29.3.05
Ópera no S. Carlos III - Ossos partidos
Preocupo-me nas reflexões que aqui faço em realçar os aspectos artísticos globais. Pode-se dizer que comigo as divas vêm sempre atrás. Tenho mesmo aversão ao excesso de destaque que algum cantor mais famoso tem da parte de algum público e de alguma crítica. É pois um pouco anómala a referência à encenação das óperas actualmente em cena no S. Carlos no final desta pequena série de fascículos críticos sobre as óperas de Mascagni e Massenet. Esta referência final deve-se à própria incongruência da encenação que mereceu mais reflexões do que as inicialmente previstas e, logo, um maior atraso.
Recordamos os créditos da produção em termos cénicos. Encenação: Guido de Monticelli. Cenografia: Fausto Dappiè. Figurinos: Zaira De Vincentiis. Desenho de luzes: Sergio Rossi.
O problema é simples de colocar. As encenações das duas óperas parecem aparentadas mas estão a anos luz de distância. Enquanto a Cavalleria Rusticana tem uma encenação que se desenvolve em cima de uma espécie de monte escarpado, a encenação da Navarraise, utiliza os mesmos elementos físicos mas adaptando-os a uma mistura de trincheira e de barricada. O monte da Cavalleria é rasgado pelos soldados da Navarraise para "desconstruirem", na ideia do encenador, a cena inicial da primeira ópera e produzirem a cena da segunda. A ideia é gira e dá um efeito de grande espectacularidade no início da Navarraise, mas será que um belo efeito justifica toda uma encenação? No meu entender a minha resposta é um rotundo não.
Vejamos a cena da Cavalleria: figurinos interessantes mas "veristas", toda a gente está vestida como se estivéssemos numa aldeia siciliana do final do século XIX ou princípio do vinte. Uma espécie de aldeia estilizada e de folclore, mas muito naturalista. O cenário é um monte escarpado, não uma colina suave, e de tal modo escarpado que Elisabete Matos já partiu um dedo (cremos que na segunda récita) e continuou a cantar bravamente, cantores e figurantes que andam a trepar por ali acima e abaixo correm um risco tremendo. O público tem de espreitar e esticar os pescoços porque a visibilidade da plateia para aquele monturo é muito má. Dir-se-ia que é a primeira ópera a que assisto que é encenada, não para a plateia mas para as ordens mais elevadas dos camarotes! Depois não faz sentido estarmos numa aldeia com pessoas a entrar e sair de casa vestidos a rigor histórico (ou numa tentativa) numa paisagem desolada, lunar, onde não há casas com jardins, onde o largo da igreja é um monte onde se esperaram ver surgir cabras a pastar. Sinal da igreja? Nenhum: apenas um monte escarpado... A desconstrução da ópera e dos seus referentes cénicos misturada com o conservadorismo mais atroz nos figurinos.
A luz, é encarada num lado mais psicológico do que físico, e nisso o efeito é interessante, nas cenas mais densas e dramáticas escurece o céu, nas cenas mais alegres temos luz por todos os lados. Faz sentido. O arco temporal é iniciado por luz de nascer do céu e encerrado por luz de início de noite. O que volta a fazer sentido. Pelo meio toda uma paleta de emoções transmitidas pela cor do fundo do palco, que neste caso representa também o céu.
As marcações são também estranhas e ditadas pela inclinação da cena. Assim Santuzza (E. Matos) tem de implorar a Lucia (S. Marcello) de costas voltadas para esta e de frente para o público! Qualquer futura sogra de uma aldeia siciliana nessa situação daria um pontapé no traseiro da putativa nora! O equilíbrio instável dos cantores dita a sua dificuldade de movimentação em palco e marcações deficientes em esforço e pouco naturais.
A cena da procissão é o apogeu da trapalhada, se não pensarmos que temos dois bispos! Dois! Ainda temos mais dois padres. Para aldeia pobre da Sicília estamos bem abonados de bispos... mas o pior não é o excesso de clérigos em palco, o que seria apenas incongruente, é pensarmos: o que anda uma procissão com dois bispos a fazer numa encosta escarpada mais própria para cabras do que para uma festa religiosa? Enfim, chega a ser confrangedor. Se a encenação pretendesse ser “modernaça” e transgressora ao menos que se vestissem os bispos à Flash Gordon! Ou como pastores bucólicos... Assim é apenas inconsistente.
Parece que o encenador esteve a gozar com a rapaziada que se arrasta em perigo constante de cair para o fosso da orquestra de roldão com a possibilidade iminente de pernas partidas. Em suma: uma encenação destruída por uma cenografia incoerente, marcações fracas e incongruências estilísticas. Figurinos apropriados numa cenografia mais convencional. Luzes apropriadas a uma encenação mais radical.
