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11.9.05

Um livro 

Finalmente em Lisboa depois de um Verão wagneriano...

Depois de Bayreuth consegui algum tempo para ler o livro de Bryan Magee (n. 1930) "The Tristan Chord", na versão da Metropolitan Books ou "Wagner and Philosophy" na versão da Penguin Books. O autor é um velho conhecido desde "Aspects of Wagner" e de muitos livros sobre filosofia e pensamento, notável é o seu “Confessions Of A Philosopher”, que não sei se se encontra traduzido em português, além de dezenas de outros livros. Magee é professor em Oxford, crítico e habitual em Bayreuth. Conheceu Winifred Wagner a inglesa que casou com Siegfried, filho de Wagner, com ela teve longas conversas (nos pós-guerra) que o ajudaram a decifrar muito do pensamento subjacente a Bayreuth nos últimos 100 anos.
Ao ler Magee recordei a filosofia de Schopenhauer, o pessimismo e a ilusão do mundo. O que me motivou de novo reflexões pessimistas sobre o país em que vivo e a gente que nos governa. Magee, que também (eu diria este também em relação a Wagner) começou na esquerda e acabou na direita, "From Labour to Tatcher" poderia ser o título de uma biografia política do filósofo Magee que também foi MP. Magee diz-nos que os males do mundo são na maior parte fruto de confusões e erros, ou incompetência, ou pura estupidez, mais do que intenções maldosas, no entanto há certamente bastante destas coisas todas: no lenho retorcido da humanidade nada de direito alguma vez foi feito... O pessimismo de Schopenhauer, tão caro a Wagner, diz-nos ainda mais do que Magee transmite: a ganância, a inveja, a velhacaria e o egoísmo são o fermento, ele mesmo, da maioria dos actos humanos. Estou em concordar: as virtudes relacionadas com a compaixão e a dádiva desinteressada aos outros são escassos bens do espírito humano. Mesmo sem crer na visão oculta de um mundo visível, representação da vontade subterrânea de algo inominável subjacente ao mundo palpável dos sentidos, sinto esse mesmo pessimismo. E ao ver sociedades emergentes, que derivam de universos muito pobres, como o Portugal de hoje, um Portugal saído de muitos anos de analfabetismo, de depressão psicológica de uma guerra e de um salazarismo tão analfabeto como o do país, depois de anos de república devassa de ganâncias várias e pouco desenvolvimento, depois de anos de monarquia liberal de "piolheira" e de apropriação pelas classes liberais emergentes dos bens confiscados às ordens religiosas, depois de ver que Portugal foi quase sempre governado para proveito próprio de alguns em detrimento da maioria dos cidadãos, estou tentado a ser pessimista. É claro que estamos muito atrasados, a escola tornou-se universal há muito pouco tempo e o impacto da cultura, dos valores mais profundos da solidariedade, da dádiva, do serviço desinteressado nem sequer tiveram tempo de ser reintroduzidos pelo pensamento crítico e reflexivo sobre o nosso mundo. Hoje em dia não se reflecte sobre o mundo, não se pensa no outro, não há tempo, o tempo é de asfixia e de consumo: é preciso pensar na casa, no carro, em subir no emprego, de preferência à custa de alguém mais sério e mais competente, é necessário obter um cargo, em eliminar uns adversários políticos, em obter um exclusivo no jornal, em nomear um amigo do partido, analfabeto também, para um lugar de administração de um banco público, porque este sabe demais, porque àquele se devem favores... Bem, até pareço que estive a ouvir um sermão do padre João Caniço!
