<$BlogRSDUrl$>

10.8.05

Dean Smith e Nina Stemme excelentes em Tristan und Isolde 



2005-07-31 – Festival de Bayreuth. 16h
Tristan und Isolde, Handlung ou seja uma Acção, um Drama, com música e poema de Richard Wagner sobre textos medievais.
Direcção Musical: Eiji Oue. ***
Encenação: Christoph Marthaler. ****
Direcção do Coro: Eberhard Friedrich. *****
Cenografia e figurinos: Anna Viebrock. ***
Luzes de Elrich Niepel. ***
Orquestra do Festival. *****
Coro do Festival, homens, *****

Distribuição:
Tristan: Robert Dean Smith – ****
König (rei) Marke – Kwangchul Youn****
Isolde – Nina Stemme *****
Kurwenal – Andreas Schmidt – 00.
Melot – Alexandrer Marco-Buhrmestar – ***.
Brangäne – Petra Lang – **
Junger Seeman (jovem marinheiro) – Clemens Bieber, ***.
Ein Hirt (pastor) – Arnold Bezuyen – ***
Ein Steurmann – Marin Snell – ***

* Razoável, ** Bom, *** Muito bom, **** Excelente, ***** Superlativo, 0 Mau, 00 péssimo.



Finalmente um grande dia em Bayreuth. Uma nova produção. Bilhetes, cujo preço original era de 147 euros, a atingirem os 1500, 1600 euros!
A palavra inicial vai para a cenografia e figurinos. Tudo é relativamente contemporâneo, as roupas têm um ar de anos trinta, mas poderiam perfeitamente ser usadas hoje. Tristan veste um fato azul-escuro com um emblema dourado no bolso do peito do lado esquerdo, very british. Kurwenal usa um kilt com casaco tipo anos trinta. As mulheres vestem-se como as personagens do filme “Breve Encontro”. A cena do primeiro acto passa-se numa espécie de uma sala na coberta de um grande navio de linha dos anos vinte ou trinta. Muitas cadeiras estão espalhadas pela ampla sala profusamente iluminada. O soalho, que se manterá até ao fim da acção, é em traves de madeira em espinha, realmente um soalho. Paredes em madeira castanha. No segundo acto as paredes do barco subiram e aparece uma porta envidraçada no fundo do palco, ao centro, o estilo é no género Bauhaus, a sala é ampla com dois bancos almofadados, sem costas, pés de aço inox. Agora vêem-se paredes cor de avelã clara, por cima estão as paredes castanhas do primeiro acto. Um enorme painel de luzes fluorescentes cobre a cena. Será apagado quase totalmente para o momento sagrado da noite de amor. No acto final o soalho mantém-se, mas as paredes voltaram a subir, agora as paredes parecem ser em betão. Não há janelas. As paredes dos actos anteriores subiram e mantêm-se visíveis, numa cena encerrada por todos os lados por um ambiente que surge, de certa forma, mais encerrado, no entanto mantém-se uma grande luminosidade em cena. A meio do palco uma cadeira articulada de hospital, com grades de aço inox praticamente rodeando a cama. Sem grandes complexidades na cenografia e nas roupas, trabalha-se a luz usando interruptores aparentemente (apenas aparentemente) usados pelos próprios actores cantores e accionando complexos de luzes fluorescentes como se de uma iluminação real se tratasse. A montagem dos elevadores para fazer subir as paredes não parece demasiado complexa, parece-nos uma das cenografias mais económicas deste festival.
A encenação suscita inúmeras reflexões. Marthaler optou por deixar o drama fluir na cabeça dos personagens. Tudo é tenso, crispado, sofrido. No primeiro acto o grande momento revelador deu-se com a troca de olhares entre Tristan e Isolde. Wagner tinha colocado uma fermata nesse mesmo ponto terrível, como a dizer-nos: eles já se amam, o filtro de amor é apenas um catalizador. Segundo o maestro Oue nos comunicou, o único desejo de Marthaler relativamente ao discurso musical foi exactamente nesta suspensão. Marthaler pediu tempo para um olhar prolongado e sublinhado entre o par. Segundo Oue: Nina Stemme ficou com liberdade total para reiniciar o fluxo discursivo dando ela própria o mote para o reatar do fluxo orquestral… A noite de amor, liebesnacht, tem sido o ponto de discórdia de toda a crítica, sobre a produção. Neste tempo de sexo explícito no Teatro La Bastille, de Karita Matila completamente nua em palco na Salomé, de bacanais sadomasoquistas em “Geseichneten” de Schreker em Salzburg, acaba por ser politicamente incorrecto fazer uma cena contida de amor. Ao contrário de todos os encenadores, desde o Convent Garden, à La Bastille passando pelos últimos festivais de Glyndebourne. Sexo, sexo e mais sexo no segundo acto de Tristan, até Vickers e Nilsson passaram pela experiência nos anos setenta (1973 com Karl Böhm). E no entanto não há nada na partitura sobre o assunto. Tristan trai de facto o rei, mas através do seu amor proibido e da sua declaração a Isolde. Esta é apenas uma vítima, uma mulher vendida, forçada a um casamento com um velho que nem sequer conhece, uma mulher que não deve lealdade a Marke. De facto o que se passa é um breve encontro, e muito intenso, entre dois seres humanos. Uma cena de amor apenas falada, à distância, uma luva que vagamente se esboça tirar, uma gravata que se desaperta, muito ao de leve, um casaco de Isolde que se abre e nada mais. Um abraço no início e uma cabeça no colo até à interrupção fatal pela trupe de Marke encabeçados por um Melot raivoso que apunhala Tristan quando este lhe vira as costas, ao contrário do habitual peito aberto e espada para baixo aqui o gesto suicida consistiu no virar de costas à navalha assassina e canalha de Melot. No início do terceiro acto Tristan é visitado inconsciente pelos seus súbditos, num rito mortuário antecipado, a cena a alucinação é pungente e atormentada, Tristan acaba por cair solitário no chão do seu imenso quarto vazio e quando Isolda chega expira praticamente sem se aperceber da chegada da amada, de novo o contacto faz-se apenas pela voz, não chegamos a saber se o órfão póstumo se apercebe da chegada de Isolda ou se continua na sua alucinação. Todos os presentes falam e voltam-se para a parede, distantes do corpo de Tristan, Isolda faz o seu adeus, deita-se na cama de Tristan e tapa-se com um lençol branco. A música sublime acompanha num gesto de apaziguamento esta cena final, a luz esmaece vagamente até à extinção quase total, a música ainda se sente mesmo na pausa final. Profundamente, a cortina desce suavemente, silêncio, alguns aplausos, eu fico congelado na cadeira sem conseguir mover um só músculo. Momentos assim deviam durar para sempre.
Faltou apenas um pouco de ternura na encenação de Marthaler, onde talvez tenha faltado também o rasgo visionário das encenações do tempo de Wieland Wagner, a tristeza foi tão intensa que quase se tornou sufocante. Creio que nesse plano a encenação é plenamente conseguida e pouco há a acrescentar.
Isolda realizada por Nina Stemme, plena de sentido dramático e com uma voz riquíssima, colorida, cheia, sem abuso de maneirismos, sem vibrato excessivo, plena de harmónicos, metálica e encorpada em toda a sua extensão. Tecnicamente perfeita na respiração e na linha melódica, justa no ataque, colocada e apoiada. Inteligente e sensível, sem exageros dramáticos, a sua raiva surda no primeiro acto transformou-se num amor apaixonado no segundo acto e acabou em amor trágico e sacrificial no terceiro. Perfeita, uma Isolda para o século XXI.
Dean Smith em Tristan não foi tão longe como Stemme. Dentro do panorama actual considero no entanto que Smith é hoje um dos cantores mais bem preparados e mais naturais no papel de Tristan, pedia-lhe apenas um pouco mais de carácter heróico nos agudos, mais peito digamos. A afinação de Dean Smith esteve quase perfeita, bem como a colocação e o apoio no corpo da sua voz. De resto foi subtil, apaixonado, bem colocado e muito contido. Neste caso a encenação aproveitou a presença calma do cantor de forma notável: o Tristan de Smith foi sobretudo triste.
Petra Lang fez uma Brangäne algo excessiva no vibrato e recorrendo à correcção da afinação após o ataque o que se traduziu nalguma instabilidade vocal. Pujante e boa actriz cumpriu de boa forma um papel difícil.
