5.8.05
Parsifal em Bayreuth - Ou os Ódios de Schlingensief
Parsifal
Partitura e poema de Richard Wagner
29-7-2005, 16h Bayreuth
Direcção Musical Pierre Boulez, *****
Encenação: Christoph Schlingensief, 0
Director do Coro: Eberhard Friedrich, *****
Cenografia: Daniel Angemayr – Thomas Goerge, 0
Design de Luzes: Voxi Bärenklau, 0
Luzes de Elrich Niepel, 0
Figurinos de Tabea Braun. 0
Vídeo: Meika Dresenkamp. 0
Distribuição:
Amfortas: Alexander Marco-Buhrmester, ***
Titurel: Kwangchul Youn, ***
Parsifal: Alfons Eberz, 0
Klingsor: John Vegner. ***
Kundry: Michelle de Yung. ***
Gurnemanz: Robert Holl **
Orquestra do Festival de Bayreuth ****
Coro do Festival *****
Um dia quase perdido em Bayreuth não fora a incrível ambiência e a direcção da orquestra de Pierre Boulez, notável na sua sensibilidade e plasticidade. O estafado epíteto de “transparente” aplicado invariavelmente a Boulez já se tornou num lugar comum sem significado. Boulez ao contrário do que a crítica internacional, e local (por exemplo nos jornais de Munique), mais uma vez afirmou, nem sequer foi transparente, terá sido luminoso, vivo, erótico, musical. Sob a sua direcção a orquestra esteve simplesmente brilhante, sem falhas, respondendo como uma mola. Uma sonoridade incrível nas cordas, de comover. Um tempo rapidíssismo que conseguiu realizar o primeiro acto em 1h33m, pelo meu relógio, o programa previa 1h40m não esquecendo que Toscanini fez o mesmo acto em Bayreuth em 2h05m!
Já as vozes não estiveram tão bem, continua o eixo entre América e Alemanha no Bayreuth de 2005, se Gould não foi perfeito, no Tannhäuser, Eberz foi péssimo no Parsifal e um velho Robert Holl lá nos foi ladrando e rosnando o papel de Gurnemanz. Mas o pior foi mesmo a encenação incrível de um suposto intelectual que pretendeu negar totalmente a obra do alemão. Empenhou-se Schlingensief em mostrar-se intelectual, transgressor e politicamente incorrecto, da forma mais politicamente correcta que existe, ao longo de umas quase cinco horas penosas para quem teve de visualizar as barracas do bairro da lata em que o palco do Festspiele se tornou.
O público de Bayreuth apupou, claro que sim, mas não pelo julgo serem as razões de fundo de uma encenação desastrosa. Depois de se ovacionar uma encenação falsamente moderna, convencional, reaccionária, pós moderna no sentido pior da palavra em Tannhäuser, Sexta-feira apupou-se uma encenação intelectualizada, verdadeiramente pós moderna, no melhor sentido da palavra (o que também é, em geral, péssimo). Mas demasiado carregada de símbolos e de referências para deixar respirar a obra de Wagner. Na sua tentativa de recriar de cima a baixo o texto wagneriano, Schlingensief não percebeu, ou quis negar, o óbvio, ou seja a própria contradição interna de Wagner que, ao criar Parsifal, negou a sua vida e a sua criação anterior. Parsifal é uma obra-prima musical, mas impotente e reaccionária no seu conteúdo, impregnada de uma religiosidade tardia de um homem velho e aqui Nietsche bateu no ponto exacto.
Experiente em termos musicais, Wagner é um génio como compositor, capaz de usar toda uma paleta de artifícios e toda a sua arte, para criar uma obra-prima de reacção filosófica, obviamente uma obra que não rasga os caminhos de um Tristan em termos musicais. Wagner salvou todos os protagonistas no final, mesmo Kundry que obteve a paz finalmente merecida, e o encenador matou-os a todos. Está tudo dito, não seria preciso estar a falar da tralha cenográfica que encandeia o espectador e o faz abstrair da música, das grades, das barracas, dos vídeos a preto e branco, dos sacrifícios animais, da substituição do Graal por uma preta gorda a lembrar uma Vénus primitiva e de mamas à mostra onde todos os cavaleiros do Graal, agora feitos sacerdotes de todas as religiões do mundo, passavam as mãos pelo sexo para as retirarem manchado de sangue. Repugnante e desnecessário para a economia da obra, mesmo na visão de ver a comunhão com o Graal como um ritual vudu algures em África, ou melhor: no Haiti. Não seria necessário utilizar uma loura de vagina desfraldada ao vento, para lembrar a faceta carnal de Kundry. Ver o Parsifal num aglomerado de barracas, num ambiente negro, com vídeos horrendos a passar por cima, numa indescritível confusão cénica, filosófica e histórica com cruzamentos entre a África e seus mitos contemporâneos das lendas de Parsifal é desnecessário e disparatado. A impotência de Klingsor não é evidenciada, tal como a impotência de Parsifal, uma impotência emocional e intelectual paralela à impotência de Wagner face à morte que demonstrou ao escrever esta obra. É na impotência de Parsifal, na tal renúncia à carnalidade, onde radica afinal a sua força. No caso da encenação de Bayreuth o encenador transforma Parsifal em amigo de Klingsor, juntando o impossível: a estupidez com a inteligência. A oferta da lança de Klingsor a Parsifal no meio de abraços, negando o poema que cantam e a música que se escuta é a negação total de conceito de obra de arte total e unitária.
