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1.11.05

O credo de Verdi 

Otello de Verdi no S. Carlos. Análise breve da encenação de Nicolas Joel.

Otello é uma obra prima de Verdi, talvez a sua melhor ópera. Mas é uma obra que para além de ser trágica acaba por ser amargamente triste.
Iago é o personagem central da ópera Otello de Verdi. Central porque Verdi assim o quis através da música e do libreto de Arrigo Boito. Porque Verdi no seu pessimismo e descrença no homem seu contemporâneo atirou para cima de Iago todos os vícios do Homem. Iago será o refinamento máximo do velhaco, mas Otello, o suposto herói, o general de mil padecimentos e mil vitórias, afinal não passa de um cobarde vaidoso e estúpido para quem a sua imagem perante o mundo é mais importante que o seu amor por Desdemona e mesmo mais importante do que a vida da sua infortunada mulher. Otello para quem o instinto homicida oriundo do seu tormento egoísta não se detém perante o amor verdadeiro de alguém infinitamente mais fraco e, sobretudo, inocente e puro.

Otello é assim mais um paradigma do nosso tempo, o triunfo da velhacaria, da cobardia, da estupidez e da força bruta a troco de nada. Iago talvez morra no final mas o seu castigo, o seu nada como afirma no credo, é apenas mais um passo para aquilo que ele vê como a sua redenção. A morte? Algo que acontece, e já está, ligeiramente. Nesse sentido Iago é mais nobre do que Otello: Iago é consequente com os seus actos.

Personagens planares e simples, esteriotipos, Otello oco no princípio tem alguma evolução na sua perturbação e na escalada de violência que o ciúme produz. Mas é sempre o mesmo Otello oco e obtuso, cego pelo ciúme. Alguém disse que Otello se tinha deixado cegar pela desilusão de ver o seu amor puro destruído ou que o facto de ser Mouro o faria sentir complexos de inferioridade que o tornariam mais vulnerável à intriga de Iago. Não me parece, para Otello conta a imagem exterior e o seu sentido, falso, de honra pública. O amor não pode existir em semelhante criatura, apenas o sentido de posse. Ao ser desapossado Otello vinga-se da única forma que sabe: recorrendo à violência.

Como peça operática Otello tem o valor de ser convincente e de reforçar através da música a trama de Shakespeare, mas não escapa a certos resquícios do formalismo da ópera italiana de novecentos, a maldição de Otello, a pobre Desdemona que depois de estrangulada ainda canta! Ainda se fosse uma estocada, mas depois de estrangulada!... Repara-se que se tivesse sido apenas sufocada cantar significava que recuperava a respiração e que ressuscitara. Enfim... é sempre necessária uma gargalhada para a coisa não ser demasiado séria. O septeto, os coros para aqui e ali, os resquícios de árias que vão pautando a ópera que também se divide em ariosos e diálogos, recitando e cantando. Verdi e Boito conseguem utilizando o material formal de que dispõem compor uma obra teatral credível em fluxo contínuo, sem divisão explícita em números, em que os elementos formais subjacentes acabam por dar um duplo recorte entre a acção dramática e o plano psicológico. Sem rasgar com a tradição, sem revolucionar, assimilando as novas tendências do teatro operático pós wagneriano, e ao mesmo tempo fingindo que não se incorporaram estas novas ideias...
Curiosamente algumas alminhas do público do S. Carlos, ignorantes e obtusas como nos tempos dos melodramas de cordel, ou dos Thaïs de Massenet que Vianna da Motta criticou de forma tão severa, lá tentavam bater palmas nos finais de alguns "números" dos cantores, interrompendo o fluxo discursivo da ópera. Safa, que nunca mais nos safamos disto...

Otello é uma ópera que ultrapassa o tempo, Shakespeare escreveu a peça no século XVI, Verdi e Boito fizeram a ópera no final do século XIX, foi agora encenada no S. Carlos em co-produção com o Teatro do Capitole de Toulouse. Os males do Mundo são os mesmos, a estupidez, a velhacaria pura, a arrogância, o egoísmo, o ciúme. Quatrocentos anos depois, e numa obra intemporal, encontramos uma encenação vaga, desinspirada, datada no tempo, soturna e monocromática, sem rasgos de luz e de sombra. Banal o uso de cantores de braços abertos em poses estentórias e abuso das poses de faca e alguidar numa ópera bem distante do Trovador, por exemplo. Iago demasiado histriónico mais parece um mau bobo da corte do que um velhaco cínico e sinistro na sua capacidade de dissimulação.
Figurinos pseudo historicistas. Luzes sem marca, limitam-se a iluminar os cantores quando poderiam marcar fortemente os diferentes estados de espírito.

O Otello não carece de uma encenação datada para ser convincente. O assunto da ópera é eterno. Otello é excelente do ponto de vista de eficácia dramática para ser desvalorizado por uma encenação de melodrama de cordel, e não são uns cenários monolíticos que giram sobre si próprios e umas escadas que sobem e descem que "modernizam" uma encenação. Provavelmente uma encenação de bastidores pintados (à século XIX) mas com coerência dramática e composição com cabeça tronco e membros poderia ser bem mais eficaz com menos recursos.
Dicotomia entre exterior e interior demasiado vaga, quando se reflecte que é nesta dicotomia que poderia residir um dos elementos chave da ópera percebe-se o que se perdeu, a entrada no mundo interior, a ausência de luz versus luz do sol, o jogo de claros e escuros entre Iago e Otello, entre Iago e Desdemona, entre Cássio e Iago e entre Otello e Desdemona, personagens de luz e de sombra, ou imagens públicas e privadas dos mesmos personagens, um jogo conceptual que ficou todo na sombra... E que faria falta mesmo numa encenação pseudo historicista. (Pseudo historicista porque não recria os ambientes de forma exacta - o que fica muito caro - mas de forma estilizada).

Porque razão Otello entra pela janela, como se de um ladrão se tratasse, no seu próprio quarto (quarto acto)? Todos os outros usam as portas, só o dono da casa é que entra pela fenestra! Qual a razão dramática deste artifício descabido?
Interessante e belo o uso da projecção do mar no início, cena da tempestade, mas sem qualquer continuidade ao longo da encenação. Entrada de leão saída de sendeiro...


Continua (discussão musical do Otello)

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