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21.11.05

Oliveira Martins 

Existem duas perspectivas conscientes perante a corrupção e a decadência de uma sociedade, de um país. Uma é o cepticismo puro, o desdém por tudo e todos, um pessimismo negro e niilista.
Outra forma de acção é a crítica apaixonada, céptica, irónica mas esclarecedora. De facto a decadência e a corrupção existem, mas é preciso travar essa decadência através de uma crítica social construtiva, muito rigorosa. Quase uma psicanálise, interrogar, interrogar sempre, expor, retalhar dissecar, mas raramente dar pistas que terão, forçosamente, de ser descobertas pelo espírito doente. Esse espírito doente, que é hoje Portugal, já o era no tempo de Joaquim Pedro de Oliveira Martins, nascido em 30 de Abril de 1845 e falecido em 24 de Agosto de 1894.
Sem sequer ter concluído o curso do liceu, órfão muito cedo (e também sem filhos), foi um autodidacta toda a sua vida, leitor insaciável e infatigável, com uma capacidade incrível de trabalho e de produção, capaz de ler em diversas línguas (inglês, alemão, francês, espanhol...), escreveu dezenas de livros [ver final do texto]. Oliveira Martins apesar do seu pessimismo bebido em diversas fontes, como Schopenhauer, mas sobretudo fruto da sua profunda capacidade de observação do género humano, foi um homem activo, começou por ser um socialista de matriz proudhoniana e acabou por ser um pragmático do pessimismo lutando sempre através da sua crítica e da sua actividade política contra a degradação, que ele próprio sabia inexorável, de um país que ainda tinha um império.
Oliveira Martins foi deputado às cortes e ministro da fazenda por quatro meses. Homem de empresas e habituado à vida real, ao mesmo tempo um especulativo e um sagaz administrador, não conseguiu sobreviver aos meandros políticos do executivo e ao fim de quatro meses retirava-se de cabeça erguida do ministério.
O quadro que Oliveira Martins pinta das guerras liberais é atroz para todos os intervenientes, a dinastia de Bragança é posta a nu em todas as suas fraquezas. Célebre é o quadro de D. João VI com os bolsos do roupão sebento cheios de pernas de frango e na concordância única entre este e sua real esposa, Carlota Joaquina, no vício comum de não se lavarem. Oliveira Martins é um feroz crítico com uma pena acerada de todos os defeitos humanos. Para Oliveira Martins o refluxo da história de Portugal dá-se com a morte do último rei digno desse nome, D. João II.
Na sua escrita fulgurante sobressaem as descrições de batalhas recriadas pela sua imaginação prodigiosa, alicerçada nas fontes primárias e secundárias a que recorreu. De antologia a descrição das guerras púnicas na sua História da República Romana, uma história feita de motores sociais e de crises humanas, uma história de decadências e de derrotas éticas e morais. Uma história em que se retrata o pragmatismo egoísta dos actores colocando sempre em segundo lugar o bem comum. Sila é um facínora desdenhoso, Mário um imbecil cruel, Pompeu um palerma vaidoso, Crasso um crápula ganancioso, o velho Catão um provinciano tacanho estúpido que despreza a vida dos outros, apenas o Catão do tempo de César e o próprio Caio Júlio César merecem elogios, César é o génio da Razão de Estado, Catão é o íntegro, mas mesclados de comentários críticos. Cícero é um cata-vento oco, apatetado e cobarde, António um bêbedo, Octávio um vicioso conhecedor de homens e dos seus podres. Lépido um inexistente.
Um dos supremos pontos da escrita de Oliveira Martins é a sua descrição da batalha de Carra onde os erros de Crasso lhe valeram a etimologia dos equívocos capitais. "O império dos partos era o filho espúrio da civilização da Grécia e da podridão dos impérios persas, gerado nos alouces do Oriente. Os Arsácidas tinham nascido nos bordéis de Mileto, bebendo nas Milesíadas [itálico no original] de Aristides a primeira educação. Os merovíngios da Gália moderna foram coisa bem semelhante a esses bárbaros corrompidos pelas fezes de uma civilização, instruídos pelos representantes caducos de uma sociedade apodrecida." História assim não se faz, isto é política da pura... "Os romanos apertados caiam aos montões, revolvendo-se agonizantes e fazendo do chão um lodo de areia e sangue em que se enterravam homens e cavalos rugindo no estertor da morte." Diz-nos Oliveira Martins como se tivesse sido testemunha ocular de Carra.
