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2.8.05

Gould em fortíssimo Wagner em pianíssimo, ou uma ópera em crescendo. 



2005-07-28 – Festival de Bayreuth. 16h
Tannhäuser, ou o concurso dos cantores de Wartburg. Ópera com música e poema de Richard Wagner sobre textos medievais de Wolfran von Eschenbach.
Direcção Musical Christian Thielemann
Encenação e cenografia: Philippe Arlaud
Director do Coro Eberhard Friedrich
Luzes de Elrich Niepel
Figurinos de Heike Ammer e Renate Stoiber.

Distribuição:
Hermann, Landegrave da Turíngia: Guido Jentjens – baixo. 7
Péssimo, desafinando muito nos graves, pesadão, insensível, um cepo a representar. Um dos piores elementos da tarde. Uma espécie de maldição que está a atacar os baixos de Bayreuth, como se verificou nos dias seguintes!
Tannhäuser: Stephen Gould. 13
Um tenor carrascão, como alguns vinhos. Pujante, rutilante nos médios, actuou sempre em fortíssimo nos dois primeiros actos com excepção dos lás, e há muitos lás, em que, por manifesta incapacidade nos agudos, não conseguia projectar a voz. Incapacidade já demonstrada no célebre sol de Siegmund no primeiro acto da Valquíria, coliseu de Lisboa - ciclo das grandes orquestras mundiais, em que deveria invocar Nothung e invocou apenas o desespero dos presentes. No primeiro acto passou o tempo todo a entrar baixo nos graves e a disfarçar a desafinação nos agudos com um vibrato mais próprio de um bode do que de tenor wagneriano. No segundo acto conseguiu tapar todos os outros cantores que interpretavam o que Wagner escreveu, enquanto Gould apenas berrava. Uma razoável voz e pouca inteligência. Onde estará neste momento Ben Heppner?
Felizmente Gould compensou no último acto as carências dos primeiros onde conseguiu representar o desespero de Tannhäuser com garra e sentido musical e fez esquecer, de certo modo, os dois primeiros actos. Aliás um espelho de todo esta interpretação do Tannhäuser no capítulo musical.
Wolfram von Eschembach – Roman Trekel. 16
Já nosso conhecido este barítono encantou pela sua sensibilidade e inteligência. Magnífico, soberbo num papel de grande nível. No terceiro acto o seu trecho: O du mein holder Abend stern… foi de ir às lágrimas. Ao melhor nível em Bayreuth, voltou no Lohengrin a encantar no papel do arauto.
Walther – Clemens Bieber, tenor. 13
Cumpriu, voz forte mas parece cantar em esforço e não de forma natural. Mesmo assim uma voz bonita.
Biterolf: John Wegner. 13
Barítono, não comprometeu, foi expressivo, mas com uma voz algo vulgar, mesmo assim recebeu uma enorme salva de palmas no final do segundo acto.
Henrich der Schreiber – Arnold Bezuyen, tenor. 13 pelo papel ser pequeno.
Esteve bem também cumprindo num papel mais de conjunto do que de solo.
Reinmar – Samuel Youn, baixo. 12, por papel pequeno.
As palavras que empregamos com Arnold Bezuyen aplicam-se por inteiro a Youn, talvez ligeiramente abaixo da média dos sues colegas "cavaleiros e cantores".
Elisabeth – Ricarda Merbeth, Soprano. 15
Cumpriu muito bem o papel de Elisabeth, personalidade e carácter no segundo acto. Abnegação total no terceiro. Uma voz de soprano densa e rica no timbre com vibrato geralmente suportável e expressivo, raras vezes a tornar-se incomodativo. A melhor afinação do grupo de cantores entrando sempre no ponto exacto. O diapasão, provavelmente devido ao calor, estava claramente acima dos 441Hz… Uma interpretação musical sempre de acordo com o drama, com pathos e bom gosto sem excessos de clímaxes que acabam sempre, quando em demasia, por banalizar os momentos realmente sublimes.
Vénus, Judit Nemeth – mezzo-soprano. 9
Nemeth abusa do vibrato de forma muito agressiva para os ouvidos. De tal forma que acaba por ser desagradável. O seu vibrato tem uma amplitude tão grande que se diria que está a trilar ou que entra em batimentos. Nervosismo? Na sua intervenção no último acto pareceu melhor integrada no papel. Talvez a sua voz seja melhor adequada para momentos de grande intensidade dramática e não para o lirismo que está mais presente no início da obra. No entanto cremos que a sua participação teve um balanço de pendor mais negativo do que positivo.
A orquestra, 16
Esteve bem, uns pizzicati falhados aqui e ali com pouca coesão, clarinetes a entrar desafinados, flautas idem, trompas a esborrachar apenas uma entrada em toda a obra, são pormenores demasiadamente pequenos para por em causa a alta qualidade da orquestra. Os tímbales estiveram demasiado agressivos no primeiro acto, recordo que em Bayreuth ficam bem fundo no fosso, o que retiraria à partida impacto ao seu ataque, mas não é o caso, existe um fenómeno de ressonância e os tímbales ficam com uma sonoridade algo estranha, ao mesmo tempo abafada (por falta de harmónicos?) e ao mesmo tempo muito penetrante e surda (os harmónicos mais graves que têm tendência a passar, como se sente nas portas das discotecas) e notou-se algum desequilíbrio. Aliás o facto dos violinos ficarem bem mais à boca do fosso, tapou o coro dos trombones na abertura, o que foi algo estranho. Ter a melodia lindíssima cantada em mezzo forte pelos trombones e os violinos arpejando violentamente por cima! Caso único na história da música, violinos por cima dos trombones. Claro que neste caso o maestro é mais importante do que os músicos propriamente ditos e teria cabido a Thielemann refrear o som da corda!
Na orquestra o que se notou de mais interessante (neste dia) foi a mistura dos metais, aliás maravilhosos, com as madeiras, de uma forma tão coesa que parecia quase um sonho mágico inalcançável. As cordas da orquestra do festival têm uma sonoridade de mel e ao mesmo tempo vibrante e expressiva. Há quem diga que o som custa a passar, porque o fosso é muito profundo e muito tapado. Nada de mais falso, o som que se escuta na sala do Festspiele é de uma densidade e de um carácter raríssimos. É um privilégio poder ouvir os primeiros acordes da orquestra numa sala completamente às escuras e em silêncio sepulcral, onde nem uma cadeira está vazia… É emocionante, comovente. Pensar em Furtwängler, em Bullow, em Böhm, em Knappertsbusch, em Wagner, que passaram por aquela sala, pensar em Vickers, em Flagstad, Nilsson, em Windgassen, em Hötter, em Ludwig Suthaus, Ramon Vinay e em tantos outros cantores, vivos ou mortos e que marcaram para sempre a nossa memória é esmagador, é melhor esquecer isso tudo e escutar e ver a obra de arte total…

