalo. Chamem-me elitista, claro que sou, mal de um país sem elites. Se eu gostava de ter os da bola nos concertos e na ópera? Claro que sim. Uma elite verdadeira não se faz sem o livre acesso de quem quiser a essa mesma elite, sem exclusões. Na minha elite está o sem-abrigo que escuta Bach num velho rádio na entrada do Metropolitano ou o taxista que faz os seus CD's com música clássica e depois escuta no táxi (ouvidos por mim).
Ver Strehler hoje? Quarenta anos depois da encenação original podemos revê-la em Lisboa. É caso para dizer que peca apenas por tardia esta reposição, a qualidade não tem idade.
Um naipe de cantores de nível médio alto foi contratado. Uma maestrina, Julia Jones, substituiu o anquilosado (musicalmente) antigo director musical, Peskó, em boa hora. Será que Peskó já não é titular honorário? Parece que o título de titular honorário é uma titulação efémera e titubeante...
A Orquestra Sinfónica Portuguesa reduzida a um efectivo mínimo para Mozart e o coro do Teatro asseguravam o suporte musical.
Nota prévia a propósito de uma discussão sobre a questão da tempestividade e oportunidade do Rapto no Teatro Nacional de Ópera.
A ópera não é das obras que mais prefiro em Mozart, quando temos uma Flauta Mágica também em alemão ou umas Bodas de Fígaro (em italiano) e olhamos para a música do Rapto compreendemos o desnível. No entanto a música de Mozart é quase sempre genial e o Rapto não é excepção. A obra teatral é fraquinha, tendo por base um texto moralista e positivo, toda a trama serve apenas para nos apresentar o final surpreendente numa sucessão de eventos mais ou menos divertidos. Esta ópera foi feita obviamente para divertimento (e não foram quase todas?), para de forma bem disposta e alegre fazer rir o público.
O Rapto não será a melhor ópera do mundo, mas está no melhor possível no seu género simples (ou nem tanto assim, existem mensagens bem longe de triviais no texto e na música). Não entender o lado puramente hedonístico é não entender este Mozart, bem longe do D. Giovanni, que no entanto encarna também muitos dos elementos do Rapto como o aspecto moralista da cena final metida um pouco a martelo em cima da versão original de Praga e as peripécias divertidas ao longo de toda a trama. Evidentemente suportadas por uma qualidade literária muito superior...
Pode-se questionar este tipo de ópera num Teatro Nacional? É obvio que não, o Rapto é da melhor música de todos os tempos, apesar de Mozart ter feito muito melhor posteriormente. O libreto é divertido e diverte? Evidentemente, é assim a ópera do tempo, a ópera era um espectáculo popular e fundamental no equilíbrio social da cidade e do mundo barroco e do iluminismo. E por ser feita para divertir deve ser rejeitada? O Rapto do Serralho? Ainda por cima com uma encenação que realça o mundo maravilhoso, que nos aumenta a perspectiva recriando uma atmosfera da época sem ser anacrónica. Dispensáveis as buchas em português nos diálogos? Creio que até neste ponto se pode desculpar a reposição da encenação, a ópera era em alemão para público que falava alemão e para divertir esse público, para ser acessível, as buchas em português cumprem muito bem esse papel e reportam-nos, sem artificialismo, mas pela veia dionisíaca, natural, ao acesso e recepção como no tempo de Mozart.
A ópera nunca se pagou, como disse Pinamonti numa entrevista que me deu recentemente. O Teatro Nacional de Ópera é um serviço público e um repositório de competência que extravasa o Teatro e entra na sociedade. Se o meu leitor reparar bem pode verificar quantos, artistas, músicos e cantores do S. Carlos aparecem em multiplas e variadas actividades no exterior do Teatro. Produzindo música barroca, de câmara, contemporânea, espectáculos operáticos, entrando em projectos educativos, cedendo reforços à Gulbenkian (!), dando aulas nas mais diversas instituições, aparecendo na televisão em programas mais ligeiros (e aqui começo a torcer o nariz...) mas intervindo sempre. Directores de cena, cenógrafos, técnicos dos mais variados tipos têm sido formados na escola da ópera nacional e muito mais poderia ser feito.
Sobre o público uma única nota. O público é mau? Por acaso é fraquinho, como em todo o mundo, mas é o espelho da elite e da sociedade que temos, uma elite que enche os mil lugares do teatro em cinco récitas, cerca de 5000 pessoas. Admitindo que a ópera não devia ser subsidiada como sempre foi, algum desse público terá dinheiro para pagar a ópera ao seu justo valor, mas os jovens que já pagam o bilhete com esforço, pessoas que trabalham a dar 700€ por bilhetes de ópera? Significava apenas o fim da ópera em Portugal, quem tem dinheiro e gosta de ópera vai ao estrangeiro onde paga quase o mesmo (onde a ópera é subsidiada a sério) e não fica aqui a escutar a OSP, o coro do S. Carlos e os cantores medianos que cá passam. O dinheiro gasto é apenas uma fracção do que o Estado perde com o futebol todos os anos em fuga ao fisco, em dinheiros para federações ou em eventos megalómanos num país pobre. Pensar que há 5000 endinheirados para ver o Rapto do Serralho em Portugal? É para rir, os mais ricos na sociedade portuguesa não vão ao S. Carlos, não vão a lado nenhum na sua esmagadora maioria. Se fossem talvez houvesse mais mecenas. Quem vai à ópera é a classe média. Acabar com a ópera em Portugal? Porque o Rapto do Serralho é divertido? Já bastou a inquisição e a PIDE, Portugal é um país onde é proibido rir ainda hoje e continua a ter medo de existir... Entre os cinquenta mil que vão à bola e os cinco mil que vão ao S. Carlos prefiro os últimos, apesar das tosses e das palmas a despropósito, mesmo com falta de sentido crítico e o cheiro a naftalina no intervalo. Chamem-me elitista, claro que sou, mal de um país sem elites. Se eu gostava de ter os da bola nos concertos e na ópera? Claro que sim. Uma elite verdadeira não se faz sem o livre acesso de quem quiser a essa mesma elite, sem exclusões. Na minha elite está o sem-abrigo que escuta Bach num velho rádio na entrada do Metropolitano ou o taxista que faz os seus CD's com música clássica e depois escuta no táxi (ouvidos por mim).
Ver Strehler hoje? Quarenta anos depois da encenação original podemos revê-la em Lisboa. É caso para dizer que peca apenas por tardia esta reposição, a qualidade não tem idade.
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