A impotência de Wagner que ao contrário de Wotan não aceita a morte como um destino natural e torna essa impotência na força, através da sua última obra. No meio da confusão cénica de Schlingensief sobra muito pouco para Wagner. O encenador não deixa respirar a obra, tem ideias geniais, é facto, a ideia de tornar os cavaleiros do Graal em sacerdotes de todas as religiões é brilhante, numa tremenda alegoria subversora dentro da obra e que acaba por se perder no excesso de tiques transgressores de um mau realizador de cinema que acaba em Bayreuth como encenador de Wagner. Terá sido a oportunidade da vida de Schlingensief. Mas Wagner é difícil: tentar impor a Wagner uma distorção total dos seus próprios conceitos é negar a essência do projecto de criação, é tentar ser mais génio que o próprio autor original. É transcender o narcisismo do velho Richard, coisa bem difícil de fazer. A minha opinião: quem odeia Wagner não encena Wagner, é uma tortura para o próprio e para todos os que o têm de suportar…
Vejamos alguns detalhes: a cena de transformação torna-se numa confusão em que os referentes visuais são tão agressivos, com três planos de vídeo, cenários muito complexos e um coro imenso com dezenas de elementos em movimento no palco com as mais variadas vestes, Kundry, Parsifal, Amfortas, Gurnemanz, uma loura nua da cintura para baixo, e outra loura, que na versão do ano passado representava a antiga amante de Titurel, este agora nem sequer aparece em cena e canta dos bastidores, a tal africana gorda e mamas monstruosas lá está deitada de pernas abertas como elemento representando a fertilidade e o Graal ele mesmo. Os elementos cénicos são tantos e tão dispersos na sua profusão que destroem toda a unidade cénica. Trágica esta destruição por um “intelectual” de qualquer unidade cénica e de qualquer representação artística das ideias de Wagner. Para escutar a música havia que fechar os olhos. Depois os cantores, com voz muito agressiva, estavam sempre demasiado na boca de cena devido a uma cenografia que enchia o palco de lixo tipo brique-a-brac de ferro velho e os impedia de cantar a meio palco. Um erro técnico de principiante, em Bayreuth é sabido que, para uma fusão perfeita entre voz e orquestra, se deve cantar a meio palco, já no tempo de Wieland Wagner se sabia isso.
Sobre o naipe de cantores o que há dizer é simples: um bando de cães a ladrar, o célebre ladrar de Bayreuth como os críticos ingleses não se cansavam de repetir (Bayreuth bark), muito apreciado pelo público alemão, desde que em fortíssimo.
Parsifal (Eberz) desafina, grita, tem uma forte voz nos médios, mas não tem nem legato nem cantabile. Amfortas escapa no seu desespero stressado que transmite alguma emoção no meio da berraria. Kundry: voz feia e mal colocada, agudos difíceis e desafinação. Gurnenanz (Holl) a cantar aos repopos, sempre com grandes cortes, e sem legato que se ouvisse. Um baixo em força com muita articulação pomposa e pouca leitura, muito aplaudido. Klingsor não tem voz para o papel, era necessário um cantor com voz mais brilhante, mais agressiva, Wegner é demasiado abaritonado para um papel tão drástico como o do castrado maléfico que Wagner criou neste Parsifal.
Coro notável. Flores muito bem, jovens vozes e solo de alto notáveis. Os secundários estiveram bem melhores que os cabeça de cartaz.
Um Parsifal muito fraco em termos de encenação, mesmo assim com a vantagem sobre o Tannhäuser de ser capaz de fazer pensar.
Nota final - A cena final do coelho morto em decomposição, com imagem acelerada, é repugnante, com as moscas, as larvas e líquido repelente que vai saindo do animal. Por outro lado é uma alegoria de retorno à terra de Anfortas e da sua ferida que afinal não sara.
Mas não será que não existe um absurdo aqui? Se morrem todos a única felicidade possível é no paraíso e não na terra. Não há redenção terrena possível. Esta mensagem reaccionária seria a que Schlingensief queria transmitir?