Mas, voltando ao tema que me trouxe aqui, ao contrário de alguns países mais desenvolvidos, e com menos corrupção, nós temos menos tempo de evolução e creio vai tardar muito a sair deste atoleiro português, deste atoleiro humano. Temos um novo referencial mas não temos a preparação. A natural bondade, solidariedade e força do povo português de antanho, misturados com a ganância e o egoísmo de muitos que a massa humana é sempre a mesma, foram substituídas por consumismo puro e por valores relacionados com esse mesmo consumismo. Uma espécie de deslumbramento colectivo depois da fome endémica (que persiste no analfabetismo cultural, no egoísmo desenfreado, na inveja lusitana típica e na fome propriamente dita que ainda existe).
Voltando a Magee que divago muito, não percebo como é que consegue em 17 capítulos e um apêndice, este último sobre o anti-semitismo de Wagner que é muito instrutivo mas altamente duvidoso em termos argumentativos no que diz respeito a Mime, Alberich e Beckmesser (mais uma divagação), não percebo, escrevia eu, como é possível não referir uma única vez a corrente estética de Wagner e a relação do romantismo com a revolução ou como se continua a enquadrar o romantismo de Wagner após o choque da descoberta e assimilação do "Mundo como Vontade de Representação". Romantismo e revolução, romantismo e Schopenhauer, estética e filosofia são associações estranhas a Magee, que sabe muito de Wagner, que sabe muito de Schopenhauer (tem pelo menos um livro sobre este filósofo), adora e compreende a música de Wagner mas é estranhamente simplista em alguns aspectos.
Algo que me intriga intensamente é o tema final do Ring, que espero ansiosamente poder escutar no próximo ano em Bayreuth. O poema do Ring foi escrito antes do encontro de Wagner com a obra de Schopenhauer, mas a música foi escrita após este encontro, sobretudo o final do Siegfried e todo o Crepúsculo. Magee diz-nos: se o poema não se alterou, a música ganhou a influência de Schopenhauer. O abandono de Wotan é a renúncia ao mundo antes de Wagner conhecer o filósofo, reconhecer este facto foi para Wagner uma revelação. Wotan, o Wagner da idade adulta, o Wagner idoso e sábio por oposição a Siegfried, o jovem revolucionário, idealista, sem ter ainda compreendido o mundo e sem se ter desiludido com a mesquinhez humana. No entender do próprio Wagner Siegfried é a sua imagem de jovem que terá de morrer para dar a conhecer o novo Wagner, um Wagner maduro que se retira do mundo, derrotado mas por sua vontade, a renúncia como acto supremo de criação. Siegfried morto, Wotan retirado no seu Crepúsculo Eterno, rodeado pelos seus pares e pelos heróis de mil combates. Como Wagner aspirava a esta retirada redentora para o nada. Para o Nirvana que era Schopenhauer milénios antes de ter nascido. O Nirvana do budismo que deixou o filósofo surpreendido já bem entrado na casa dos trinta, e muito posteriormente aos seus textos mais profundos terminados antes de fechar a casa dos vinte, exactamente o "O Mundo..." foi publicado na sua primeira edição aos 27 anos se bem me recordo. Cascatas de revelações paralelas, Buda para o filósofo, o filósofo para Wagner, textos escritos para se encaixarem na explosão de luz da descoberta posterior, ou reinterpretados à luz de outra sabedoria?