"Tal foi o amor de António; tal é o amor dominante em todas as sociedades que, lançando-se perdidas nos braços fatais da natureza, se degradam à procura da Felicidade, correndo loucas atrás de uma quimera - pois a felicidade, como todos os absolutos, é apenas uma concepção do nosso espírito, não existe realmente, e só na saúde de uma alma que sinta e perceba as relações necessárias de que a existência resulta afinal, só em nós pode dar-se de modo ideal e subjectivo. Ser feliz provém de um acto de inteligência e de vontade. Independentemente das circunstâncias exteriores da vida."...
"Não é pois no desvairamento do profetismo judaico, explosão violenta e tortuosa dos sentimentos humanos formulada por um povo desgraçado, [aqui Martins assemelha-se a Nietsche] que o geral dos homens pode encontrar um rumo. Aquele que, sem ter de esmagar desapiedadamente os sentimentos e paixões da sua natureza, sem ter de partir a mola interior que o torna um ser vivo, consegue mitigar, moderar, ponderar ou equilibrar os impulsos do seu sangue com os ditames das suas ideias, sancionando paixões e pensamentos com a luz inextinguível dos instintos morais e do senso estético; olhando para as dores e para as feridas da sua vida com uma comiseração vizinha do desdém; olhando para o próximo e para o mundo sem desprezo nem orgulho, mas com a ironia caridosa de que deve a todas as coisas involuntàriamente inferiores; contemplando finalmente com uma curiosidade plácida e discreta o nevoeiro dos mistérios e problemas que, sondados, endoidecem e de que é mister fugir como dos abismos cujas vertigens alucinam ou embrutecem; este homem, por fora activo, por dentro como que apático, por vezes (só por vezes) atacado de tédio, mas sabendo que não deve nem pode aborrecer a vida: esse homem é o único verdadeiramente feliz. [Um auto-retrato vigoroso e involuntário do que Oliveira Martins aspirava a ser e, de facto, era] Nós somos um produto artificial, sem a espontaneidade poética ou bárbara, [não somos bons selvagens não é?] como todos os animais domesticados. O homem culto é o doméstico da razão." ... Em Roma o dissipar do medo religioso inicial que mantém a ordem, sucedeu um desenfreamento de paixões animais e a estas a reacção fatal e inevitável. Primeiro essa reacção chama-se Augusto - uma tirania hipócrita que repara o mecanismo desconjuntado da sociedade política. Depois chama-se Cristianismo - uma alucinação fúnebre que substitui ao realismo naturalista um realismo fantasmagórico, e ao culto do Amor desenfreado o culto desvairado da Morte. [Oliveira Martins leu e absorveu Nietsche].
Amor e Morte, a geração e a destruição, os dois pólos entre os quais se inscreve toda a nossa existência de efémeros, zénite e nadir de toda a realidade individual, confundiram-se, pondo-se em morrer a mesma fúria que antes se punha em amar. S. Paulo é um António que traz nos braços o esqueleto de Cleópatra." ...
"Tristemente contraditória é a nossa condição, porque o homem equilibrado e feliz, se não é um indivíduo vulgar, tem nesse próprio equilíbrio e nessa própria felicidade uma causa necessária de amesquinhamento. Não há verdadeira grandeza senão na desgraça, e nenhum homem é inteiramente digno de tal nome enquanto não recebeu alguma punhalada cruel da sorte.
A paz, a ventura, o bem-estar deprimem-nos; as aflições temperam-nos e tonificam-nos. O infortúnio levanta-nos e faz-nos heróis, até ainda quando nos enlouquece - nem há heroísmo sem um grão de vertigem. A Antiguidade clássica foi equilibrada e por isso foi feliz, mas por falta de filosofia, caiu de um lado na depravação abjecta, do outro no naturalismo desenfreado; e gregos e latinos sepultados na cova cristã, deram de si o homem moderno - mais fraco, mais atormentado, acaso porém maior, por isso mesmo que sofreu mais."
História da República Romana.