Partitura e poema de Richard Wagner
29-7-2005, 16h Bayreuth
Direcção Musical Pierre Boulez, *****
Encenação: Christoph Schlingensief, 0
Director do Coro: Eberhard Friedrich, *****
Cenografia: Daniel Angemayr – Thomas Goerge, 0
Design de Luzes: Voxi Bärenklau, 0
Luzes de Elrich Niepel, 0
Figurinos de Tabea Braun. 0
Vídeo: Meika Dresenkamp. 0
Distribuição:
Amfortas: Alexander Marco-Buhrmester, ***
Titurel: Kwangchul Youn, ***
Parsifal: Alfons Eberz, 0
Klingsor: John Vegner. ***
Kundry: Michelle de Yung. ***
Gurnemanz: Robert Holl **
Orquestra do Festival de Bayreuth ****
Coro do Festival *****
Um dia quase perdido em Bayreuth não fora a incrível ambiência e a direcção da orquestra de Pierre Boulez, notável na sua sensibilidade e plasticidade. O estafado epíteto de “transparente” aplicado invariavelmente a Boulez já se tornou num lugar comum sem significado. Boulez ao contrário do que a crítica internacional, e local (por exemplo nos jornais de Munique), mais uma vez afirmou, nem sequer foi transparente, terá sido luminoso, vivo, erótico, musical. Sob a sua direcção a orquestra esteve simplesmente brilhante, sem falhas, respondendo como uma mola. Uma sonoridade incrível nas cordas, de comover. Um tempo rapidíssismo que conseguiu realizar o primeiro acto em 1h33m, pelo meu relógio, o programa previa 1h40m não esquecendo que Toscanini fez o mesmo acto em Bayreuth em 2h05m!
Já as vozes não estiveram tão bem, continua o eixo entre América e Alemanha no Bayreuth de 2005, se Gould não foi perfeito, no Tannhäuser, Eberz foi péssimo no Parsifal e um velho Robert Holl lá nos foi ladrando e rosnando o papel de Gurnemanz. Mas o pior foi mesmo a encenação incrível de um suposto intelectual que pretendeu negar totalmente a obra do alemão. Empenhou-se Schlingensief em mostrar-se intelectual, transgressor e politicamente incorrecto, da forma mais politicamente correcta que existe, ao longo de umas quase cinco horas penosas para quem teve de visualizar as barracas do bairro da lata em que o palco do Festspiele se tornou.
O público de Bayreuth apupou, claro que sim, mas não pelo julgo serem as razões de fundo de uma encenação desastrosa. Depois de se ovacionar uma encenação falsamente moderna, convencional, reaccionária, pós moderna no sentido pior da palavra em Tannhäuser, Sexta-feira apupou-se uma encenação intelectualizada, verdadeiramente pós moderna, no melhor sentido da palavra (o que também é, em geral, péssimo). Mas demasiado carregada de símbolos e de referências para deixar respirar a obra de Wagner. Na sua tentativa de recriar de cima a baixo o texto wagneriano, Schlingensief não percebeu, ou quis negar, o óbvio, ou seja a própria contradição interna de Wagner que, ao criar Parsifal, negou a sua vida e a sua criação anterior. Parsifal é uma obra-prima musical, mas impotente e reaccionária no seu conteúdo, impregnada de uma religiosidade tardia de um homem velho e aqui Nietsche bateu no ponto exacto.
Experiente em termos musicais, Wagner é um génio como compositor, capaz de usar toda uma paleta de artifícios e toda a sua arte, para criar uma obra-prima de reacção filosófica, obviamente uma obra que não rasga os caminhos de um Tristan em termos musicais. Wagner salvou todos os protagonistas no final, mesmo Kundry que obteve a paz finalmente merecida, e o encenador matou-os a todos. Está tudo dito, não seria preciso estar a falar da tralha cenográfica que encandeia o espectador e o faz abstrair da música, das grades, das barracas, dos vídeos a preto e branco, dos sacrifícios animais, da substituição do Graal por uma preta gorda a lembrar uma Vénus primitiva e de mamas à mostra onde todos os cavaleiros do Graal, agora feitos sacerdotes de todas as religiões do mundo, passavam as mãos pelo sexo para as retirarem manchado de sangue. Repugnante e desnecessário para a economia da obra, mesmo na visão de ver a comunhão com o Graal como um ritual vudu algures em África, ou melhor: no Haiti. Não seria necessário utilizar uma loura de vagina desfraldada ao vento, para lembrar a faceta carnal de Kundry. Ver o Parsifal num aglomerado de barracas, num ambiente negro, com vídeos horrendos a passar por cima, numa indescritível confusão cénica, filosófica e histórica com cruzamentos entre a África e seus mitos contemporâneos das lendas de Parsifal é desnecessário e disparatado. A impotência de Klingsor não é evidenciada, tal como a impotência de Parsifal, uma impotência emocional e intelectual paralela à impotência de Wagner face à morte que demonstrou ao escrever esta obra. É na impotência de Parsifal, na tal renúncia à carnalidade, onde radica afinal a sua força. No caso da encenação de Bayreuth o encenador transforma Parsifal em amigo de Klingsor, juntando o impossível: a estupidez com a inteligência. A oferta da lança de Klingsor a Parsifal no meio de abraços, negando o poema que cantam e a música que se escuta é a negação total de conceito de obra de arte total e unitária.
