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6.11.05

O retomar 

Wagner regressou ao Siegfried muitos anos depois de abandonar a ópera, pelo meio começou e acabou o Tristan e os Meistersinger, quando regressa à obra, vem mais sábio, mais maduro, mais pessimista porque mais conhecedor do mundo e mais rico depois de conhecer Schopenhauer. Depois da experiência filosófica de Tristan, um imenso poema sinfónico com (poucas) palavras, Wagner tem tempo de compor os Mestres Cantores de Nuremberga em que o homem mais velho renuncia ao mundo, e ao amor, para partir à conquista do seu espaço de retirada budista, tanquila, dando lugar ao mundo belicoso e viril dos jovens.
Wagner depois de se ter embrenhado em Siegfried, herói vital, jovem e cheio de força, cansou-se desse mesmo herói, abominou-o mesmo, Siegfried já não era o motor das ideias de Wagner. Feuerbach e os jovens alemães estavam esquecidos, Bakunine era um herói de papelão, Hegel um neo-gongórico falso e mesquinho, Schopenhauer tinha denunciado a filosofia alemã como formalista e obscura. A clareza luminosa das suas ideias em escritos de uma transparência linguística iridiante iluminara Wagner. O herói é agora Wotan, como sempre o fora no seu inconsciente, ele mesmo o afirmou, Wotan o W de Wagner. Siefried era demasiadamente novo e optimista para Wagner se reconhecer nele. O poema escrito mais de duas décadas antes tem agora um novo sentido ilustrado pela música, tudo se tornou claro para Wagner que procurava apenas uma luz que lhe explicasse o sentido do que tinha imaginado, essa luz era Schopenhauer, tudo era claro agora. Wotan surge mais uma vez, um breve instante no Siegfrid como um velho viandante, é a oportunidade para Wagner deixar claro que o herói é o velho deus zarolho, apenas um homem cansado e triste que se retira desiludido com a sua obra mas imensamente realizado pela essência do seu próprio gesto de renúncia suprema. O verdadeiro Deus é aquele que sabe quando se retirar. Um exemplo que nem todos percebem.
Mais de uma década depois de começar o Siegfried e mais de vinte anos depois de iniciada o ciclo do Anel é urgente terminar. Siegfried a meio do segundo acto é retomado, com uma força e uma energia notáveis. O herói, jovem, estúpido, obtuso, sem conhecer o medo, e por isso sem possibilidade da verdadeira coragem de dominar esse mesmo medo, lança-se à aventura. Tem na mão o anel e o elmo que lhe dão poderes mágicos que ele não domina, um pássaro sussurra-lhe mistérios insondáveis que ele em parte compreende, segue esses murmúrios. Falta-lhe partir a lança do avô e conquistar Brünnhilde no alto da sua montanha mágica. É essa exaltação de conquista que se escuta na música do prelúdio do terceiro acto. O acto final de Siegfried, mostra também a angústia agitada de Wotan e o fervilhar da sua alma antes do supremo instante da confrontação última com o seu neto, antes disso falará com a Deusa da Terra, Erda, no seu derradeiro passo antes da aceitação do Nirvana. A deusa mãe não tem respostas.
Esta música ilustra também a ânsia de Wagner por terminar, enfim, a obra mais importante de toda a sua existência e um dos pilares essenciais da Criação Humano de todos os tempos: O Anel do Nibelungo. O final de Siegfried surge assim não como um sacrifício de Wagner mas como uma intensa revelação. As lições de Ópera e Drama estão assimiladas, são agora naturais, os princípios dogmáticos que eram inflexíveis em o Ouro do Reno, são princípios livres transgredidos a bem da música e do drama numa demonstração de génio irrepetível. Muitos tentaram seguir as pisadas de Wagner, ninguém o conseguiu. O seu filho Siegfried (!!), escreveu mais óperas do que o pai, mas quem as escuta hoje?

Ouvir o Prelúdio do Terceiro Acto de Siegfried. Não esquecer que como a música é infinita este prelúdio acaba por um corte inopinado. Serve apenas como uma lembrança para se escutar a ópera toda.

P.S. Este prelúdio incrível, aqui interpretado pela Filarmónica de Berlim com direcção de Herbert von Karajan, é um momento único do Ring e da história da música. A orquestra é usada de uma forma absolutamente inultrapassável desde os maciços mas extraordináriamente bem cantados graves até aos pontilhados dos trompetes e aos movimentos obsessivos dos violinos. Nove temas numa concentração incrível de material fundem-se num tecido estranhamente denso e ao mesmo tempo de uma delicadeza quase diáfana. Karajan dirige aqui com uma mescla de força e subtileza inacreditável, o clímax da direcção orquestral e da técnica sinfónica da orquestra ao mesmo tempo que uma leitura sublime das notas deixadas no papel por Wagner. Uma orquestra menor transforma facilmente este prelúdio numa pasta informe.
Infelizmente o mp3 comprimido não deixa escutar a gravação magistral deste Siegfried. As tubas cantam de forma doce como veludo, os trombones entram e saem sem cessar, de forma impressiva, máscula mas ao mesmo tempo sem rasgar, sem agredir um instante que seja. A coesão da orquestra é sobrenatural, os sforzandi modelares, marca indelével da sonoridade da Filarmónica de Berlim e de Karajan.
Os temas, já conhecidos no Anel, são usados com um liberdade total, diríamos improvisada. Wagner está no limite da sua criatividade, o ritmo é avassalador, a melodia é majestosa, o contraponto invade este prelúdio com uma riqueza e uma frescura sem paralelo nem no Ouro do Reno nem na Vaquíria, esta é uma nova música. Não sabemos se será melhor, nem interessa, o ponto é que é totalmente nova. Wagner na sua capacidade infinita de renovação.
O retomar da obra, oito anos depois da interrupção, para a transcender ao contrário de Wotan que se retira para dar lugar à renovação e a outro mundo onde já não tem lugar.

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