Se isto é história, filosofia, psicologia social ou apenas prosa vernacular, jocunda e poderosa, do melhor que se escreveu em português, o leitor que escolha. Eu escolhi ler Oliveira Martins, e continuo a retirar um prazer imenso na sua escrita, de comover, arte pura e refinada da melhor prosa que existe em português. Amigo de Antero, que escreveu dos melhores sonetos que o português encerra na sua rocha maciça e que viram a luz do dia pela sua pena e imaginação, Oliveira Martins escreveu vertiginosamente palavras como diamantes lapidados, concorde-se ou não com o que pensa e pena... Oliveira Martins é um irónico, pelo menos assim quer ser visto, furioso de amor a Portugal e aos homens. É tão feroz quanto mais apaixonado pelo seu povo e mais ácido aparenta ser. Desdenhando na forma mas desejoso de transformar o mundo. Sem parar nunca, através da pena e da sua acção política. Sem se preocupar com a questão do regime, preocupando-se apenas com as motivações dos homens.

Bibliografia retirada do artigo de Sérgio Campos Matos no Instituto Camões

* Febo Moniz,, Lisboa, Empresa Lusitana Ed. s.d. (1867);
* Os Lusíadas. Ensaio sobre Camões e a sua obra, em relação à sociedade portuguesa e ao movimento da Renascença, Porto, Imprensa Portuguesa Ed., 1872.;
* Teoria do socialismo (pref. de António Sérgio), Lisboa, 1952 (1.ª ed., 1872);
* Portugal e o Socialismo (pref. de António Sérgio), 2.ª ed., Lisboa, 1953 (1873);
* A circulação fiduciária. Memória apresentada à Academia Real das Ciências de Lisboa, Lisboa, PAMP, 1923 (1878);
* História da civilização ibérica, 8.ª ed., Lisboa, Parceria A.M.Pereira, 1946 (1.ª ed., 1879);
* História de Portugal. Edição crítica (introd. de Isabel de Faria e Albuquerque e pref. de Martim de Albuquerque), Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, s.d. [1988];
* Portugal Contemporâneo, 3 vols., Lisboa, Guimarães Editores,, 1953 (1.ª ed., 1881);
* O Brasil e as colónias portuguesas, 5.ª ed., Lisboa, Parceria A.M.Pereira, 1920 (1.ª ed., 1880);
* Elementos de Antropologia, 7.ª ed., Lisboa, Guimarães Editores, 1954 (1880);
* As raças humanas e a civilização primitiva, 4.ª ed., 2 vols., Lisboa, Parceria A.M.Pereira, 1921 (1881);
* Sistema dos mitos religiosos (pref. de José Marinho), 4.ª ed., Lisboa, 1986 (1882);
* Quadro das instituições primitivas, 3.ª ed., Lisboa, Parceria A.M.Pereira, 1909 (1883);
* O Regime das riquezas, 3.ª ed., Lisboa, Parceria A.M.Pereira, 1917 (1883);
* Tábuas de cronologia e geografia histórica, Lisboa, Livraria de António Maria Pereira Ed., s. d. ( 1.ª ed., 1884);
* Política e economia nacional, 2.ª ed., Lisboa, Guimarães Editores, 1954 ( 1.ª ed, 1885);
* História da República Romana, 4.ª ed., 2 vols, Lisboa, Parceria A.M.Pereira, 1927 (1885);
* Camões, Os Lusíadas e a Renascença em Portugal, 4.ª ed., Lisboa, Guimarães Ed., 1986 (texto correspondente ao da 2.ª ed., 1891);
* Portugal nos Mares, Lisboa, Guimarães Editores, 1994 (1889 e 1924);
* Os filhos de D. João I, 2 vols., Lisboa, Guimarães Editores, 1983 (1.ª ed., 1891);
* A vida de Nun'Álvares, 9.ª ed., Lisboa, Guimarães Editores, 1984 (1.ª ed., 1893);
* A Inglaterra de hoje, Lisboa, Guimarães Editores, 1951 (1893);
* Cartas peninsulares, Lisboa, Liv. António M.Pereira, 1895;
* O Príncipe Perfeito (pref. de H. Barros Gomes), 6.ª ed., Lisboa, Guimarães Editores, 1984;
* Dispersos (sel., pref. e notas de António Sérgio), 2 vols, Lisboa, Oficinas Gráficas da Biblioteca Nacional, 1924;
* Correspondência de J.P. de Oliveira Martins, (pref. e anotada por F.A. de Oliveira Martins, Lisboa, Parceria A.M.Pereira, 1926;
* Perfis (pref. de Luís de Magalhães), Lisboa, Parceria A.M.Pereira, 1930;
* Páginas desconhecidas (Introd., coorden. e notas de Lopes de Oliveira), Lisboa, Seara Nova, 1948;
* Literatura e filosofia (pref. de Cabral do Nascimento), Lisboa, Guimarães Editores, 1955;
* O Jornal, Lisboa, Guimarães Editores, 1960;
* Política e história, 2 vols., Lisboa, Guimarães Editores, 1957;
* Fomento rural e emigração, 3.ª ed., Lisboa, Guimarães Editores, 1994.


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