A impotência de Wagner que ao contrário de Wotan não aceita a morte como um destino natural e torna essa impotência na força, através da sua última obra. No meio da confusão cénica de Schlingensief sobra muito pouco para Wagner. O encenador não deixa respirar a obra, tem ideias geniais, é facto, a ideia de tornar os cavaleiros do Graal em sacerdotes de todas as religiões é brilhante, numa tremenda alegoria subversora dentro da obra e que acaba por se perder no excesso de tiques transgressores de um mau realizador de cinema que acaba em Bayreuth como encenador de Wagner. Terá sido a oportunidade da vida de Schlingensief. Mas Wagner é difícil: tentar impor a Wagner uma distorção total dos seus próprios conceitos é negar a essência do projecto de criação, é tentar ser mais génio que o próprio autor original. É transcender o narcisismo do velho Richard, coisa bem difícil de fazer. A minha opinião: quem odeia Wagner não encena Wagner, é uma tortura para o próprio e para todos os que o têm de suportar…
Vejamos alguns detalhes: a cena de transformação torna-se numa confusão em que os referentes visuais são tão agressivos, com três planos de vídeo, cenários muito complexos e um coro imenso com dezenas de elementos em movimento no palco com as mais variadas vestes, Kundry, Parsifal, Amfortas, Gurnemanz, uma loura nua da cintura para baixo, e outra loura, que na versão do ano passado representava a antiga amante de Titurel, este agora nem sequer aparece em cena e canta dos bastidores, a tal africana gorda e mamas monstruosas lá está deitada de pernas abertas como elemento representando a fertilidade e o Graal ele mesmo. Os elementos cénicos são tantos e tão dispersos na sua profusão que destroem toda a unidade cénica. Trágica esta destruição por um “intelectual” de qualquer unidade cénica e de qualquer representação artística das ideias de Wagner. Para escutar a música havia que fechar os olhos. Depois os cantores, com voz muito agressiva, estavam sempre demasiado na boca de cena devido a uma cenografia que enchia o palco de lixo tipo brique-a-brac de ferro velho e os impedia de cantar a meio palco. Um erro técnico de principiante, em Bayreuth é sabido que, para uma fusão perfeita entre voz e orquestra, se deve cantar a meio palco, já no tempo de Wieland Wagner se sabia isso.
Sobre o naipe de cantores o que há dizer é simples: um bando de cães a ladrar, o célebre ladrar de Bayreuth como os críticos ingleses não se cansavam de repetir (Bayreuth bark), muito apreciado pelo público alemão, desde que em fortíssimo.
Parsifal (Eberz) desafina, grita, tem uma forte voz nos médios, mas não tem nem legato nem cantabile. Amfortas escapa no seu desespero stressado que transmite alguma emoção no meio da berraria. Kundry: voz feia e mal colocada, agudos difíceis e desafinação. Gurnenanz (Holl) a cantar aos repopos, sempre com grandes cortes, e sem legato que se ouvisse. Um baixo em força com muita articulação pomposa e pouca leitura, muito aplaudido. Klingsor não tem voz para o papel, era necessário um cantor com voz mais brilhante, mais agressiva, Wegner é demasiado abaritonado para um papel tão drástico como o do castrado maléfico que Wagner criou neste Parsifal.
Coro notável. Flores muito bem, jovens vozes e solo de alto notáveis. Os secundários estiveram bem melhores que os cabeça de cartaz.
Um Parsifal muito fraco em termos de encenação, mesmo assim com a vantagem sobre o Tannhäuser de ser capaz de fazer pensar.
Nota final - A cena final do coelho morto em decomposição, com imagem acelerada, é repugnante, com as moscas, as larvas e líquido repelente que vai saindo do animal. Por outro lado é uma alegoria de retorno à terra de Anfortas e da sua ferida que afinal não sara.
Mas não será que não existe um absurdo aqui? Se morrem todos a única felicidade possível é no paraíso e não na terra. Não há redenção terrena possível. Esta mensagem reaccionária seria a que Schlingensief queria transmitir?
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