O rei Marke de Kwangchul Youn, coreano, foi uma lição de cantabile num baixo já conhecido de Bayreuth, Youn nunca esqueceu a sua linha vocal, foi indignado no segundo acto, foi magnânimo e inconsolável também no seu amor a Tristan. Tristan moribundo, sacrificado pelo amor impossível a Isolde mulher de Marke. Youn foi notável na sua tristeza no terceiro acto, na sua força vocal, na própria beleza da sua voz. Youn prova que um baixo em Wagner não precisa de rosnar ou ladrar para cantar um Marke, um Gurnemanz, um Kurwenal…
E somos chegados a Kurwenal, um currículo invejável, um nome como Andreas Schmidt numa decadência incrível, nunca pensei que fosse possível em Bayreuth encontrar uma situação tão penosa, seria caricato se não fosse destrutivo para a música de Wagner. Nem uma nota afinada, agudos penosos, geralmente meio-tom a um tom abaixo no ataque das notas, depois glissandos (portamento seria favor) a tentar chegar ao tom certo, depois voltar a descer sem capacidade de sustentar a nota. Respiração penosa, interrupção da frase para respirar ofegantemente, voz feia no todo, horrível nos graves, um barítono a rosnar nos graves, sem linha melódica. Gritou, uivou, mas cantar não cantou. Indigno de Bayreuth, lamentável. Penoso na estreia também, isto segundo a crítica italiana e inglesa. Foi tremendamente vaiado no final do terceiro acto, como não podia deixar de ser.
O jovem marinheiro, Clemens Bieber, mostrou uma voz bonita e boas capacidades vocais. O pastor, Arnold Bezuyen, e o piloto, Marin Snell, cumpriram com rigor as pequenas mas difíceis partes que lhes foram confiadas.
Melot, Alexandrer Marco-Buhrmestar, mostrou-se bem à altura do papel, com a presença de motor da acção e a capacidade vocal para encarnar o malévolo que fere Tristan de morte enquanto sente remorso e amizade pelo próprio Tristan. Mais um daqueles pequenos papéis de Wagner que é muito exigente. Foi um encanto encontrar este naipe de cantores em que apenas Schmidt destoou.
Creio que Oue poderia ter sido mais fino na sua direcção, poderia ter sido mais erótico nas linhas do segundo acto, poderia ter ainda reforçado a componente da tensão musical ao longo de toda a obra. O Rubato foi algo mecânico, as suspensões desfaziam-se sempre algo depressa e os momentos não foram apreciados em toda a substância, como por exemplo em Böhm ou Furtwangler, a orquestra não é o factor máximo para Oue como foi para Karajan. A síntese de todos os elementos musicais não se faz de forma tão perfeita como em Kleiber. Ou seja faltou sempre algo relativamente a algumas referências. Note-se que falo de gravações muito distantes do conceito da gravação de estúdio de hoje. Oue foi exacto, conduziu o navio, como ele próprio afirma, foi apaixonado e propulsivo, mas foi também algo mecânico. Uma interpretação entre o excelente e o muito bom mas não superlativa e que viveu da forma elevadíssima da orquestra.
Assisti à segunda récita, depois do dia de repouso, depois de uma semana de trabalho intenso, a orquestra estava num estado superlativo de prestação musical, isto abstraindo os aspectos puramente interpretativos que são responsabilidade do maestro. A sonoridade era densa, encorpada e ao mesmo tempo subtil. Os pizzicati falhados dos primeiros dias tinham passado à história, os sopros estavam olímpicos. O clarinete baixo estava de arrepiar, o corne inglês fez um solo do mais belo que pude escutar em gravação ou ao vivo, cordas, clarinetes, oboés, flautas, fagotes, metais, percussão, harpas, todos sem excepção, a solo ou em conjunto numa elevadíssima qualidade musical que não hesito em chamar superlativa, melhor é impossível, pode-se fazer diferente mas não melhor.
O coro do Festival continuou, aqui na variante masculina, olímpico. O coro é formado por elementos recrutados em todo o mundo e o seu director, Eberhard Friedrich, tem feito um trabalho notável. Não me quero repetir, mas por outro lado não se pode deixar de exaltar o coro e o seu director.
Não sei se consegui dizer tudo o que penso deste Tristan, entre este texto e os que escrevi anteriormente, muito haverá ainda por dizer mas ficam aqui estas notas, quase todas baseadas no que escrevi na própria noite em que assisti à récita.



Arquivos

This page is powered by Blogger. Isn't yours?