Nesta divagação em jeito de pensamento pessoal, sem grande preocupação com alguém que possa ler, e peço desculpa por isso mesmo a quem me tenta ler de facto, mas creio que esta divagação se tornou demasiado íntima. Quase um fio de pensamento que foi caindo para o teclado. Minto se disser que esta reflexão não é influenciada por saber que posso ser lido, mas mesmo assim insisto neste carácter de diário neste texto...

O livro de Magee caiu-me mal por uma razão muito simples, e depois desse desconforto comecei a procurar falhas nas argumentações do autor. A razão (que comecei a esboçar bem mais acima): o tema final do Ring surge primeiro na Valquíria, terceiro acto, logo após o anúncio por Brunnhilde de que Sieglinde estaria grávida de Siegfried e que o mundo tinha a esperança de um novo herói. Recordo que na Valquíria Wagner expõe 405 ocorrências locais de motivos (sem contar repetições imediatas do mesmo motivo ou alterações do mesmo em diferentes tessituras ou em diferentes pontos da orquestração mas a propósito do mesmo momento dramático, exemplo do primeiro acto da Valquíria: a espada que surge oculta nos baixos e depois se vai revelando no trompete baixo até chegar ao trompete de forma luminosa conta apenas como um tema). Já o Crepúsculo expõe 1003 ocorrências de motivos, um número assombroso. O motivo que encerra o Crepúsculo surge apenas e só em dois momentos em toda o ciclo das quatro óperas, é o tema da "Redenção pelo Amor" como é conhecido, talvez impropriamente, o tema deveria ser conhecido como a "Esperança" ou "Esperança no Futuro" ou "Anunciação do Herói Redentor", uma vez que é a primeira aparição de um tema, e logo este tema assombroso de força elegíaca e trágica, que dita a sua natureza. Noto que outros temas mudam de significado à medida que vão sendo usados e reaparecem. Não é o caso deste: anuncia o futuro Siegfried e encerra toda a obra, não tem tempo para evoluir, é um tema que Wagner usa de forma evidente com um sentido profundíssimo, como é natural na sua forma de compor e na sua dramaturgia, pensadíssima, reflectida, filosófica. Em 1003 ocorrências temáticas qual o porquê desta escolha única? Uma obra de arte total ou um arco total de vida e de pensamento? Enfim, algo que me parece óbvio é a esperança que Wagner põe no futuro, no homem que fica na terra após a queda dos heróis e o Crepúsculo dos Deuses. Esperança e não renúncia. A renúncia de Wotan é a renúncia de Wagner, como será a renúncia de Tristan, escrito a meio da composição musical do Ring (o poema do Ring é muito anterior, 1850), renúncia a Feuerbach, a Hegel, a Bakunine e aos ideais de juventude, é a renúncia dos jovens alemães que entretanto tiveram tempo para a desilusão, é a renúncia ao socialismo, a renúncia à utopia, a renúncia ao sonho e a aceitação do mundo como ele é, triste mas sábio (?). A renúncia que Wagner não consegue levar a cabo até às últimas consequências no Parsifal, e aqui volto a não aceitar de barato a visão de Magee, um Parsifal Schopenhaueriano, ou um Parsifal reaccionário? Em Parsifal, onde Tristan surge de forma colossal, Wagner dixit, salvo e redimido, tornado banal, um fraco que não ama perdidamente a sua Isolda mas que cede à tentação da primeira que se lhe atravessa ao caminho, na forma de um Anfortas, decadente e corroído pelo tormento da sua própria corrupção moral. Longe estão os tempos de um Tristan que renuncia ao mundo por amor, triste mas altivo e desejoso da vontade de regressar ao nada onde se poderá unir a Isolde, Tristan que morre quando pode comunicar essa renúncia ao seu amor, ao ver Isolde pela última vez, (como vem escrito na partitura e não como na última encenação em Bayreuth em que Tristan pressente Isolde mas não a chega a ver). A ferida de Tristan é pura como o amor que a gerou, é o sofrimento redentor tão forte como a paixão, a morte como forma de amor última, a renúncia como redenção total, suprema e sagrada, finalmente Schopenhauer em refinamento extático. No caso de Anfortas temos um palerma que sofre horrivelmente pela sua própria estupidez e fraqueza, sem ser por amor mas por lascívia. Algum paralelo? Wagner diz que sim, Magee concorda. Mas Magee alerta muitas vezes no seu livro que: “o que Wagner escreve não se deve tomar muito a sério”. Wagner gostou sempre manipular os outros, de alterar a história, de reinventar até a sua vida. Por outro lado a consciência profunda do seu génio e a sua indómita vontade de poder (e Nietsche volta a ter razão aqui) leva-o a negar o Schopenhauer em puros actos de criação artística onde o seu inconsciente mais profundo dita a força da sua obra, a revolta do génio mesmo perante o seu guia espiritual, o seu ídolo, uma revolta escondida, cifrada, mas mais forte do que os gritos das valquírias no acto onde o “Tema da Esperança” surge. Wagner nega claramente a renúncia de Wotan como objecto mais importante da sua magna obra, ao eleger o tema da redenção e da esperança no futuro como pedra final do seu colossal arco.

Wagner and Philosophy, um livro estimulante e profundo de Bryan Magee, um livro simples e directo, com argumentos bem elaborados e um pensamento estruturado e coerente. Um livro que faz pensar e deixa muitas pistas para reflexão e pensamento futuros. Provavelmente voltarei ao assunto para discutir o anti-semitismo de Wagner em relação ao apêndice do livro de Magee.

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