Finalmente a encenação da Navarraise.
Navarraise é um mau texto teatral, um disparate pegado, se o rapaz amava realmente a rústica Anita nunca deixaria o pai exigir dote a esta. Aracil é um tíbio, desconfiado e fraco. Anita é uma tresloucada, capaz do crime para obter o que quer. Afinal ama realmente ou é apenas desvairada? O general é também mal construído, não tem densidade, fundo, nem sequer os estereótipos funcionam. O encenador resolveu neste caso o problema desenvolvendo ao máximo o lado cénico, ao contrário da Cavalleria. A cenografia constituída pelo monte da ópera anterior, mas esventrado e transformado numa barricada, serve às mil maravilhas para uma cena de batalha. Os cantores já dispõem de espaço cénico para desenvolverem os seus movimentos e cantarem mais descontraídos, sem medo de caírem e partirem um pé. Os soldados trajados a rigor, com fardamentos apropriado à guerra carlista. O que não existe na cena e na música é agora tratado pelo encenador, movimentos de soldados, tiros, mosquetadas, estrondos na música e clarões luminosos. Figurinos, luzes e cena bem executados. Movimentos simples mas eficazes.
Curiosa a cena em que Anita encontra Aracil e estes se declaram sem se aproximarem, como se tivessem medo um do outro. A princípio achei um disparate, se se amavam correriam um para o outro, mas pensando melhor o encenador dá-nos o seu pensamento: o par, de facto, sofre de uma doença: uma febre mista de paixão, ciúme, desconfiança. Fruto da guerra? Das privações? Stress pós traumático? Parece que sim.
E como lidar com uma cena de guerra, cheia de mortos, em que aparece uma rapariga a cantar uma alegre melodia espanhola, castanholas e salero! Olé! É caso para dizer que Massenet consegue envenenar qualquer espécie de verosimilhança e progressão dramática... O encenador lá tem de disfarçar e fazer a coisa o menos mal possível.
Em resumo: esta ópera não merece que um mero efeito cénico a coloque em segundo lugar. É uma obra menor e deveria ter sido programada para início da récita. Um efeito cénico que condiciona toda a Cavalleria e a destrói apenas para se poder usar o cenário na segunda parte. Um palco nu seria muito melhor do que aquele monte infecto que polui a Cavalleria.
Uma encenação desigual condicionada por uma concepção apriorística que não tomou como factor de peso a qualidade das obras mas um capricho de encenador. Uma encenação correcta da Navarraise e muito fraca na Cavalleria.
Recordamos os créditos da produção em termos cénicos. Encenação: Guido de Monticelli. Cenografia: Fausto Dappiè. Figurinos: Zaira De Vincentiis. Desenho de luzes: Sergio Rossi.
O problema é simples de colocar. As encenações das duas óperas parecem aparentadas mas estão a anos luz de distância. Enquanto a Cavalleria Rusticana tem uma encenação que se desenvolve em cima de uma espécie de monte escarpado, a encenação da Navarraise, utiliza os mesmos elementos físicos mas adaptando-os a uma mistura de trincheira e de barricada. O monte da Cavalleria é rasgado pelos soldados da Navarraise para "desconstruirem", na ideia do encenador, a cena inicial da primeira ópera e produzirem a cena da segunda. A ideia é gira e dá um efeito de grande espectacularidade no início da Navarraise, mas será que um belo efeito justifica toda uma encenação? No meu entender a minha resposta é um rotundo não.
Vejamos a cena da Cavalleria: figurinos interessantes mas "veristas", toda a gente está vestida como se estivéssemos numa aldeia siciliana do final do século XIX ou princípio do vinte. Uma espécie de aldeia estilizada e de folclore, mas muito naturalista. O cenário é um monte escarpado, não uma colina suave, e de tal modo escarpado que Elisabete Matos já partiu um dedo (cremos que na segunda récita) e continuou a cantar bravamente, cantores e figurantes que andam a trepar por ali acima e abaixo correm um risco tremendo. O público tem de espreitar e esticar os pescoços porque a visibilidade da plateia para aquele monturo é muito má. Dir-se-ia que é a primeira ópera a que assisto que é encenada, não para a plateia mas para as ordens mais elevadas dos camarotes! Depois não faz sentido estarmos numa aldeia com pessoas a entrar e sair de casa vestidos a rigor histórico (ou numa tentativa) numa paisagem desolada, lunar, onde não há casas com jardins, onde o largo da igreja é um monte onde se esperaram ver surgir cabras a pastar. Sinal da igreja? Nenhum: apenas um monte escarpado... A desconstrução da ópera e dos seus referentes cénicos misturada com o conservadorismo mais atroz nos figurinos.