A encenação. 6
Foi de um kitsch inenarrável, florzinhas coloridas, rapaziada vestida à japonesa com um misto de star treck! Casacos tipo “casaca até aos pés” para os cavalheiros e um toque de idade média pelo meio, personagens excessivas, gestos apatetados. Marcações infelizes, grupos de personagens espalhados pelo palco em movimentos bruscos e agressivos, bailarinas etéreas a fazer as três graças, antes da aparição de Vénus no último acto, uma desgraça de pseudo-modernismo, melhor dizendo, de fraude semi-pós-moderna-kitsch. Tão apalermada que até na transgressão apenas foi às meias tintas. Infeliz, reaccionária e desastrosa, uma seca! Escapou a música para redimir tudo. O coro lá andou entre o vestido à astronauta, monge budista e peregrino medievo… Luzes francamente banais, às vezes perdiam os cantores actores, ou estes perdiam-se das luzes pré programadas…

Direcção musical. 15 para 16, indeciso...
Thielemann é um bárbaro, mas isso nem sequer é mau, Wagner tinha o seu quê de bárbaro. Thielemann não prima pela subtileza ou pelo erotismo, como Pierre Boulez. Há quem ame e quem deteste Boulez, há quem ame e quem deteste Thielemann, há quem goste dos dois e de muitos mais. Há espaço para as diversas visões e isso, entre muitas outras coisas, faz da música uma arte tão extraordinária. A direcção foi demasiado crispada a princípio. Era a primeira estreia com Thielemann, este ano e com esta orquestra do Festival, notou-se nervosismo o que se reflectiu numa forma de tocar a abertura: muito lenta, arrastada. O lado pesado foi muito mais notório do que a beleza do som. Outros fizeram desta abertura, tocada ainda mais lentamente, um pedaço da eternidade. Thielemann apenas conseguiu arrastar-se, quadrado, sem dramatismo, sem dinamismo, com um rubato vulgaríssimo e a roçar o mau gosto, o que prenunciava um desastre.
Felizmente a ópera foi-se compondo em termos musicais, uma vez que a encenação se mateve sempre desastrosa. Thielemann foi conseguindo dar propulsão (um dos seus fortes) à orquestra e começar a empolgar os músicos, ou poderá até terá tido mais trabalho de ensaio com os últimos actos, bem mais exigentes. Seja como for não compete ao crítico tentar descobrir razões por detrás do que se ouve. O que se ouviu foi um claro crescendo dramático, de pathos e mesmo ao nível técnico da interpretação musical. A orquestra foi-se soltando, os cantores entravam cada vez mais na obra. Os desacertos entre Gould e Nemeth, ou entre os cantores de segunda linha, foram-se desvanecendo. O público entusiasta no final de cada acto ajudava também a motivar os músicos. A confluência num terceiro acto de grande nível deixou uma memória gloriosa da tarde de 28 de Julho. Chegou-se ao exagero de se dizer que se tratava do melhor Tannhäuser de sempre...

Coro e seu maestro: 18.
Uma palavra para um coro de 130 cantores! Um maestro de coro notável e um coro incrível de presença, ritmo, afinação, entusiasmo mas também de contenção, como é possível 130 cantores, numa sala relativamente pequena e com uma acústica que transmite de forma perfeita o som, cantarem em fortíssimo sem agressividade ou gritaria. Como é tão fácil, e como é, também, tão difícil. O coro final foi um momento de exaltação impossível de esquecer, não temos palavras para descrever, ficamos por aqui.

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