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26.5.05

Pinnock e Sokolov 

Casa da Música, 23 de Maio:
Trevor Pinnock - direcção musical
Grigori Sokolov - piano
Daniel Sepec - violino

Programa
1ª Parte:
CPE Bach
Sinfonia Nr1, H.663 em Ré Maior
W. A. Mozart
Concerto para Piano No.23 K 488

2ª Parte:
W. A. Mozart
Rondo para Violino e Orquestra em Dó Maior K373
Joseph Haydn
Sinfonia No.99

Um CFE Bach tocado em género aquecimento, mas mesmo assim muito bem interpretado por Pinnock e uma orquestra de câmara em que os únicos instrumentos que tentavam ser réplicas dos originais eram as trompas naturais e os trompetes naturais.
Apesar da agressividade sonora da afinação a 441, temperada por igual e dos instrumentos modernos, muito menos doces que os originais, a orquestra de Bremen conseguiu ser estilisticamente compacta, incisiva, equilibrada dinamicamente, ritmada e muito pronta na resposta às solicitações do maestro. Muito vivo o presto final.

Sokolov entrou no seu passo grande, concentrado, sentou-se ao piano e atacou os tutti tal como Mozart escreveu na parte de piano. Segundo Pinnock o pianista gosta muito de realizar a parte tal como está escrita pelo compositor. Uma lição para inúmeros pianistas de trazer por casa que apenas fazem as partes em que o piano está a solo.
Respeito pela música e pelo compositor. Creio que o segredo de Sokolov começa aí, o pianista é apenas o veículo do que o compositor tinha na cabeça. A música acima de tudo. E foi a música que esteve acima de tudo, a cor da orquestra com o piano subjacente na realização da harmonia foi imediatamente a nota dominante da introdução temática do concerto em Lá maior.
A concepção de Sokolov foi de uma contenção sonora notável, parecia estarmos em frente de um pianoforte do tempo de Mozart mas com uma paleta de cores muito variada. Um jogo tímbrico notável, tantas vezes assinalado neste pianista, mas que por ser parte de uma verdade insofismável é necessário referenciar sempre que se escreve sobre a arte de Sokolov. Uma transparência impossível, uma digitação perfeita, a articulação das frases feita com uma correcção estilística arrepiante fizeram o ouvinte esquecer os detalhes analíticos e mergulhar profundamente na música, a música acima de tudo! Depois de uma ausência de erros absoluta, sobra espaço para a maestria do tempo, para a sensibilidade, para o deleite do jogo entre o pianista os músicos da orquestra e o maestro, sobra finalmente espaço para a arte feita prazer puro. Não sei se estou a ser hedonista, mas a arte levada a este extremo é prazer puro.
E caímos no segundo andamento, o adagio. Em conversa posterior, entre amigos, discutimos o objectivo que Mozart teria em vista com a escrita de um trecho de música tão profundo, tão subtil, tão pungente. Talvez o facto de estar sem dinheiro para uns copos? O significado profundo da vida? Bem, alguma coisa seria, mas não interessa nada a quem ouve Sokolov. As razões básicas por detrás da criação transcendem-se, transformam-se pela arte pura e pela sua recriação, a impressão, a emoção, geram-se no receptor, neste caso após uma interpretação extraordinária. Nada que Wagner não soubesse e não tivesse já escrito há mais de cem anos...
Digamos que este andamento, no meu entender do mais belo que Mozart alguma vez escreveu, foi tocado como se estivéssemos no paraíso, as palavras faltam e sobra apenas espaço para escutar, uma interacção total entre orquestra e pianista. Uma sintonia tão grande que deixou comovidos os que ouviam Mozart na belíssima sala 1 da Casa da Música. O drama, a beleza infinita de uma música que atravessa os séculos para nos tocar tantos anos depois da morte de Mozart... Não ficámos indiferentes. As madeiras deram com os seus solos agonizantes temas que o piano retomou de forma magistral, as cordas em pizzicato marcaram o fim dos discurso com um sublinhado doloroso, o clarinete, que Mozart tão bem escolheu aqui, contracenou com o piano num jogo delicado de sons, de sombras e luzes em encantamento.
No rondo final conseguimos espaço para meditar no trabalho das articulações, tão patente nas sucessivas imitações que o andamento comporta, trompas naturais em grande forma a marcar os tutti. Pensámos aqui na utilização da mão esquerda de Sokolov, na subtil dose de pedais, na exploração das ressonâncias, na combinação dos harmónicos dos sopros com as ressonâncias das cordas novas do Steinway na sua caixa negra.
Quem somos nós para criticar Sokolov e Pinnock? Ninguém! Depois de ouvir um clarinete em tercinas ser imitado pela mão esquerda de Sokolov a dar, ilusão sonora, o timbre escuro do clarinete no seu registo grave, abandonámos qualquer meditação crítica e mergulhámos totalmente no prazer da música...

O rondo de Mozart foi correcto, mas depois de Sokolov tocar a solo é ingrato tocar a solo. Gostámos do violinista, concertino da orquestra, muito sério do ponto de vista estilístico, com uma bela sonoridade. Pena a desafinação na última nota...

A sinfonia de Haydn mostrou uma concepção notável e um sentido musical profundo de Pinnock. Haydn é um compositor de grande génio, inovador. A sua obra é de altíssima qualidade, a imaginação harmónica do compositor a par da sua criatividade melódica não poderiam ser mais patentes do que nesta sinfonia 99 que é também uma viagem de modulações e excursões às mais variadas tonalidades. Toda a orquestra contribuiu para dar uma leitura vigorosa e apaixonada desta música, uma visão alegre e muito viva de uma obra grande e cheia de sentido de humor. Humor que Haydn já tinha usado e que Pinnock tão bem realçou. O falso final com suspensão na pausa (mas fora da tónica) deu azo a palmas! Pinnock malicioso esperou por essas mesmas palmas para dar o ataque à coda da obra! Olhou para trás e com um jeito intraduzível por palavras deu a entender que Haydn, e ele próprio, tinham enganado o público!
No extra em que repetiu o último andamento o público já tinha aprendido a lição e não bateu palmas! Pinnock voltou-se, de novo com ar maroto, e acenou afirmativamente para o público como a dizer: “vejo que já aprenderam!”
O triunfo não se fez esperar e as palmas choveram.

A acústica da Casa da Música pareceu-me um pouco seca e muito transparente, mas muito compacta e uniforme, o som escuta-se muito bem em todos os pontos.

Resumo: Uma visão pessoal e extraordinária de Sokolov perante a música e a obra, como nos disse Trevor Pinnock no final do concerto. Um trabalho de equipa notável entre Pinnock, a orquestra e Sokolov. A Música acima de tudo.
Sala quase cheia.

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