A luz, é encarada num lado mais psicológico do que físico, e nisso o efeito é interessante, nas cenas mais densas e dramáticas escurece o céu, nas cenas mais alegres temos luz por todos os lados. Faz sentido. O arco temporal é iniciado por luz de nascer do céu e encerrado por luz de início de noite. O que volta a fazer sentido. Pelo meio toda uma paleta de emoções transmitidas pela cor do fundo do palco, que neste caso representa também o céu.
As marcações são também estranhas e ditadas pela inclinação da cena. Assim Santuzza (E. Matos) tem de implorar a Lucia (S. Marcello) de costas voltadas para esta e de frente para o público! Qualquer futura sogra de uma aldeia siciliana nessa situação daria um pontapé no traseiro da putativa nora! O equilíbrio instável dos cantores dita a sua dificuldade de movimentação em palco e marcações deficientes em esforço e pouco naturais.
A cena da procissão é o apogeu da trapalhada, se não pensarmos que temos dois bispos! Dois! Ainda temos mais dois padres. Para aldeia pobre da Sicília estamos bem abonados de bispos... mas o pior não é o excesso de clérigos em palco, o que seria apenas incongruente, é pensarmos: o que anda uma procissão com dois bispos a fazer numa encosta escarpada mais própria para cabras do que para uma festa religiosa? Enfim, chega a ser confrangedor. Se a encenação pretendesse ser “modernaça” e transgressora ao menos que se vestissem os bispos à Flash Gordon! Ou como pastores bucólicos... Assim é apenas inconsistente.
Parece que o encenador esteve a gozar com a rapaziada que se arrasta em perigo constante de cair para o fosso da orquestra de roldão com a possibilidade iminente de pernas partidas. Em suma: uma encenação destruída por uma cenografia incoerente, marcações fracas e incongruências estilísticas. Figurinos apropriados numa cenografia mais convencional. Luzes apropriadas a uma encenação mais radical.
Finalmente a encenação da Navarraise.
Navarraise é um mau texto teatral, um disparate pegado, se o rapaz amava realmente a rústica Anita nunca deixaria o pai exigir dote a esta. Aracil é um tíbio, desconfiado e fraco. Anita é uma tresloucada, capaz do crime para obter o que quer. Afinal ama realmente ou é apenas desvairada? O general é também mal construído, não tem densidade, fundo, nem sequer os estereótipos funcionam. O encenador resolveu neste caso o problema desenvolvendo ao máximo o lado cénico, ao contrário da Cavalleria. A cenografia constituída pelo monte da ópera anterior, mas esventrado e transformado numa barricada, serve às mil maravilhas para uma cena de batalha. Os cantores já dispõem de espaço cénico para desenvolverem os seus movimentos e cantarem mais descontraídos, sem medo de caírem e partirem um pé. Os soldados trajados a rigor, com fardamentos apropriado à guerra carlista. O que não existe na cena e na música é agora tratado pelo encenador, movimentos de soldados, tiros, mosquetadas, estrondos na música e clarões luminosos. Figurinos, luzes e cena bem executados. Movimentos simples mas eficazes.
Curiosa a cena em que Anita encontra Aracil e estes se declaram sem se aproximarem, como se tivessem medo um do outro. A princípio achei um disparate, se se amavam correriam um para o outro, mas pensando melhor o encenador dá-nos o seu pensamento: o par, de facto, sofre de uma doença: uma febre mista de paixão, ciúme, desconfiança. Fruto da guerra? Das privações? Stress pós traumático? Parece que sim.
E como lidar com uma cena de guerra, cheia de mortos, em que aparece uma rapariga a cantar uma alegre melodia espanhola, castanholas e salero! Olé! É caso para dizer que Massenet consegue envenenar qualquer espécie de verosimilhança e progressão dramática... O encenador lá tem de disfarçar e fazer a coisa o menos mal possível.
Em resumo: esta ópera não merece que um mero efeito cénico a coloque em segundo lugar. É uma obra menor e deveria ter sido programada para início da récita. Um efeito cénico que condiciona toda a Cavalleria e a destrói apenas para se poder usar o cenário na segunda parte. Um palco nu seria muito melhor do que aquele monte infecto que polui a Cavalleria.
Uma encenação desigual condicionada por uma concepção apriorística que não tomou como factor de peso a qualidade das obras mas um capricho de encenador. Uma encenação correcta da Navarraise e muito fraca na Cavalleria.
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