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6.5.05

Festa da Música CCB- Notas de audição - 7 - Sábado fim de tarde e noite 

Estas notas de audição são uma espécie de diário, em que vou transformando em letra de forma memórias, notas dispersas por programas e reflexões. Como tal ainda se justificam tantos dias depois de terminada a Festa da Música. Ficam como memórias e como registos. Talvez tenham o interesse adicional de comparar experiências com outros ouvintes na Festa da Música e para partilhar as minhas impressões com quem não esteve presente. Um aspecto essencial que se deve reter é o nível qualitativo (em média) da festa da Música deste ano, que apesar de críticas e questões levantadas por alguma imprensa (aqui falo do A. M. Seabra), foi muito elevado.

Jorge Moyano (piano) e Sinfonia Varsóvia dirigida por Peter Csaba
Sala Brentano (pequeno auditório do CCB) - Sábado 23 de Abril 20h15m
Criaturas de Prometeu (dó maior opus 43) e Concerto nº3 em Dó menor Opus. 37.

Dó maior, dó menor, parece Mahler, mas é apenas uma vicissitude do programa, o dó maior das criaturas de Prometeu foi menor face ao Dó Menor de Jorge Moyano (aqui utilizei maiúsculas e minúsculas com significado preciso).
A sinfonia Varsóvia atacou a abertura com convicção e método. O piano estava em cima do palco, fechado à espera do poeta. Um dos músicos, creio que um dos violetistas (a fazer jus ao facto da viola ser o instrumento mais operário da orquestra, segundo as más línguas) levantou-se e, com um misto de desenvoltura e de esforço, lá conseguiu abrir a tampa e fixar o suporte... de imediato uma tremenda salva de palmas na sala, salva de palmas que se estendeu aos elementos da orquestra que saudaram o seu companheiro: o esforçado violetista que agradeceu com uma vénia! Consequência: o pianista no seu jeito tímido e o maestro no seu jeito descontraído entraram de sorriso desfeito na sala. Estava dado o mote, estávamos bem dispostos entre amigos em ambiente de festa. Esse mote estendeu-se à música. O concerto em dó menor de Beethoven teve uma introdução orquestral de grande brilho e entusiasmo (alegria plena) e uma interpretação de Jorge Moyano notável, fluída, sensível, sem excessos de violência sonora, sempre com um touché aveludado, respeitando a partitura ao mesmo tempo que fazia poesia. Nem uma ligeira quebra de fluidez na cadência do primeiro andamento tirou brilho a uma concepção muito bela do concerto. Moyano afirma-se mais uma vez como um mestre na arte de bem tocar o piano e essa afirmação encontra raízes na sua visão do segundo andamento, o largo, que, para mim, foi o ponto de clímax na interpretação de Moyano.
A orquestra foi seguríssima e deu segurança ao pianista, longe de desastres anteriores com orquestras portuguesas.

Saímos da Sala Brentano para encontrar um Nikolaï Lugansky em duas sonatas de grande envergadura de Beethoven a opus 31 nº2 em Ré Menor (tempestade) e a batida, mas sempre espantosa, sonata nº 23 em fá menor, Apassionata, o célebre opus 57. Lugansky é um mestre na arte de suspender o tempo sem perder o fluxo imparável da obra de Beethoven. A sonata opus 31, nº 2, com as suas surpresas harmónicas, uma sonata iniciada com uma meia cadência, é um campo privilegiado para as experiências metafísicas de Luganski. A utilização subtil das paragens para escutar as ressonâncias do piano e os acordes, o uso incrível do pedal num sublinhado intenso dos momentos críticos em termos harmónicos. Um touché de grande subtileza, mesmo nos fortíssimos, sem nunca martelar ou rasgar, sendo capaz de uma sonoridade pujante e máscula sem ser a sonoridade de um estivador, características que Lugansky consegue mostrar sempre de forma natural.
A sonata opus 31 foi executada de forma notável. O andamento lento, o Adagio, foi um monumento estético.
Na Apassionata distanciei-me da análise do que o pianista ia fazendo e deixei-me interiorizar pela música pura, abandonei este mundo e regressei a Beethoven, o mérito máximo deste pianista foi esse mesmo, transformar o instante na eternidade. Supremo.

Nada neste pianista é óbvio, não há efeitos fáceis, não há artifícios, está tudo à vista (ao ouvido), mas a sua suprema arte é mesmo essa, a de conseguir dar novidade e clareza a uma obra já ouvida até ao limite. A arte do simples, do bem tocado até à perfeição. Cansa? Sim, muito, até à exaustão. Torna-se difícil, é demasiado inebriante, contagiante. A música entra em nós e perdemos o sentido analítico. O recital de piano que mais prazer estético me deu nesta festa da música.

Henrique Silveira


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